David Rabelo
Meus piores pesadelos parecem mais reais a cada instante que se passa e isso não é bom.
Depois da última ligação que eu recebi, imaginei tantas coisas, tantas explicações, tantas possibilidades.
Era uma voz diferente, disso eu não tenho dúvidas, mas, de quem era? Quem estava querendo me fazer mal? E ainda tinha o episódio nos fundos do estacionamento da boate me atormentando. Me atormentando demais.
- Tá distante hoje, hein?! - fala a Lisa, se aproximando de mim.
Estamos no pátio do colégio, eu estou meio longe de todo mundo, sentado num dos bancos do jardim, quero pegar um pouco de sol, pra tentar aquecer o corpo.
- É, eu estou pensando na prova de biologia - minto.
Lisa se senta ao meu lado, ela estava fumando, consigo sentir o cheiro do cigarro.
- Até parece! Você nunca precisou se preocupar com biologia, David Rabelo! Qual é?! Diz aí!
Eu fico em silêncio um pouco. Não posso contar a verdade para a Lisa, apesar de saber que ela iria me apoiar incondicionalmente. Não me sinto à vontade ainda. Não estou seguro.
- Eu estou passando por alguns problemas em casa... Minha mãe é meio doida.
- Afff - ela range, tipo uma porta velha - Pais sempre dão problema, é igual a defeito de fábrica, sabe?! Eu também não estou num dos melhores momentos lá em casa. Mas, relaxa, baby! Isso é só uma fase. Tudo nessa porra de vida é só uma fase! E olha que eu nem tô lendo autoajuda.
Sorrimos juntos.
- E de onde vem essa frase filosófica, afinal?
- De mim mesma! - ela da de ombros - Eu acho que se chama amadurecimento.
- Pra uma garota de 17 anos, você até que está bem madura!
Sorrimos de novo. O cheiro de cigarro aumentou.
- Problemas familiares à parte - ela disse, ajeitando os cabelos tingidos atrás da orelha.
Hoje, reparando bem, eu estou achando a Lisa muitíssimo parecida com a Arlequina.
Ela está com duas Marias-chiquinhas, uma de cada lado da cabeça. A camisa do uniforme escolar foi cortada pela metade, deixando a barriga à mostra e a gola também se foi, por onde da para ver as alças pretas do sutiã, está de all-star que, inicialmente era branco, mas, tem partes tingidas de rosa e amarelo. A maquiagem é pesada, com sombra preta nos olhos e batom vermelho nos lábios.
- Vai ter um frevo hoje à noite na casa daquele nerd fedorento do segundo ano, sabe qual é?!
- Sei - eu digo, sorrindo de leve - O Arthur!
- O dito cujo! Bom, tá a fim de ir? Eu vou levar um peguete que já tem habilitação, a gente pode te pegar na sua casa e te deixar lá depois do rolê!
Eu pensei em recusar a oferta logo de cara - como faço normalmente - só que, dessa vez, eu me senti tentado a ir. O pensamento de morte me invade a todo instante e só tem aumentado depois que notei que há mais de uma pessoa querendo minha cabeça numa bandeja. Então, por que não aceitar o convite? Por que me negar a viver o tempo que - pelo desejo daqueles dois - pouco me resta?!
- Claro... eu vou sim!
- Uau, pequeno-grande-homem! - a Lisa comemora - Parece que o amadurecimento não chegou só para mim, não é?!
Eu dou um sorriso para ela. Não sei o que dizer.
- Ótimo! - ela se levanta - Toma banho direitinho, lave o pinto que, quem sabe, hoje você não perde esse cabaço aí, hein?!
Ela sorri ao final, indo embora sem se preocupar se me deixou constrangido ou não.
Não fiquei constrangido. Eu não me importo que ela pense que eu seja virgem, isso até me reconforta. Mas, me preocupo com a possibilidade - e, se eu a conheço bem, como acho que sim - a quase certeza de que ela vai tentar me arrumar uma garota essa noite.
Olho para minhas mãos, estão trêmulas.
Estou levemente arrependido de ter aceito o convite.* * *
Amarro os cadarços do meu all-star preto e me ergo da cama, para me encarar no espelho do guarda-roupa.
Estou bonito.
Meu suéter que me deixa parecido um pinguim foi deixado de lado. Estou com uma jaqueta jeans com uma blusa preta por baixo. Uso calças jeans também.
Minha mãe entra no quarto, parece que vinha me dizer algo, mas, não disse. Em vez disso:
- Uau, Don Juan! - ela me dá dois tapinhas em ambos os ombros - Pra onde você vai, David?
- Uma festa de um carinha da escola. Não é nada demais.
- Nada demais?! - ela sorri - Não acho que seja "nada demais!". Você está lindo, filho!
Ela apoia a cabeça em meu ombro - o que me deixa meio agoniado. E nós dois nos olhamos através do espelho.
De modo geral, minha mãe, dona Natália Rabelo, é uma boa mãe. Mais jovem do que uma mãe de um garoto de 18 anos deveria ser e mais flexível também.
Flexível até certo ponto. Algo me diz - e eu sempre confio em meus instintos - que ela vai reagir de forma péssima à notícia do século: David Rabelo é gay.
Balanço a cabeça e acerto a jaqueta para afastar os pensamentos negativos.* * *
A casa do Arthur - também chamado de Arthur Fedobinha, por causa do cheiro de cc que ele tem independentemente do tempo, do horário ou do dia- é uma mansão. Estamos no Jardim América, e, claro, aqui tudo é ostentação.
O namorado da vez da Lisa é um tiquinho engomado. Eles não formam um casal que parece que vai dar certo, em minha opinião. No caminho até aqui, o engomadinho só falou sobre a viagem de férias para o Disney World e sobre as próximas férias, que ele vai para Paris. Que desnecessário. Acho que até a Lisa já tinha se arrependido. Ela também é contra o consumismo e todo o mercado e práticas não minimalistas ocidentais.
Sinto cheiro de maconha pairando no ar, o que não me incomoda. Pego uma bebida quente sobre a mesa e sigo para um canto mais reservado da casa. Eu tenho dificuldade em me enturmar.
Por todos os lados, gente usando iPhones caros. Eles postam stories a todo instante e parecem ter a necessidade de aparecer. Aparecem para se sentirem queridos, importantes, influentes...
Até o Arthur-Fedobinha está dando uma de digital influencer hoje. Eu dou um gole na bebida doce e sorrio sozinho. Que mundo mais louco.
De repente, uma notificação no meu celular. Eu o apanho no bolso da calça e vejo no display que veio do app de paquera.
Sinto-me gelar.
Abro o aplicativo e noto que é de um cara que está há menos de 2 metros de mim. Não tem foto no perfil. Deve ser sigiloso, igual a mim.
Fico gelado.
Ele está na festa!
Abro a mensagem:"Estamos perto! Tem um banheiro no segundo andar. Topa?"
Eu hesito. Nessa festa só tem gente do colégio. Eu não posso ser descoberto. E se esse cara já souber quem eu sou e só queira me expor?!
Me lembro de novo das ligações ameaçadoras. Do risco de vida que eu estou correndo. Em seguida, sinto meu machucado no braço latejar, como se quisesse falar comigo.
Tomo mais um gole da bebida quente e digito:"Tipo!".

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Gay Killer
Mystère / ThrillerUma série de assassinatos está acontecendo em São Paulo. A única coisa em comum entre as vítimas é o fato de todas serem homens homossexuais. O detetive Caio Barreto é designado para o caso. Enquanto isso, o jovem David começa a receber telefonemas...