Um.

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AVISO: Essa obra contém descrições gráficas de violência e assuntos sensíveis, não leia se tiver algum gatilho.


Mais um dia árduo começou na periferia de Shenzhen. Os galos de um morador que criava animais para o abate e venda cantaram quando o sol nasceu, mas já haviam pessoas acordadas e até mesmo trabalhando antes disso. Muitos se levantaram para ir até a metrópole, alguns foram ajeitar seus comércios locais e pouquíssimos tiveram o privilégio de continuar dormindo em suas camas, a maioria bebês ou crianças muito pequenas porque até mesmo idosos e deficientes precisavam se levantar cedo para garantir a comida do dia.

— Acorda já, seu vagabundo! — Um soco na parede acordou o jovem, que deu um pulo na cama. — Se não trabalha pelo menos vai estudar!

Incapaz e sem vontade de rebater, o rapaz apenas se levantou de seu colchão velho e coçou os olhos numa tentativa de afastar o sono, se espreguiçando uma última vez. Se levantou e foi caminhando até o poço no fundo da casa, enchendo um único balde que teria que dividir para seu banho, o de seu irmão e o de sua mãe; só pôde usar dois copos de água, então fez render o suficiente para se livrar do sono e do mal-cheiro. Saiu do quintal e então entrou rápido dentro de casa para se vestir, colocando o uniforme surrado rapidamente. Seu irmão obviamente não iria estudar então pegou seus sapatos e os calçou, sentindo a ferida em seu calcanhar arder já que o pé do outro era muito menor que o seu.

— Tô saindo. — Avisou, mesmo sabendo que não seria respondido. E agradecia.

Pegou a estrada de terra e foi caminhando sem pressa, já que mesmo que a escola fosse a 30 minutos de distância ele sempre chegava cedo demais e ficava sentado sem fazer nada até o começo das aulas. Em volta ele via homens em carroças levando suas mercadorias até a cidade, mulheres levando baldes cheios de água na cabeça ao mesmo tempo que seguravam duas ou três crianças no colo, crianças andando em bando (e essas ele achou melhor não encarar diretamente para não entrar em confusões), idosos sentados em banquinhos simples observando o movimento... Aquela era a simplicidade de seu vilarejo.

Seus passos cautelosos logo lhe levaram até a escola pública em que estudava e o jovem foi direto para a biblioteca. A bibliotecária estava destrancando o local e sorriu quando viu o estudante se aproximando, já sabendo o que ele pretendia.

— Criança, já lhe disse que nenhum estudante entra agora. — Falou num tom ameno, recebendo um olhar pidão do rapaz.

— Por favor, laoshi, eu não vou fazer bagunça lá dentro. Só quero ler. — Fez um bico.

A mulher suspirou e bagunçou os cabelos castanhos do rapaz antes de destrancar a biblioteca, calmamente, fazendo o estudante ansioso quase sair pulando de felicidade por aí. Os simples segundos que a ação levou pareciam ser horas na mente do jovem, mas logo as portas pesadas de seu lugar favorito foram empurradas e ele pôde ver todos aqueles livros lhe esperando.

— Sua mãe não vai na reunião de pais? — A bibliotecária perguntou, se dando conta de que estava falando sozinha.

Ela então assistiu o jovem juntando uma pilha de livros grossos e caminhar até uma das mesas, se sentando e começando a ler um por um com uma paixão nítida em seus olhos cheios de esperança. Acabou sorrindo e desejou silenciosamente que as outras crianças fossem como ele, ou então o país estaria perdido.

Já era finalzinho de tarde quando as aulas terminaram e novamente o rapaz voltou caminhando, esperando um pouco o movimento diminuir. Era algo bobo de se confessar em voz alta, mas ele sentia um pouco de vergonha das condições em que vivia e suas amizades não saíam das dependências escolares justamente por isso. Sequer um celular tinha, só podia conversar com seus amigos dentro da escola ou com seus vizinhos.

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