Capítulo 14

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14

Viviane passou a viagem toda até Santa Catarina sem trocar uma única palavra comigo, o que foi bom porque eu não tinha a mínima vontade de falar com ela ou com qualquer outra pessoa. Tinha certeza de que foi ela quem implantou essa ideia na cabeça da Dara. Quando chegamos, Viviane me mostrou o meu novo quarto, me mandou arrumar tudo e ir dormir que amanhã já começavam as minhas aulas no colégio novo, último ano.

Deixei minhas malas no canto do quarto, fechei a porta e me joguei na cama. Só conseguia pensar em como a banda ficaria e o que Carolina iria pensar. Sumir do nada, sem explicação e sem me despedir.

Droga! — praguejei.

Peguei o walkman do vovô e escutei pela milésima vez as músicas da fita cassete. Pensando e tentando descobrir como seria daqui para frente.

Um ano longe de tudo aquilo que eu amava.

(...)

ACORDA ANNA JÚLIA! — Viviane batia incessantemente na porta do quarto. — Aqui as coisas são diferentes, sem atraso, o café já está na mesa.

Mal tinha notado quando adormeci. Guardei o walkman na gaveta da mesinha ao lado da cama e tirei umas roupas da minha mala, indo direto ao banheiro para me vestir e descer, não estava com ânimo para me rebelar contra Viviane. Na verdade, eu não tinha mais ânimo para nada. Já pronta, peguei minhas coisas, tomei o café e fui até o ponto onde o transporte passava.

O colégio era maior e mais chique do que o antigo e isso, junto com o fato de ser novata e não conhecer ninguém, me deixou mais acuada. Era tudo novo e eu estava sozinha. As aulas passavam em uma lentidão absurda, o que me fez pensar em Larissa, seus fios vermelhos esvoaçantes e os olhos enormes, cheguei até sentir falta de Rogério Eugênio e sua espinha enorme no meio da testa oleosa. Santa Catarina não era para mim, não tinha nada de familiar, ninguém.

Quando o sinal bateu, eu levantei e fui para a cantina assim como todos, peguei o meu almoço e sentei na única mesa mesa mais afastada, onde só tinha uma menina.

— Oi! — ela sorriu assim que notou minha presença, se aproximando até ficar em minha frente. — Meu nome é Alice, a gente tá na mesma turma. — a garota tinha os cabelos lisos longos e castanhos escuros, os olhos puxados e usava uns óculos maiores do que o seu rosto gordinho.

— Anna Júlia, mas meus amigos me chamam de Annaju. — sorri de volta.

— Prazer em te conhecer, Annaju, alguns me chamam de Lice. — deu de ombros. — Você é nova aqui? Percebi que tem um sotaque diferente, é do nordeste?

— Sim, eu cheguei ontem. Sou de Serro Azul do Agreste.

— Bom, seja bem vinda, espero que goste daqui!

Outras meninas chegaram e se sentaram à mesa, Alice nos apresentou e eu voltei a comer, respondendo, de vez em quando, as perguntas que eram direcionadas a mim. Alice era divertida, engraçada e, curiosamente, tudo que ela usava parecia muito grande para ela, desde os sapatos até as roupas. Depois do almoço tivemos mais duas aulas e fomos dispensados. Nem o colégio, nem as pessoas eram ruins, mas eu mesmo assim não conseguia me adaptar.

Sentada no banco ao lado da janela do transporte, me peguei pensando que agora estaria indo para a garagem de Caio ensaiar com a banda e discutir sobre possíveis apresentações em algum bar. Talvez, quando eu chegasse, Carolina estivesse lá à minha espera, só para depois irmos a algum lugar ou apenas caminhar de mãos dadas. E se ela me esquecesse? E se encontrasse outra pessoa, alguém que ela goste mais? Como eu poderia passar um ano aqui longe dela sem saber o que vai acontecer depois?

Os dias em Santa Catarina passaram assim: monótonos e solitários, cheios de preocupações sobre minha vida em Serro Azul. Cada parte da minha nova rotina me lembrava da velha e eu me perguntava como todos estavam. Às vezes, antes de dormir, imaginava que Dara vinha me buscar, dizendo que cometeu um erro, que poderíamos ter conversado melhor sobre tudo. Outras, eu pensava em meu avô, o que ele acharia disso e como ele lidaria.

As consultas com a psicóloga aconteciam duas vezes na semana, às terças e às quintas feiras, era sempre a mesma coisa: Como você está se sentindo? Como você está em relação a seu avô? Tem algo para me contar? As respostas eram sempre monossilábicas, evitava o contato visual e qualquer coisa que pudesse expressar o quanto eu estava triste. Porque esse foi o único sentimento que sobrou depois da negação e da raiva: a tristeza.

Após dois meses, eu fiz amizade com Alice. Às vezes íamos a um fliperama quando a aula acabava. Ela falava muito, o que era ótimo porque eu normalmente estava calada e distante. Alice gostava de jogos antigos e mangás, tinha sempre um na bolsa. Quando eu contei a ela que tocava em uma banda, ela se amarrou, pediu para que eu a chamasse para um show nosso e pela primeira vez em dias eu fiquei feliz. Contei tudo sobre todos da banda, sobre os shows e a sensação, até cantei um trecho de uma música que estava escrevendo. 

Outro tópico era a música. Mesmo longe da banda e sem a minha guitarra, eu comecei a compor mais algumas letras no meu caderninho, mas nunca me agradava. As letras eram quase sempre melancólicas e sem vida. Então eu riscava tudo, jogava o caderno longe e voltava a escutar a fita cassete do vovô.

Viviane parecia feliz quando minha mãe ligava para ela e Lucas falarem comigo, dizia que eu estava melhorando e me comportando muito, que minhas notas aumentaram e que não tinham com o que se preocuparem, mas que eu precisava aumentar as idas à consulta. Isso tudo me revoltava, ela ao menos se preocupa em perguntar como tudo estava indo e enchia o ouvido da Dara de mentiras. O pior de tudo era que eu não podia fazer nada. Lucas passava horas no telefone me contando sobre os animais marinhos e às vezes eu adormecia ao som de sua voz melodiosa.

— Anna Júlia, você dormiu outra vez? — disse uma vez quando permaneci muito tempo em silêncio. — Annaju — Lucas quase nunca me chamava assim, ele odiava chamar as pessoas pelo apelido já que elas tinham nome e assim deveria ser segundo ele. —, eu estou com saudades. — a voz trêmula fez com que eu imaginasse seu rosto vermelho e choroso, cortando o meu coração. — Volta logo para casa, por favor. — e desligou antes que eu dissesse qualquer coisa. 

Não era só eu que estava sofrendo com tudo e isso me machucou mais do que tudo nos últimos tempos.

Sempre escutei que a dor passava, mas nunca me disseram como suportar enquanto ela não ia embora.

Como aguentar a dor da perda do meu avô? Como aguentar a dor de ter sido afastada de forma tão abrupta daqueles que eu amava? Como eu poderia me adaptar a tudo isso?

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