Capítulo 3
Seus Nativos
Já devia ser mais de meio-dia quando Joaquim fora com a décima carga de toneis de água, agora com mais cinco homens e mais carrinhos para o rio. Um guarda livre veio para ajudar a monitorar os novos toneis e ajudar na descarga na fazenda.
Victhana se aproximou das outras mulheres dentro do rio, que enchiam os toneis e davam aos homens para que levassem e como quem avaliava a situação, sinalizou com a mão, chamando atenção.
— Vamos ter mais ajuda, em breve. — disse alto, para as mulheres. — E as águas estão com algas. Acho melhor subir para as margens para sair das águas, assim, não vamos poluir ao colocar no tonel.
— Porque acha que isso vai importar? — perguntou um homem, ao seu lado. Ele carregava um tonel nos ombros. — Acha melhor não aproveitarmos a água que ainda nos resta? — seu sotaque do idioma indígena era tão suave que podia jurar ouvir o português do sul nele.
— Acho melhor não poluir a água que nos resta, homem. — disse, firme, quase em um tom exasperado. — Só digo que é uma forma de não sujarmos a água.
— Você parece não gostar da água. — disse o homem, colocando o tonel no chão, apoiando o pé encima dele. As sobrancelhas grossas curvadas sobre os olhos escuros. — E parece dizer que somos sujos. Está nos insultando?
— Não estou insultando ninguém. — disse, quase chateada com aquela insinuação. — Porque eu insultaria um dos meus?
— Você não é uma de nós. — disse e a olhou sério, como se a julgasse. — Você não sabe como é ter suas terras invadidas por estrangeiros que vinham empunhando armas, nos obrigando a crer em suas palavras, nos manipulando para roubar as riquezas de nossas terras... É como ser violado.
Lembrou de sua mãe. Por sorte, ela sobrevivera grávida naquele transporte quando fora trazida ao país. Sabia o que ela e muitos haviam passado naqueles navios. Toda vez que lembrava, tinha vontade de vomitar. Parecia sentir o cheiro de suor deles, de seus vômitos durante a viagem, e até podia ver pessoas morrendo no balançar do navio... Aquilo eram lembranças ruins que sua mãe lhe contara e quando decidiu que aquilo não a afugentaria mais, ela enfrentava seus medos e, mentalmente, partia para cima para apagá-los e não deixar que os a abatessem.
— Você não sabe o que é ser violado de verdade, homem. — disse, quase com desdém, o olhando nos olhos. Ele não era tão alto, mais Victhana ainda o olhava com o queixo erguido. — Não estou diminuindo suas palavras e certamente, não sei como é ter passado por isso. Mas assim como eu, quão velho é você para ter passado por aquilo também?
— Mais velho que você, posso afirmar. — disse ele, apoiando o cotovelo em seu joelho esquerdo que estava sobre o tonel. — E só agora, nesse momento, te dei dois motivos pelo qual essas mulheres deveriam obedecer a mim e não a você.
— Você é tão velho quanto seu sotaque misturado, digno de um filho de indígena e português. Ou é tão velho quanto a pele lisa que cobre seus músculos magros e seus ossos. — disse, agora em observação, percebendo seus detalhes. — Já que estamos falando do passado; você sabe o que também é ser violado? É ser tirada do seu país de origem como um nada e ser colocado em um navio em que muitos morreram em sua frente. Onde se era colocado com mais quinze pessoas, em um lugar que só cabiam cinco. É ser estuprada nesse caminho quase sem fim, a um caminho de um continente desconhecido.
O homem encarou os olhos acastanhados dela e quando pensou em contestar foi interrompido pela continuação de suas palavras.
— Não é porque um de seus pais são nativos desta terra que te torna dono dela. — continuou o encarando, o tom de voz calmo e firme. — E, antes de querer se sobrepor a uma mulher, tente se colocar em seu lugar. Não é porque consegue carregar um tonel de água que eu deveria me curvar para você.
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A Primeira Imperatriz
Ficción históricaVicthana é escrava em um fazenda no sul do Brasil imperial, em 1880. Sobrevivendo a fome ao lado de sua mãe, nas senzalas, ela organiza uma fuga para o nordeste. Mas quanto mais ao norte, o dobro sofriam com a seca e as estiagens no sertão nordestin...