Capítulo 06

44 7 0
                                    

David Rabelo

Eu estou completamente apático. Tudo o que aconteceu hoje só me fez ver que eu realmente estou em perigo. Sinto pavor ao me lembrar de tudo o que eu sofri naquela mata e, de tudo que veio depois. Aquela conversa com o Detetive Caio me deixou ansioso. Além disso, ainda tem as ligações. Aquela maldita voz que me persegue como se fosse o demônio em busca de suas presas.
Depois do interrogatório maquiado de conversa, o Detetive Caio me trouxe até minha casa. Estava muito tarde, nem tive medo de alguém na vizinhança me pegar saindo de dentro de um carro estranho, que pertence a um homem estranho.
Só quando eu estava quase saindo do carro que notei que o Detetive é absurdamente bonito. Tem olhos verdes, cabelos loiros na altura do pescoço, pele igual a de bebê e tem um cheiro incrível de menta. Eu acho que ele estava mascando chiclete antes de iniciarmos a conversa.
Ele não é muito mais alto que eu, deve ter 1,75m ou 1,78m.
O jeito como ele anda também me atraiu - mas, só notei isso depois.
Ele colocou a mão em meu ombro antes que eu saísse do carro e pediu para eu ficar calmo, isso, claro, além de me prometer que ninguém viria até mim sem me avisar antes. Ele pegou meu número e, de um jeito meio doido, eu espero que ele me mande mensagem.

* * *

Caminho de forma ansiosa pelo jardim do gigantesco Hospital Universitário, onde eu faço acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
Dei início aos atendimentos há mais ou menos 2 anos, quando eu notei que levar cerca de quarenta e cinco minutos entre desligar o meu computador (que era a última coisa que eu fazia à noite) e ir me deitar, arrumando os objetos da casa, não era algo normal.
Eu fui diagnosticado com Transtorno Obsessivo Compulsivo logo de cara. Eu tinha medo de a Ellen, minha irmãzinha, morrer, caso eu não fizesse meus "rituais de organização". Isso estava atrapalhando toda a minha vida. Eu tinha que ajeitar o controle da TV, as sandália da minha mãe, os copos em cima da pia... era um inferno. Mas, depois dos medicamentos tarja vermelha e do acompanhamento com o psicólogo, eu sinto que estou cada dia melhor - ao menos disso.
Fico sentado na sala de espera do consultório, perdido na paisagem arborizada que posso ver através das gigantescas vidraças que se estendem por todo o lado direito do prédio. É como se não houvesse parede ali, apenas a natureza.
Tem uma bancada singela bem à minha frente, de onde a recepcionista - uma moça magricela de cabelos crespos esticados por pranchinha - me encara vez ou outra. Isso me incomoda. Eu acho que ela está me julgando de alguma forma. Será que ela já notou que eu sou gay?!
- Vamos lá, David?!- chama o Jessé, meu psicólogo, da porta que dá acesso ao corredor que vai nos levar direto para o consultório.
O Jessé deve ter uns 26 anos, no máximo - tipo um recém-formado - ele tem a pele clara, cabelos castanhos, olhos também castanhos, usa óculos daquele tipo quase invisível, sem armação em cima ou em baixo das lentes. Além disso, ele usa brincos nas orelhas - parte superior: 2; parte inferior: 1;. Ele também tem uma tatuagem que salta do braço direito - essa eu nunca vi muito bem, porque ele sempre vem com camisa social e as mangas só sobem até a metade da tatuagem, porque ele tem braços fortes, deve malhar direto. Essa tatuagem me parece ser de uma serpente. Uma naja, talvez.
Ele abre a porta do consultório - há duas poltronas, uma de frente para a outra, uma estante com alguns livros didáticos e um amontoado de revistas antigas. Tem uma mesinha de centro feita de madeira prensada, um paninho de crochê vermelho ao centro dessa mesa e um jarro minúsculo com uma rosa ainda menor sobre ele - a rosa é artificial. A janela está parcialmente coberta por persianas desbotadas. Lá fora, consigo ver mais árvores, ouço o som de alguns passarinhos também.
Sento-me na poltrona da direita. O Jessé apanha o caderninho de anotações dele sobre a mesinha de centro e, em seguida, ocupa a poltrona restante. Ele anota algumas coisas naquele caderninho, acho que são os pontos mais relevantes das nossas conversas, talvez para que ele não se perca quando estiver analisando o que eu disse depois de nossa sessão, talvez ele tenha algum superior que precisa saber do andamento das sessões dos pacientes.
- E aí?! - ele me questiona.
Eu o olho meio sem jeito. O Jessé é o único ser humano que me conhece e que sabe sobre eu beijar garotos. Tenho vergonha dele.
- Bem...
- Bem?! - ele anota algo em seu caderninho - Que bom! E o que foi isso no seu braço?
Eu fito  meu braço, o corte é superficial, mas, chama a atenção. Eu deveria tê-lo escondido, mas, acho que eu queria que ele visse.
- Eu sofri um acidente - digo - nada demais.
- Quer falar sobre isso?
- Não acho que seja necessário.
Ele me encara como se estivesse duvidando da falta de importância do meu ferimento - isso me irrita um pouco. Ficamos em silêncio, um silêncio gritante, cortante, até que eu me incomodo:
- Eu saí com um cara noite passada! Houve um momento crítico e eu acabei me machucando.
- Ele fez isso em você?
Eu fico em silêncio, apertando meu próprio braço.
- Certo! - ele diz ao notar que a conversa está indo por um lado que não me faz bem, eu não quero que ele saiba, eu não quero que ninguém saiba - Quando você se sentir seguro e confiante, nós falaremos sobre isso. Você tem certeza de que está tudo bem, não é?!
- Sim, Eu tenho.
- Você tem saído com outros homens?
- Tenho... Não como eu gostaria, mas, tenho.
Eu penso em falar sobre as ligações, mas, eu travo. Fico angustiado demais, eu sei que eu deveria falar, sei que ele seria capaz de me ajudar, mas, eu não consigo dizer nada. O poder daquele desgraçado sobre mim é tão grande, que simplesmente me trava.
- E como isso tem sido para você, David?
- Como assim?
- Bem, você chegou aqui se odiando pelo fato de ser homossexual. Você evitava ao máximo tocar nesse assunto, não se permitia conhecer outros homens, enfim... Saímos desse cenário e, em relativo pouco tempo, você já se sente à vontade para poder conhecer outros homens. E, ainda assim, diz que gostaria de estar saindo mais. Como é isso para você?
Eu fico pensativo. Não tinha notado aquilo antes: eu estava começando a tornar natural o meu modo de ser.
Apesar de me sentir culpado ainda, eu estava começando a vivenciar quem eu sou de verdade. Eu deixo um sorrisinho escapar.
- É muito bom! Eu estou começando a ficar feliz.
Ele sorri de volta para mim. Vejo satisfação nos olhos dele...

* * *

Depois da sessão de terapia, ando de volta pelos jardins do hospital. Estou cabisbaixo, sem querer encarar o mundo ao meu redor.
Às vezes, sinto uma culpa e angústia gigantescas por não dizer toda a verdade ao Jessé. Ele está disposto a me ajudar sempre que eu preciso, mas, eu não tenho coragem. Não quero perder nossa relação de paciente-terapeuta. E só de cogitar falar sobre aquelas ligações, eu me amedronto a tal ponto, que fico travado.
Meu celular vibra em meu bolso. Sinto o coração acelerar, a boca, resseca.
Apanho o aparelho e o pesadelo acontece. No display:

Número Desconhecido Ligando

Minhas mãos ficam trêmulas, eu já parei de andar. Penso, numa fração de segundos, se eu devo ou não atender.
Deslizo o dedo para a esquerda e atendo à ligação.
-Oi, veadinho! Você tá andando muito por aí, né?!
- Quem é? - eu indago, a voz embargada, a respiração curta e veloz.
- Não te interessa, sua puta! - disse a voz, um tom ameaçador, intimidador - Tu toma cuidado, senão eu te mato, viu?! Se a Davidizinha não ficar quietinha na dela, vai sobrar, ouviu?!
Eu  não consigo dizer mais nada.
Desligo o telefone, colocando-o logo em seguida no bolso da calça.
Engulo saliva para tentar hidratar a garganta e acelero o passo em direção à parada de ônibus.
Fico ainda mais aterrorizado: dessa vez, a voz ao telefone era de outro cara.

Gay KillerOnde histórias criam vida. Descubra agora