PAGA MEU FELIPE

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Para contar a história ou causo que tenho em mente, faz-se necessário tecer alguns comentários e prestar esclarecimentos sobre certas situações aparentemente sem nenhuma vinculação entre si. Primeiro acerca do título acima.

É provável que pouca gente hoje em dia conheça essa expressão "paga meu felipe". Para quem não conhece, primeiro é preciso explicar que, nesse caso "felipe" não é um nome próprio, é a designação popular para frutas ou legumes que nascem geminados ou colados em pares, o que, segundo me lembro, é mais comum acontecer com as bananas.

A expressão "paga meu felipe", por sua vez, era apenas uma brincadeira que fazíamos na infância e que consistia em oferecer a alguém uma, ou melhor um par, dessas frutas ou legumes geminados e, se a pessoa pegasse sem perceber, dizíamos "paga meu felipe" e então aquele que recebeu o "felipe" ficava obrigado a pagar uma prenda. É claro que era só de brincadeira mesmo e a prenda, quando muito, era cumprir uma pequena tarefa como buscar um copo d'água ou coisa assim.

Agora sobre os tabus, preconceitos e ideias cristalizadas acerca do sexo e da sexualidade que, segundo eu penso, causaram e ainda causam muitos prejuízos à humanidade.

A maioria das pessoas da minha geração sofreu pela falta de informação, inclusive das próprias famílias que, em regra e pela mesma razão, não estavam preparadas para orientar os filhos. Sexo e sexualidade era assunto proibido e, na opinião de muitos, até pecaminoso.

Hoje em dia, ao que parece, a situação mudou de um extremo para o outro. Ninguém pode reclamar da falta de informação, porém, segundo podemos observar muitas ve-zes, muita gente ainda carece de orientação segura e isso faz com que as informações sejam processadas de maneira equivocada, de modo que a tão decantada liberdade sexual, acaba vindo também em prejuízo da formação dos jovens.

Houve um tempo, no entanto, em que a situação era muito pior. Era tão radical o preconceito em certos casos que podia levar até à prática de crimes.

Dizia-se que "a honra se lava com sangue".

Houve casos em que o pai chegava ao extremo de matar ou encomendar a morte daquele que levara à perdição a sua filha e, às vezes, de assassinar também a própria filha, em nome da honra.

Era comum também o pai expulsar de casa a filha perdida, só porque que fora "deflorada", perdera a virgindade ou, como era comum dizer, "se perdera". Nesses casos, muitas vezes, à míngua de amparo, eis que pessoas da família e até da sociedade local, por respeito ao pai da infeliz, ficavam impedidas de acolhê-la, a pobre coitada acabava indo parar em prostíbulos, tornando-se prostituta contra a vontade, por força da situação. E olha que as prostitutas ainda eram chamadas de "mulheres de vida fácil". Eu só não sei onde é que estava a facilidade.

Pois muito bem, no tempo em que o cenário social era mais ou menos o que foi acima descrito, ao menos no que se refere à questão da sexualidade, eis um caso que, felizmente, contrariou todas as regras:

No meio rural, em certa região do nosso belo País, havia um sujeito que, entre outros pequenos, tinha uma filha já moça, com seus dezessete ou dezoito anos e que estava namorando.

O namoro, como se sabe, naquele tempo era muito recatado. Geralmente o rapaz, ao visitar sua amada, tinha que se contentar em vê-la na presença de toda a família.

Quando muito liberais, os pais da donzela permitiam ao casal de namorados, uns muito breves momentos à sós, na hora da despedida.

No caso que vimos de narrar, certa noite, já bem adiantada a madrugada, o pai da donzela levantou-se para ir ao terreiro urinar (não havia instalações sanitárias) e, ao passar perto do dormitório da filha ouviu um ruído estranho, algo como um gemido, que o fez parar e entreabrir a porta do quarto, para ver o que estava acontecendo.

Ao olhar dentro do quarto, mesmo na penumbra, percebeu que embaixo dos cobertores, sobre a cama da filha havia mais de uma pessoa e havia movimento, o que o fez intuir, de pronto, o que ocorria ali.

Ao contrário do que se poderia pensar, ele fechou a porta devagarinho, voltou ao próprio quarto e acordou a esposa dizendo:

- Minha velha! Vamos ali pra você ver o que está acontecendo...

Ao chegarem à porta do quarto da filha ele a entreabriu bem devagar novamente para que a esposa pudesse ver e em seguida, entrou de uma vez no quarto falando bem alto:

- Paga meu felipe...!

O que se viu então foi um dos cobertores, que não era ninguém mais que o namorado da donzela embrulhado, que por acaso era meu parente, sair correndo e pular pela janela, sumindo noite a dentro, esquecendo dentro do quarto um par de botinas.

O resultado disso foi que ninguém morreu, não se expulsou ninguém de casa, o namoro continuou até a data prevista para o casamento que aconteceu normalmente e o casal viveu mais de sessenta anos juntos, até o falecimento do marido já beirando os noventa anos de idade, e a esposa algum tempo depois.

Louvores à liberalidade daquele pai, não é mesmo?

* * *

Por um AcausoOnde histórias criam vida. Descubra agora