Quatorze.

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AVISOS: Esse capítulo, assim como todos os outros, contém assuntos sensíveis como violência não-explícita, menção à assassinato, menção à tentativa de suicídio, menção à uso de drogas e prostituição, problemas familiares e invasão de privacidade.


Novamente, Minghao adoeceu. Não era difícil que o rapaz ficasse prejudicado fisicamente pelas coisas que o afetavam emocionalmente, então lá estava ele, febril e agasalhado nas cobertas em plena tarde de sexta-feira. Havia deixado claro que queria ficar sozinho naquele dia quando conversou com Jihoon e Seokmin por mensagens — não tinha tido coragem de contar que estava sendo investigado pela polícia — então estava à própria sorte. Apesar de saber apreciar a solidão, ele não gostava de ficar sozinho.

Talvez fosse parte da personalidade teimosa, mas logo o chinês já estava querendo aprontar. Rodeava o apartamento todo em seus pés descalços, abria armários e geladeiras, deitava no taco de madeira, no ladrilho e no carpete. Olhava o teto, olhava o céu, olhava os prédios, olhava os carros. Contava quantas pílulas ainda restavam em seus frascos antigos e quantas ainda podia ingerir nos frascos novos sem que Seokmin percebesse, mas nada parecia alimentar aquela fome visceral de se aventurar que o consumia por dentro, segundo por segundo.

Por mais que a vida sempre estivesse dando duras lições para o ruivo, ele nunca aprendia. Sua origem e infância difíceis tinham lhe ensinado muitas coisas, mas pelo visto nem os piores momentos e maiores humilhações tiraram de dentro do chinês a ingenuidade que ele cultivava em seu âmago, sempre escondida pela armadura forte que ele precisava vestir para perdurar no meio que vivia. Crescendo para sobreviver e não viver, ele não pôde aproveitar e errar no tempo certo. Agora, precisava arriscar-se mesmo tendo muito a perder, por não ter feito quando não tinha nada.

Querendo ou não, não é como se ele tivesse tido alguma escolha em algum momento. Podia contar nos dedos de uma mão os poucos momentos felizes que teve quando era pequeno, pois logo seu pai conheceu outra mulher, apaixonou-se por ela e fugiu com todo o dinheiro que tinham. A estrutura frágil dos Xu não resistiu à tempestade e rapidamente cedeu, esmagando todos no processo.

O irmão de Minghao sempre foi um caso perdido, rebelde sem causa. Mesmo quando ainda tinham ao que se agarrar, ele nunca pareceu se contentar com o pouco que possuíam e buscava sempre por mais, ganancioso demais para perceber que sempre tentava morder mais do que conseguia mastigar. Não foi surpresa quando ele começou a cometer pequenos delitos e largou a escola, mas no fundo o ruivo o invejava por não ter mantido as esperanças mesmo quando já não tinha mais o que fazer. Talvez ser realista desde o começo tivesse servido de algo.

Já sua mãe foi completamente corrompida de dentro para fora, como dinamite explodindo em uma mina. Passou pelas várias fases de aceitação: a incredulidade veio primeiro num surto violento, que destruiu boa parte da casa e uma grande fração da relação familiar que ainda restava. Depois veio a tristeza, que fez Minghao se ajoelhar no chão e usar suas costas para sustentar o peso de sua mãe pendurada no teto com uma corda no pescoço. Por fim veio a mágoa, que amargou o resto da doçura que restou naquela mulher e envenenou o pouco amor que ela ainda tinha por seus filhos.

Nenhum deles tinha culpa, mas todos estavam feridos: a senhora Xu via em seus filhos o reflexo e restos de seu ex-marido. O irmão do chinês nunca esteve satisfeito com as migalhas e vivia como um cão vadio nas ruas, buscando pela carcaça de ouro que lhe encheria a barriga. Já Minghao estava procurando pela chance de viver, pois sentia-se no inferno todos os dias. Sufocado. Com certeza ele era o menos expressivo naquela casa, mas não estava atrás de ninguém no quesito de sentir; ele sentia, e muito.

A culpa consumiu Minghao todos os dias desde que ele fugiu para o Japão, sendo motivo de seus pesadelos e noites sem dormir por muitos anos. Foi uma ideia mal-digerida, mas com muito custo o ruivo conseguiu enfiar em sua cabeça que ele só fez o que sua família toda tinha vontade de fazer mas não tinha coragem. Provavelmente eles também fariam o mesmo se tivessem a chance, e o fato de não terem vindo lhe procurar só mostrava que sua fuga provavelmente foi o estopim para que eles finalmente percebessem que não queriam aquele tipo de vida. Aquilo não era viver.

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