Prólogo (parte 1)

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Prólogo (Parte 1)
Nordeste do Brasil, 1879



Ela observou o rosto sereno de sua mãe, uma mulher com quase cinquenta anos. As sobrancelhas eram grossas, os cílios pequenos, os contornos e as bochechas arredondadas, que tinha orgulhosamente herdado - agora acentuadas pelos ossos - e a testa marcada com manchas de sol. A mão, posta abaixo do seu rosto, era enrugada e com calos. O que não diferenciava tanto de outras partes de seu corpo magro, como os calos nos pés, marcas nas costas e outras invisíveis à pele.

Deixou de observar sua mãe e olhou para cima, para o teto de palha daquele espaço; a senzala. Seu estômago doía. Já não sabia se pela vontade de vomitar por causa do mal cheiro que vinha da parte de trás das senzalas, onde jogavam os dejetos de vários, ou pela fome que sentia.

A grande seca estava assolando os povos escravos e mesmo sem tantas esperanças, com a falência dos donos de fazendas, muitos grupos conseguiram fugir da província da Bahia, para as regiões ao sul e norte do país e outras seguiram para o litoral do nordeste. Antes da seca, tinham pelo menos uma refeição por dia e agora... Não havia nada. Quando havia, ela preferia manter sua mãe viva e em outros momentos, as duas ajudavam quem sentia fome a mais de dois dias.

Mordeu o lábio distraidamente e levantou-se em direção a porta. Como todas as noites, as portas eram trancadas por fora e só eram abertas ao amanhecer, assim acontecia no sul. Ela tocou a madeira fina e procurou uma brecha de luz, se inclinou, ajoelhou-se e encontrou. Aproximou o rosto e olhou para além do buraco na madeira. Pôde ver a luz da lua sobre a areia avermelhada do espaço das senzalas. Se abaixando um pouco mais teve um lampejo da própria lua, estava cheia e subia ao céu limpo e estrelado. Onde pertencia antes, seu trabalho acabava antes da lua subir ao céu e as poucas vezes que via o céu e a lua foram durante a migração, em que dormia durante o dia para sua mãe dormir à noite. Uma vez, sua mãe dissera que a lua era como uma deusa e adorava ouvir as histórias dos deuses da terra de sua mãe, já que ela fora trazida de outro continente, e sabia que isso confortava suas torturas.

A luz da lua foi tapada por uma sombra. Viu os pés calçados em botas de couro que brilharam ao luar. A silhueta se afastou um pouco e percebeu o homem vestido tipicamente como um senhor de fazenda. Lembrou o senhor da antiga fazenda, no litoral da Bahia. Ele era bem corpulento, tinha um bigode fino... tão fino quanto sua arrogância. Ela suspirou e observou as botas se virarem e mudarem a direção, se aproximando em passos silenciosos. Ela se afastou quando percebeu que ele deveria estar perto o bastante para abrir a porta e vê-la ali. E foi o que ele fez.

Sentada ao chão observou a altura do homem. Além das botas que iam até o joelho, usava calças justas de cor escura e usava um colete de poucos botões da mesma cor, em tons cinzentos. Ela se apressou para se levantar, de forma desajeitada e não percebeu que ele estendera a mão para ela, a fim de ajudá-la.

— Desculpe, senhor. — disse ela, tremulando a voz em tom baixo. Ela olhou para sua mãe no canto da senzala, apenas para verificar se tinha acordado, mas ainda dormia tranquilamente.

— Não quero suas desculpas. — disse suavemente e olhou para dentro do curto espaço que era a senzala. — Não fez nada a mim.

Embora ele tivesse falado com calma, as palavras soaram pesadas com autoridade. Já tinha ouvido muitas palavras arrogantes e saberia que deveria ficar calada quando provocada por um senhor. Embora nunca ficava calada quando confrontada por um dos seus. No momento preferiu baixar a cabeça e colocar as mãos para trás de si. O luar invadia a senzala escura e ela observava as botas tão perfeitamente desenhadas daquele senhor. Se conseguisse uma daquelas, conseguia qualquer dinheiro suficiente para comprar alguma comida. Mas o lugar era desconhecido, assim como aquele homem e nunca saberia como fugir ou chegar à cidade, sem ajuda.

A Primeira ImperatrizOnde histórias criam vida. Descubra agora