Capítulo 05

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Caio Barreto

Meu chiclete de menta está fazendo seu trabalho perfeitamente: me mantendo calmo.
Estou dirigindo pela Marginal Tietê, são 03:57. A garoa paulistana me faz lembrar que a natureza ainda existe, mesmo em meio aos arranha-céus de São Paulo.
Olho pelo retrovisor interno do carro, estou com os olhos vermelhos. Meu sono foi interrompido. Meu celular recebe notificações no banco do passageiro. De relance, percebo que alguém curtiu minha foto no Instagram.
Fui acordado no meio da madrugada por um telefonema de Carol: "Nosso cara apareceu de novo!".
A Sheila continuava dormindo, quando eu me levantei delicadamente para não acorda-la. Mas, quando eu terminei o banho, ela já estava acordada. Ela sabia que era algo do trabalho. Pediu pra eu tomar cuidado e mandar notícias.
Mesmo sonolenta, ela sempre cuida de mim.
Chego à Delegacia e estaciono minha Tucson em minha vaga. Sigo até o interior da Delegacia e, quando finalmente entro em minha sala, já me deparo com a Carol, jogando cartas no celular.
- Carol - eu digo - Cadê?
- O cara atacou novamente, dessa vez, nos arredores de uma boate gay aqui no centro! - ela saiu do joguinho - Caio, esse cara é um doente!
- Você ainda tinha dúvidas? - eu questionei - Quem foi a vítima agora?
- O IML não me deu muitos detalhes, estão nos aguardando lá.
A Carol tem aquele gênio difícil, apesar de ser uma pessoa absolutamente correta em tudo o que faz. Não vou esconder que, por vezes, esse tom autoritário dela me irrita profundamente. Mas, eu finjo que está tudo bem.
Descarto meu chiclete na lixeira e abro outro, jogando-o imediatamente na boca. Dessa vez, não ofereço nada a Carol, ela me deixou irritado.

* * *

Chegamos à Boate Gay onde nosso cara atacou novamente. A garoa ainda está presente. Carol conseguiu arranjar uma desajustada capa de chuva azul, eu, deixo-me molhar.
Seguimos por um amplo estacionamento aberto, cercado por pinheiros e pés de ninho. Os holofotes refletem no asfalto molhado.
Ao fundo do estacionamento, misturadas à mata, da para ver as luzes do giroscópio da viatura do IML. Dessa vez, nosso cara atacou não tão longe do asfalto.
Vamos seguindo mata a dentro. A imagem vai se abrindo para nós e percebo logo os peritos fazendo seu trabalho. Eles já isolaram a área com a faixa amarela.
Dessa vez, quem me recepciona não é o gorducho careca da outra vez, mas, um moreno alto, olhos claros, barba por fazer, peito malhado. Parece mais um astro de cinema.
- Boa noite! - fala o bonitão - Vocês devem ser da Investigação...
- Boa noite! - eu respondo - Detetive Caio Barreto e Detetive Caroline. Somos da divisão de homicídios. O que temos?
O rapaz pega em minha mão e, em seguida, cumprimenta Carol.
- Parece que o Assassino Gay atacou de novo, Detetive Barreto!
À medida em que ele ia falando, íamos nos aproximando do cadáver da vez. As lanternas nos suportes tripé estavam apontando para ele. A manta branca estava deixando o peitoral e parte da virilha direita à mostra. Mais uma vez, uma incisão na femoral. Mais uma vez, a boca suturada.
- Os documentos estavam ao lado do corpo - segue dizendo o bonitão - Rafael de Araújo Filho, ele tem 26 anos, é técnico de enfermagem. Uma facada na femoral direita e a sutura na boca.
- Ambas com precisão cirúrgica...
- Exatamente, Detetive Carol! - diz o perito.
- Mais uma vez, sem testemunhas?! - eu indago.
- Dessa vez, temos uma!

* * *

Quando o bonitão me levou até a ambulância do IML, eu já avistei logo um rapaz: estava envolto em um cobertor fornecido pelo próprio IML, a cabeça estava baixa, coberta por um capuz de suéter, estava sentado na parte de trás da ambulância, as pernas não alcançavam o chão. O perito me deixou falar com ele a sós.
- Boa noite! - eu digo, aproximando-me do rapaz.
- Boa noite! - ele disse entredentes, me encarando.
Por um segundo, senti certa semelhança entre o rapa de capuz e eu mesmo. Apesar de termos biotipos diferentes - eu sou loiro, olhos verdes, ele, cabelos castanhos, olhos escuros - há algo nele que se parece comigo.
- Noite conturbada, não?!
- Pois é...
Ele evita contato direto comigo. A cabeça voltou a ficar abaixada.
- Eu sou o Detetive Caio Barreto, da Divisão de Homicídios.
- David Rabelo!
- Podemos conversar sobre o que aconteceu aqui essa noite, cara? - eu indago.
O rapaz volta a olhar para mim, percebo que ele está amedrontado, agoniado.
- Ninguém pode saber, policial! Eu não posso aparecer no jornal, minha família não sabe...
- Fica tranquilo! - eu coloco a mão no ombro esquerdo dele, quero passar confiança - Eu não vou estampar sua cara nos jornais! Você tem quantos anos?
- 18...
- Certo, David! Pode confiar em mim. Sua identidade será mantida em segredo e eu mesmo me encarrego de levar você pra casa. Ninguém vai saber que você estava aqui.
- Eu não sou assumido...
- Tudo bem.
Eu o fitei por um segundo. Estava ainda amedrontado, mas, pelo menos, respirava melhor.
- O que aconteceu aqui, David?
- Eu marquei encontro com esse cara aí! - o David disse, parecia envergonhado, fitava o chão - Aí eu vim até aqui, só que ele tinha chamado um terceiro cara... Esse outro cara... Era meio violento.
- Foi esse outro cara que fez isso com o Rafael?
- Sim... e isso comigo - ele disse e, em seguida, mostrou-me o antebraço esquerdo, onde havia uma marca de corte que tinha uns 10 cm. Não era nada profundo.
- Foi com o que? - eu questionei.
- Uma faca , eu acho. Eu consegui me livrar dele. Corri até o estacionamento, foi quando vi um guarda da boate, contei pra ele o que aconteceu. Ele que chamou vocês.
-Entendi... Você reconheceria esse cara, David? Nós estamos atrás dele, você nos ajudaria demais se fizesse o reconhecimento.
- Estava escuro... - ele abaixou a cabeça de novo, escondendo o braço - Era alto, meio forte...
- Você sabe que não vai ser a última vez em que vamos nos falar, não é ?!
- Minha mãe não pode saber, por favor, eu não sou assumido.
- Fique calmo! Ninguém vai saber, mas, eu preciso do seu numero de telefone.
David hesitou um pouco, parecia que aquilo de sigilo era algo que realmente importava para ele, mas, no fim das contas, me passou o número de telefone.
Alguma coisa naquele rapaz, além da aparência, me fazia lembrar de mim mesmo quando eu tinha 18 anos.
O sigilo, o medo. David Rabelo era meu autorretrato. Eu também quis sigilo, eu também tive medo.

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