ENCONTRO COM O CAPETA

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A minha experiência na tarefa de conduzir gado, não dá nem pra dizer boiada, é limitadíssima. Foram só duas oportunidades e eram poucas vacas, apenas por alguns quilômetros, uns vinte, quando muito. Eu sei, porém, que apesar de ter lá os seus atrativos e encantos, com toda certeza, é um trabalho muito árduo.

Nos dias de hoje praticamente extinguiu-se essa profissão, ao menos no que se refere às jornadas de longa distância.

Contava o meu tio Sebastião, que era marido de uma irmã mais nova do meu Pai, a tia Luzia - duas almas de ouro - que abandonara a profissão de peão de boiadeiro, em virtude de um acidente de trabalho, um tombo de cavalo que lhe deixara sequelas na coluna vertebral, que o impediam de ficar montado por um tempo mais longo.

Por conta dessa circunstância passou a trabalhar como cozinheiro de comitiva de boiada. Tinha lá sua tralha de cozinha, sua carroça e a tropa de burros com as respectivas cangalhas e bruacas para transportar os utensílios e mantimentos e alugava seus serviços aos donos de comitivas.

Seguia sempre à frente da boiada a fim de, nos locais de parada para refeição e pouso, previamente estabelecidos e que ele conhecia de antemão, preparar a boia para a peonada. A comida só era preparada à noite, mas em quantidade que dava pra almoço e janta, ou vice-versa. Usava-se muito, para enganar a fome durante o dia, paçoca ou farofa de carne seca e rapadura.

Segundo meu tio, certa feita, o acampamento foi assentado para pernoite em um ranchão que havia entre duas cercas de arame que formavam um corredor. O rancho era muito grande, mas só tinha um resto de parede no ângulo onde ficava o fogão à lenha, no restante eram só os esteios, traves e o telhado de capim.

Bem perto dali, como não podia deixar de ser nos lugares escolhidos para acampar, havia um pequeno riacho.

Soltou-se a boiada em um grande pasto que havia ao lado e a tropa em um pasto menor, um piquete, para facilitar a pega de manhã.

Era, por acaso, uma sexta feira da paixão e, dizia--se naquele tempo, que se alguém quisesse encontrar com o capeta, bastava ir para uma encruzilhada num dia desses (sexta feira da paixão), acender uma pequena fogueira no meio da encruzilhada e esperar até meia noite que o tinhoso se faria presente.

Gabava-se o tio Sebastião, e eu acredito, de que naquela época, quando ainda estava mais perto da juventude do que da idade madura, não era homem de ter medo de coisa alguma, muito menos dessas crendices em coisas ditas sobrenaturais.

Por isso, logo depois da janta e já tendo lavado e arrumado as coisas para a refeição matinal, anunciou que iria para uma encruzilhada que existia a coisa de quinhentos metros acima do rancho, com o propósito de constatar a veracidade daquela crença popular. Ia esperar o capeta e, se ele de fato aparecesse aplicar-lhe-ia umas boas chibatadas, para deixar de infernizar a vida dos pobres seres humanos.

Entre os peões, alguns mais supersticiosos tentaram demovê-lo daquele intento, outros, arrotando valentia disseram que só não iriam com ele, pois tinham que levantar de madrugada e, também porque, segundo a crença, se estivesse presente mais de uma pessoa o capeta não aparecia, mas que se meu tio conseguisse obrigá-lo a ir até o rancho, eles o ajudariam a aplicar-lhe uma boa sova.

Cabe inserir aqui um esclarecimento e ao mesmo tempo uma curiosidade: Fazia parte do equipamento de uso pessoal dos peões de boiadeiro, entre muitas outras coisas que hoje são praticamente desconhecidas, um grande chicote com muitas argolas, que era chamado de "pinhola", com o qual o peão provocava estalos para controlar o gado, que se assemelhavam a verdadeiros estampidos de arma de fogo.

Durante muito tempo eu pensava que aqueles estalidos ocorriam quando, ao movimentar com força o chicote, a ponta batia em outra parte do couro trançado. Questão de ignorância mesmo.

Só fui aprender e entender o que realmente ocorre, já cursando o segundo-grau, com um professor de física. Segundo ele, quando se arremessa o chicote com força para um lado e puxa bruscamente, com violência, para o outro, a ponta, ao fazer a curva de retorno, atinge uma velocidade tão grande que ultrapassa a barreira do som.

Então, guardadas as devidas proporções, acontece o mesmo fenômeno que se dá quando as aeronaves supersônicas alcançam MAC 1 (a velocidade do som). O estrondo ou estampido, conforme o caso ocorre com a entrada de ar no vácuo deixado pelo deslocamento do objeto.

Pois bem, o tio Sebastião, decidido a enfrentar aquela empreitada um tanto ou quanto suspeitosa, com seu inseparável "treis oitão" na cintura e munido da sua pinhola, da qual não se desfizera, apesar de não exercer mais o antigo ofício, encaminhou-se para a encruzilhada.

Lá chegando, juntou alguns galhos secos e gravetos e acendeu a fogueira no local devido, deixando lenha de reserva, para ir alimentando o fogo aos poucos.

Feito isso, sentou-se em um barranco mais alto na beira da estrada e pôs-se a picar o fumo para enrolar um cigarro de palha, a fim de esperar.

E esperou, esperou, e esperou... e nada! Não apareceu ninguém, nem mesmo o saci.

Passada a meia-noite - ele tinha um relógio de bolso – resolveu voltar para o rancho.

Assim que começou a caminhar viu um cavalo solto no meio do corredor e, de pronto, teve a ideia de assustar a peonada. Desenrolou a pinhola e começou a correr em direção ao cavalo gritando e estalando o chicote sobre a cabeça do animal que saiu em disparada rumo ao rancho.

Quando foi se aproximando do acampamento gritava:

- Lá vai o bicho....!!! Cerca o bicho aí gente!!! Não deixa ele escapar não...!!! Segura ele...!!!

O resultado disso foi que, o cavalo passou direto, ninguém cercou, e segundo meu tio, quando ele chegou ao rancho não havia um só peão no chão ou nas redes, todos estavam em cima das traves.

A valentia fugira mais depressa do que o capeta, quer dizer, do que o pobre do cavalo.

* * *

Por um AcausoOnde histórias criam vida. Descubra agora