VIII (Afonso)

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-Mantém pressão aqui! _ digo para uma das mulheres.

Já estávamos no celeiro onde elas ficariam até ser vendidas depois de amanhã. Ou seja, o pior sítio para salvar uma mulher moribunda.

- Mata-me... _ pede Kyara.

- Não! Tu vais sobreviver, só tenho de pensar em uma solução.

- Não vou. Eu era enfermeira no meu país, sei que não tenho qualquer hipótese.

Estou completamente aturdido, olho para ela e incrivelmente vejo paz nos olhos dela.

- Porque é que fazes isto? Se és tão bom rapaz? _ pergunta-me uma das mulheres.

- Eu não sou bom rapaz. _ admito.

Se elas soubessem tudo o que já fiz em nome da sobrevivência, elas não olhariam para mim desta forma tão esperançosa.

- Eu não sou bom rapaz, se fosse estaria a soltar as 19 mulheres que se encontram neste celeiro. _ completo.

Kyara olhou para mim, retirou a mão de sua ferida, e com as duas mãos dadas com as minhas diz antes de soltar o último suspiro:

- Não deixes que ele escureça o teu coração! Luta pela justiça e pelo amor, aí a tua vida fará todo o sentido.

Sentia as suas mãos a soltar-se das minhas, coloquei as mãos dela em cima das suas pernas e fechei-lhe os olhos. Só pensava em uma coisa, que a tinha de enterrar condignamente.

- Desculpe, será que nos pode dar um momento para rezarmos pela sua alma e salvação? _ pergunta-me uma das mulheres mais velhas.

Sem encontrar a minha voz apenas aceno com a cabeça. Após a minha confirmação, as 19 mulheres juntam-se em círculo à volta de Kyara e dão as mãos.

- Eis que vejo meu pai... Eis que vejo minha mãe, minhas irmãs e meus irmãos... Eis que vejo a linhagem de meu povo, desde o início. Eis que eles convocam Kyara. Para que ela assuma o seu lugar entre eles. Onde os bravos vivem para sempre! _ rezam em coro repetidamente.

Sinto-me um intruso naquele ritual, mas por algum motivo não consigo mexer os meus pés para fora do celeiro.

Passado algumas horas, já o céu se encontra claro, elas ajoelham-se de mãos dadas e rezam pela última vez.

- Obrigado por conceder a velação do corpo. _ diz a mulher_ acha que pode cremar o corpo?

Não compreendia as suas tradições, mas claro que as cumpriria, não deixaria Kyara sofrer no fogo eterno do inferno, por causa de mim.

Pego no corpo de Kyara em estilo de noiva e encaminho-me para fora do celeiro. Carrego-a até a um precipício que tinha vista do mar, o meu lugar sagrado, penso se morresse era neste lugar que passaria os meus últimos momentos.

Pouso-a no chão e encarrego-me de encontrar lenha para fazer uma pira digna de Kyara, quando concluo deito-a ali e sem me aperceber, após aquelas horas todas a ouvir o cântico, entoo-o involuntariamente enquanto pego no isqueiro.

- Eis que vejo meu pai... Eis que vejo minha mãe, minhas irmãs e meus irmãos... Eis que vejo a linhagem de meu povo, desde o início. Eis que eles convocam Kyara. Para que ela assuma o seu lugar entre eles. Onde os bravos vivem para sempre!

Quando acabo já o fogo se alastrou por toda a pira. Concluída a minha missão encaminho-me para o carro, agora preciso de uma bebida.

Eclipse: Um encontro de almasOnde histórias criam vida. Descubra agora