Capítulo 07

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Caio Barreto

Estou acordado no meio da madrugada. A garoa paulistana ainda dá as caras lá fora. Totalmente nu, estou sentado numa das poltronas de bambu da varanda do meu apartamento, bem ao lado da mesinha de centro que completa o conjuntinho de bambu que comprei junto com a Sheila há alguns meses, quando decidimos nos mudar para esse apartamento.

Encaro a escuridão parcial da madrugada bem diante de meus olhos, se estendendo através dos edifícios ao redor do meu, a massa cinzenta de nuvens no céu, tímidas, com medo de soltarem de vez toda a água que carregam.

Está bem frio, mas, não me incomodo. Eu quero sentir o frio, ele me ajuda a pensar.

Revejo, em mente, várias e várias vezes a imagem do cadáver do Rafael. Depois, passo para a imagem do corpo do Humberto Lira e, depois, para as fotos que vi do corpo do Miguel Soares. Todos nus, como eu estou agora, só que sem vida, com a femoral direita perfurada e os lábios costurados. Depois, pego-me pensando em David Rabelo.

Que situação mais complicada a daquele garoto. Se ele não tivesse corrido a tempo, teria sido mais um com a femoral perfurada e os lábios costurados.

Maldito maníaco doente! Por que diabos alguém faria uma atrocidade daquelas a pessoas, aparentemente, inocentes?!

A possibilidade de serem crimes movidos por homofobia não pode ser descartada de forma alguma, mas, e se não for?! E se tiver outra explicação?!

Aparentemente, nenhuma das vítimas tinha nada em comum, além do fato de serem homossexuais. Será que era apenas isso mesmo?

Na realidade, todos os corpos foram encontrados em regiões desertas. No caso do Rafael e do Humberto, uma mata. Os locais não eram tão distantes um do outro. O Miguel, por sua vez, num terreno abandonado. O terreno também não era muito distante da mata.

Então, o assassino estava por perto. Ou, imaginando que ele seja esperto de verdade, só matava naquela região quando, na verdade, estava bem longe dali, fingindo ser um cidadão de bem.

Sinto minha boca ressecar. Preciso de um chiclete de menta.

Levanto-me da poltrona de bambu e vou até o banheiro, no cesto de roupas sujas. Eu acabei esquecendo o pacote de chicletes de menta dentro do bolso da calça que estava usando mais cedo.

Encontro a calça e, felizmente, meu pacote de chicletes pela metade.

Abro um e jogo na boca.

De repete, me vejo me encarando no espelho do banheiro, apesar das olheiras que começam a aparecer, mantenho-me bonito. Os olhos verdes herdados de meu pai, os cabelos loiros que vieram dele também, o peitoral definido, com alguns pelos loiros.

A Sheila sempre faz questão de dizer que ama meu peitoral. Ela diz que passa segurança para ela. Mas, eu receio que seja só por bondade que ela diz isso. Na realidade, eu não sou capaz de passar segurança a ninguém.

Caminho de volta para a varanda, mas, desisto de ir até lá e me deito no sofá da sala.

A Sheila continua dormindo no quarto, feito um anjo. Sinto meu peito apertar quando penso na Sheila e em tudo de bom que ela sempre fez e faz por mim.

Quando eu a conheci, ainda durante a graduação, eu estava chegando ao fundo do poço. Tinha acabado de ser miseravelmente abandonado pelo antigo amor da minha vida - ou por quem eu achava que fosse o amor da minha vida - o Mateus.

Eu e ele tínhamos a mesma idade, só que eu era mais velho alguns meses. Parecíamos ser almas-gêmeas e toda a nossa vida, em nossa cabeça, estava muito bem estruturada. Só que nossas famílias não sabiam de nada e, certamente, não iriam concordar com aquilo. Isso pesava muito, mas, não nos impedia de sonhar com o futuro. Casados ou algo assim. Aquela questão toda de sermos dois homens que se amavam não fazia qualquer diferença para nós dois. Era normal, apesar do que a maldita sociedade poderia pensar.

Não era nada assumido publicamente, muito pelo contrário, para todos, éramos apenas bons amigos que dividiam um apartamento apertado perto do campus.

Às vezes, a gente até ficava com umas meninas nas festas da faculdade. Era divertido e fazia parte do pacote: finja ser quem você não é e fique em paz.

- De novo fora da cama, amor? - a Sheila fala, aproximando-se de mim, me puxando de volta para o presente.

- É... sem sono.

- Eu tenho notado que o caso do Serial Killer está tomando proporções enormes nos ultimos dias - ela senta-se ao meu lado, perto da minha região pélvica, encostando sua camisola de seda em mim - É, sem duvidas, um caso que vai gerar muita euforia. Você sabe disso, não sabe?!

- Eu sei. Já são três vítimas, quase quatro.

- Quase quatro?!

- O último corpo que encontramos - eu falo - Era um encontro a três. Só que um dos três era o nosso cara. Ele matou um, mas, um rapaz conseguiu fugir. Ele levou uma facada no braço, um corte totalmente superficial. Nada demais.
- Então, temos uma testemunha! Isso é ótimo, Caio, vai facilitar o reconhecimento do cara.
- Eu pensei isso, só que o David disse que, por causa do escuro e por conta do pavor que ele sentiu no momento, ele não conseguiu ver muita coisa do cara, além de uma tatuagem no deltóide esquerdo.
- Bom, já é um começo!
Eu a olho nos olhos, ela parece cansada, mas, não se deixa abater. Ela quer dormir, só que sente a necessidade de estar aqui comigo.
- Vamos voltar pra cama? - eu falo, mais por ela que por mim.
Ela apenas estende a mão em minha direção. Eu apoio a minha mão na dela.
Juntos, voltamos para o quarto.

* * *

- Tatuagem no deltóide esquerdo não quer dizer muita coisa! - fala a Carol.
Estamos em minha sala na Delegacia. O caso está parado. Esse desgraçado é muito bom em sumir do mapa.
- Esse menino tem que se lembrar de mais alguma coisa, Caio! Ele é a nossa única opção no momento.
- Eu não quero expô-lo demais agora, Carol! - eu digo, sinto desejo de mascar um chiclete, mas, esqueci meu pacote em casa - Ele ainda deve estar abalado.
A Carol revira os olhos. As vezes, ela tem pouca empatia. Não julgo.
- Enquanto isso - ela esbraveja - A gente deixa o assassino solto por aí pra matar quantos ele quiser.
Somos interrompidos por Leonardo, um dos policiais responsáveis pelas rondas no distrito da delegacia.
Ele é alto, marrento, forte, tipo aqueles caras de filme de ação. Tem cara de poucos amigos e, realmente, cultiva poucos. Não é uma das pessoas mais agradáveis da Delegacia.
- Detetive Barreto - ele diz - A gente prendeu um cara que deu uns tapas num traveco essa madrugada. Estive pensando se ele não tem ligação com a morte dos desviados lá que vocês dois estão investigando.
- Toma vergonha na cara, Leonardo! - esbravejou a Carol, como eu já imaginava que ela faria - Não se fala assim de ninguém. Não é traveco, é travesti. E ninguém aqui é desviado de nada, que absurdo. É doentio esse tipo de coisa sair da boca de um agente da lei.
O Leonardo respira fundo.
- Foi mal!
Depois, ele olha para mim, como se quisesse ignorar a presença da Carol.
- Ele tá lá na carceragem. Quando quiser, é só chegar.
Seguimos o Leonardo até a carceragem. Não temos muitos detentos aqui. Geralmente, eles são liberados com 48 horas ou transferidos para uma penitenciária.
Seguimos até a cela que fica no final do corredor.
- Olha aí o playboy! - disse o Leonardo.
Olho direto para o fundo da cela. A princípio, ele está de cabeça baixa, mas, quando ele nota nossa presença, ergue o queixo e me encara nos olhos.
- Oi, Detetive! - ele fala, os olhos em chamas.
Eu fico calado, mas, minha cabeça diz: Puta que pariu!

Gay KillerOnde histórias criam vida. Descubra agora