EITA REVORVE BÃO, SÔ!

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Contou-me certa vez um amigo, que no tempo da sua juventude, logo depois de ter casado, quando ainda não tinha filhos, no afã de prosperar, adquiriu uma posse de terras no território que hoje constitui o Estado de Tocantins, mas que naquele tempo ainda fazia parte do Estadão de Goiás.

Não sem dificuldade, segundo ele, comprou o indispensável para iniciar alguma atividade agrícola na sua nova propriedade.

Devia cuidar, a princípio, de construir uma moradia, antes de levar a esposa, tratando, para isso, de arranjar um companheiro, porque sozinho seria muito difícil realizar todo o trabalho necessário, que consistia basicamente, depois de escolhido o local apropriado, em: tirar um rego d'água, fazer e instalar a bica; limpar e cercar o terreno do quintal; escolher e tirar a madeira para construção da casa (seria uma casa de pau-a-pique); tirar o capim para a cobertura (telhado); construir um chiqueiro para engordar uns porquinhos; construir e instalar um monjolo, para limpar arroz, café, fazer fubá de milho, entre outras utilidades, além de cercar e formar um pastinho para criar pelo menos umas duas vaquinhas de leite.

Teve a sorte de convencer Rufino que era amigo da família havia muitos anos, a ir com ele.

Rufino era um cearense de meia idade, mas muito robusto, casado com Joana que também era nordestina e o casal não tinha e parecia não pretender ter filhos.

Depois de feita a primeira parte dos trabalhos, que consumiu uns seis meses, eles levaram as esposas, a fim de que pudessem agora cuidar de desmatar o lugar onde seria plantada a primeira roça.

Geraldino, esse era o nome do meu amigo, ainda não havia conseguido comprar as vaquinhas, mas já tinha uns quatro leitões castrados no chiqueiro, um galo e algumas galinhas.

Não demorou muito para que alguns bichos do mato começassem a rondar a moradia, como na música "Capim Guiné", do saudoso Raul Seixas. Até uma onça esteve tentando abocanhar um dos porquinhos, mas foi espantada pelos dois cachorros da casa, o Sultão e o Zumbi.

Eles dispunham apenas de uma arma de fogo, uma espingarda cartucheira, calibre vinte e oito. É certo que o Rufino possuía um arremedo de arma, uma garruchinha calibre vinte e dois de dois canos, do tipo "dois tiros e uma carreira", com a qual se gabava de já ter botado pra correr algum valentão. Sabe-se lá o tamanho da valentia do tal! Era pra desconfiar.

Certo dia, tendo que ir à cidade mais próxima, que não era tão próxima, para comprar algumas utilidades, Geraldino resolveu que devia adquirir um revólver, de modo que quando estivessem no roçado, a espingarda poderia ficar com as mulheres na casa, para alguma emergência.

Plano feito e realizado.

Na volta, ao apear da jardineira no ponto de para-da, que era um boteco na beira da estrada e que ficava a uns vinte quilômetros de distância da sua propriedade, já passava das quatro da tarde e, apesar de aconselhado a pernoitar, porque certamente seria alcançado pela noite a meio caminho, antes mesmo de cruzar o mato fechado onde pululavam as onças, resolveu que iria pra casa naquele dia mesmo, afinal de contas agora estava armado com um treis-oitão que era um baita. Tá certo que as pilhas da lanterna não estavam lá essas coisas, mas dava pra chegar.

Assim, ombreando um alforje com as suas compras, revólver na cintura, guaiaca cheinha de balas e muita coragem, tomou a estrada.Caminhou enquanto a claridade permitiu, sem usar a lanterna, para economizar as pilhas, mas quando a estrada adentrou o mato, não teve remédio senão fazer uso dela.

Quando escureceu de vez, além dos barulhos comuns da noite no mato, como a corrida ligeira de algum pequeno animal sobre as folhas secas, o pio de alguma ave de hábitos noturnos que às vezes nos provocam sobressaltos, começou a escutar o esturrado distante de onças, o que é deveras arrepiante.

Na medida em que caminhava teve a impressão, talvez conta do medo, mais que natural, de que os esturrados estavam ficando mais próximos. Deu então um jeito de pendurar o alforje nos ombros, de modo que não precisasse usar as mãos para carregar, sacou o revólver e prosseguiu, lanterna na mão esquerda e o trinta e oito na mão direita. Assim, pensava, estava seguro.

Chegou afinal à casa já por volta das nove da noite e foi repreendido pela sua ousadia, tanto pela esposa como pelo casal de amigos, que o fizeram prometer que não faria mais aquilo.

Na manhã seguinte, após as tarefas domésticas costumeiras, como tratar dos porcos e das galinhas, os amigos seguiram para o local onde estavam derrubando o mato para fazer a roça. As mulheres haviam preparado o almoço bem cedinho, como de costume, para que eles pudessem levar, de modo que não precisassem voltar senão à tardinha.

Geraldino ia agora com o revólver na cinta, deixando a espingarda em casa, não sem antes fazer uma série de recomendações à Isabel sua esposa, acerca do uso da arma, em caso de necessidade.

Eles já haviam roçado com foice os arbustos menores e agora cuidavam de derrubar, a machado, as árvores grandes.

Lá pelas nove da manhã, acercaram-se de uma enorme sucupira, no propósito de cortá-la, quando perceberam que um bando de quatis se achava na copa dela.

Geraldino resolveu que era o momento apropriado para experimentar o revólver recém adquirido.

Sacou, escolheu um dos animais, fez mira e: "pof". Não foi um tiro, um "POU" como seria de se esperar de uma arma daquele calibre, pareceu mais o barulho que ocorre quando se saca a rolha de uma garrafa de espumante, além disso eles puderam observar a bala subir, mais lenta que uma pedra de estilingue, chegar até perto do quati e cair de volta.

Rufino desatou a rir e não conseguia parar.

Geraldino no entanto, ficou olhando para o revólver com raiva e pensando no perigo que correra na noite anterior. Se ele tivesse se deparado com uma onça, até ela iria rir dele com aquela porcaria de arma.

Deus que me livre!

* * *

Por um AcausoOnde histórias criam vida. Descubra agora