Adeus

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Kylie já está quase dormindo quando recebo uma ligação, o nome de identificação que aparece já trás um aperto em meu peito. É da clínica que minha mãe está internada.

- Alô? - já atendo sentido a sensação ruim se espalhar através meu corpo. Minhas mãos trêmulas quase não aguentam o celular.

- Júlia Conor? - a voz do outro lado se revela uma mulher - Filha de Kelly Conor?

- Sim... - o peso no meu coração só ganha força. Quase não tenho voz.

- Boa tarde! Sou a assistente social Melinda Cruz, estou ligando para senhorita solicitando seu comparecimento aqui na clínica. Mas também pedimos que apresente os documentos de sua mãe e o seus também - tudo o que ela diz só confirma o meu medo.

- Ela morreu, não foi? - falo tão baixo que nem sei se ela me escutou.

- Aqui nós a informaremos melhor sobre estado da sua mãe, está bem? Não é prudente conversarmos sobre isso por chamada. Quando pode vir? Preciso marcar o horário.

- Eu deixo o trabalho daqui a meia hora, passo direto aí. Só vou precisar passar em casa primeiro para pegar os documentos dela. Então eu vou.

- Ótimo! Marcarei para daqui uma hora então. Estaremos à disposição. A Clínica de reabilitação Restauração e Saúde agradece.

- Também agradeço - desligo. Estou tão nervosa que até me esqueci que agora estou trabalhando em tempo integral. Merda! O que vou fazer?

Bom... O senhor Kenner ainda não saiu para sua viagem, talvez eu consiga que ele fique com Kylie para mim por algumas poucas horas. Sei que ele vai entender a situação.

• •

Bato na porta do escritório dele, assim que ouço o "Pois não?" giro a maçaneta e entro.

- Boa tarde, senhor Attah. Tem um minutinho para mim?

- Claro! Tudo bem com a Kylie?

- Ela está ótima, acabou de pegar no sono - conto a ele sobre a ligação. Não precisei explicar muito, pois tanto ele quando a Dorothy já sabiam sobre o estado da minha mãe.

- Com certeza você pode ir, é a sua mãe! Eu seria um monstro se te proibisse de algo assim - ele larga a caneta de ouro e pega a caneca com café, dando um gole.

- Muito obrigada, senhor Kenner... Olha, a Kylie acabou de dormir! Não vai acordar tão cedo, eu juro para o senhor - junto as mãos na frente do peito - eu volto o quanto antes. Pode descontar do meu salário se precisar...

- Júlia! - ele me interrompe e me dá um sorriso tranquilo - Calma, tá? Eu sei o quanto você é responsável e não deixaria seu expediente se não tivesse jeito. Pode ir, não tem problema.

- É que eu sei que o senhor está se organizando para sua viagem de amanhã então...

- Não tem problema, a maior parte já está resolvida e minha pequena não me atrapalha em nada. Vá.

Sorrio com um enorme alívio no peito, só faz uma semana que sou babá da Kylie e já estou precisando sair, quando eu era doméstica bastava avisar a governanta e me organizar com as outras empregadas e elas me cobriram se precisasse, agora minha responsabilidade está maior.

- Obrigada, volto o quanto antes puder.

- Sem pressa. Tome o tempo que precisar.

Deixo-o no escritório e parto para trocar de roupa e ir resolver esse assunto.

• •

Deixo a clínica em um estado completamente letárgico, a brisa fresca do pôr do sol que assopra meu rosto me faz dar um longo suspiro, o que não fiz desde que recebi a ligação. Volto a caminhar, descendo as escadas da portaria. Carrego em minhas mãos a urna com as cinzas de minha mãe.

Jodi está escorada em um carro logo abaixo, quando me vê vem caminhando ao meu encontro.

- Como você está? - mesmo com a pergunta dela, não consigo sair da letargia, contudo consigo respondê-la.

- Eu não chorei, Jodi - digo baixinho.

Ela me olha com complacência, seus olhos começam a marejar. Volto um olhar perdido para ela e continuo:

- A minha mãe morreu eu não consegui chorar - deixo transmitir toda culpa que eu carrego -. Eu sou uma pessoa ruim?

- Nem se você se obrigasse a não chorar, isso faria de você uma pessoa ruim, mana - Jodi apoia as mãos em meus ombros.

- Então por que eu me sinto tão mal? - ela suspira, aborrecida.

- Jú, ela te abandonou quando você tinha treze anos de idade por vício em heroína. Anos depois ela te procura, atrás de dinheiro, e o quê você faz por ela é interná-la na melhor clínica que tem condições de pagar. E quando morre só tem você para vir pegar as cinzas dela. Mesmo assim, ela nunca te agradeceu enquanto pôde. Você foi uma pessoa ferrada e tudo que remete a ela só cutuca sua ferida. Então irmã, você só está confundindo mágoa e tristeza com culpa.

- Ainda assim, ela era minha mãe.

- Ela era - Jodi me abraça -. No fim de semana a gente joga as cinzas dela em um lugar especial, o que acha?

- Vou pensar - retribuo o abraço. Grata por não estar sozinha.

• •

Volto para a mansão com uma sensação como se estivesse pisando em espaços vagos enquanto caminho até a porta, não sinto o chão sob meus pés. Mesmo conversando bastante com minha irmã, ainda me sinto letárgica, pedi Jodi que levasse a urna para casa e voltei para o trabalho.

- E então? - Kenner pergunta assim que me vê passando pela porta, ele estava descendo as escadas.

- Kylie acordou? - respondo com outra pergunta, nem sequer olhei para ele, tiro o casaco e penduro, mas o sinto de aproximar de mim.

- Não, está dormindo ainda - ele carrega a babá eletrônica na mão - Júlia, e sua mãe? - repete, mais firme dessa vez.

- E-Ela... - balanço minha cabeça em sinal negativo. Ainda não levantei o olhar para vê-lo, apenas encaro seu peito forte. Não sei nem se um dia conseguirei levantar a cabeça novamente, nem me sinto um ser humano. Neste momento meu peito é um profundo buraco negro puxando toda a energia vital do meu corpo.

- Oh, meu anjo! Eu sinto muito! - o senhor Kenner me abraça também. Retribuo o gesto. Seu perfume também me embala e de alguma forma aquilo tudo me trás conforto.

Mais uma vez vejo que não estou sozinha e penso de novo sobre a vida da minha mãe. E se ela tivesse mais pessoas ao lado como eu? Nem precisava de muita gente, talvez ela não teria o fim que teve.

- A sua mãe não estava sozinha. Ela tinha você, e te teve até o último segundo da vida dela, até quando não estava presente - Kenner comenta como se tivesse lido meus conflitos internos, então continua -. Se quiser tirar uns dias de folga, eu ligo para Dorotéia e colocamos outra pessoa para te substituir o quanto precisar.

- Obrigada, senhor Attah - digo enquanto desfaço o abraço -. Mas Kylie me traz muita alegria, ficar aqui com ela é o melhor ao invés de sozinha em casa.

- Tudo bem, vou ligar para o meu psicólogo e ele virá aqui te atender hoje mesmo. Assim que chegar eu te chamo - ele me entrega a babá eletrônica.

- Obrigada de novo, senhor - pego o objeto e sigo para subir as escadas. Ao ouvir um "titi" saindo do radinho - sinalizando que a bebê acordou - uma fagulha de alegria acende em meu peito, eu amo essa menina demais. E isso também me faz lembrar que carrego outra alegria em meu ventre; um filho que também amo mais do que a mim mesma.

- Titia já está indo, meu amor - respondo na babá eletrônica e corro ao seu encontro.

Chefe Cretino Onde histórias criam vida. Descubra agora