XXI. Todos temos nossos demônios

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S/D

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S/D


1923, FRANÇA


Teodora me pragueja sem saber. Estou fritando sua cabeça, mas sou incapaz de me controlar. Para ela sou apenas uma bola de fogo brilhando no céu, mas sou de fato mais do que isso. Seguindo-a para todos os cantos, escutando todas as suas lamentações, compadecendo presenciando suas dores sem poder consolá-la. Sou a sombra de todos e em todos os lugares. Queria que ela pudesse me consolar também porque o que sinto é anormal, me cega. O que sei estar prestes a acontecer me destrói.

A mulher, minutos atrás, entrou em um trem carregando uma pequena mala marrom. Não quis chamar atenção ao deixar sua casa, mas estava indo embora. Deixando mais uma vez os humanos aos quais se apegou demais. Faz muito disso, movida pelo medo. Teodora entrou na estação de e depois no veículo, que logo partiu.

Seu destino é a Irlanda, onde Louis mora com a esposa, mas ainda precisará pegar outros meios de transporte até lá. Está recomeçando, mais uma vez, e tem medo do que Coco pensará disso. Pensa que será odiada, e com razão, mas não recua. Afinal, a amiga agora é casada com um inglês e tem três filhos, parecia feliz enquanto Teodora se sentia cada vez mais um peso morto para Coco, mesmo que ela nunca tenha dito isso. Pensa que a história entre ela e a francesa se repetiu como a dela com Melitta e não quer, nem em um milhão de anos, assistir outra pessoa que ama tanto morrer. Sabe ser incapaz de suportar e por isso foge. As duas nunca se amaram como amantes, mas a conexão existente ultrapassava o entendimento humano e perdê-la para o inferno seria como um tira na mão de Teodora, que acaba de descer na cidade onde há o porto e de onde sairá seu próximo meio de transporte.

A França não era mais a mesma depois da primeira guerra mundial. Teodora mudou também. Todas as mortes, os trabalhos braçais e pesados que, pela primeira vez na vida, precisou fazer, e o desespero das famílias. Foi uma época de tanto luto que ela voltou a usar preto, mesmo que tantos anos depois esteja revezando com o branco.

Em apenas trinta minutos, descobre que a viagem de Brest para a Irlanda só acontece às cinco da manhã, todos os dias, e como passa das cinco da tarde, precisará dormir na cidade. Teodora caminha pelo local desconhecido sem medo, gosta de estar entre pessoas que não a conhecem, mas os olhares em sua direção permanecem graças à sua invejável beleza, mesmo que seus cabelos não estejam mais vermelhos.

Na verdade, agora os cabelos são de um castanho escuro e grudados na cabeça com uma loção perfeita, que o deixa imóvel e brilhante. Os óculos de sol redondos estão sobre seus olhos de cores diferentes e Teodora usa calças brancas com listras verticais em preto, o que a faz se sentir engraçada. É sempre uma loucura se adaptar a cada vestimenta. Um casaco grosso, felpudo e preto cobre seus braços e ela caminha pensativa.

Não está acostumada a voltar atrás em suas decisões, esse é o seu maior defeito, mas está triste e desconectada de seus passos, pensando em sua antiga vida.

— Perdão! — Teodora acaba de esbarrar nela com força. Estava distraída e a mulher caiu no chão com a força da fugitiva contra o seu corpo em uma das esquinas de Brest.

Estende a mão em sua direção, ajuda a desconhecia a se levantar e a mulher desengonçada está fazendo uma careta de dor. Sua mão sangra depois de ter sido arrastada no chão e Teodora retira os óculos. De um olho azul e outro verde, sente-se completamente culpada pelo descuido enquanto encara aquela de casaco bege cobrindo topo o corpo e boca levemente pintada de rosa.

— Tudo bem — sussurra aquela à sua frente, pegando o saco de papel antes com dois crepes, que se espalharam pela calçada. Isso a deixou mais triste do que ter caído de fato. Encara o estrago e suspira, só então olha Teodora. As mãos delas ainda estão presas uma à outra e o líquido vermelho suja a mão da fugitiva.

— Eu te compro novos — sugere aquela responsável pelo desperdício. A mulher de olhos castanhos abaixo de óculos de grau grossos balança a cabeça negativamente.

Teodora fecha os olhos em um suspiro demorado e se pragueja.

— Não precisa, talvez seja um aviso para que eu maneire um pouco — a desconhecida sorri, seus dentes são tortos e ela parece desconfortável. Limpa a mão machucada no saco marrom vazio e ajeita os óculos. Quer ir embora e Teodora se sente ainda pior.

— Eu insisto — fala a de calça listrada em direção àquela de fios marrons cobrindo a cabeça. — Por favor — pede com uma voz de culpa, olha para trás, mas logo volta para encarar aquela à sua frente.

A desconhecida da os ombros. Realmente queria comer aqueles crepes, mas sente receosa por nunca ter visto Teodora na vida. A cidade é pequena e ela conhece todos, mas se lembraria caso tivesse esbarrado com uma mulher de olhos diferentes em Brest. Na vida, para falar a verdade. Sente-se hipnotizada. Ao mesmo tempo que sabe que seria caro comprar mais dos famosos crepes de Brest antes de ir embora do lugar que nasceu para todo o sempre. Agacha-se um pouco para pegar a mala de mão vinho que havia sido derrubada quando caiu.

Estou sorrindo. As duas começam a caminhar em direção à casa de doces, mas sem notar que caminham, em verdade, para a eternidade. Afinal, estamos em 1927 nesta terra de tempo linear. Teodora acaba de encontrar sua energia natural encarnada. Ela é poderosa, emana uma luz própria e tem os olhos sobre Teodora a todo instante. Está encantada, como de fato deveria.

— Mealíosa — apresenta-se até então desconhecida, inserindo-se novamente na vida da mulher. Teodora sente-se satisfeita pela mulher ter aceitado seu gesto, mas se pergunta onde vendem os crepes perdidos.

— Teodora — fala e se sente impactada de certa forma, como se estivesse há alguns dias sem dormir. Ela sorri em direção à mulher que enfia a mão machuca e livre no bolso do grande casaco beje, mesmo que o sol ainda seja presentes, já que a noite logo chegará e há ventos fortes na cidade.

— Está de passagem? — Mealíosa é quem pergunta. Começando a andar e sendo seguida por Teodora.

— Sim — responde Teodora, mas isso traz novamente sentimento de culpa. Elas caminham lado a lado. — E você? — Olhando a mala daquela que acaba de conhecer.

— Nasci em Dublin, mas vim com minha família para cá quando ainda nem sabia antar. Hoje estou indo embora, finalmente — informa Mealíosa, que acaba de parar frente a uma padaria e olha para dentro do local. — Essa cidade tem os melhores crepes — diz, olha Teodora, que acaba de parar também. — E nessa padaria há mel e chocolate, você vai gostar. Que bom que você me encontrou, vai se lembrar de Brest para sempre — sorri. — Para onde está indo, Teodora?

Mealíosa fica alguns instantes parada, olha para os lados e depois diretamente para mim, a sombra ao lado de Teodora, mas não me enxerga. É como se me sentisse. Franzi o cenho e depois olha a fugitiva. Ela começa a entrar no local aquecido.

— Não sei exatamente — responde com sinceridade e a encara mais séria do que desejava quando Mealíosa olha para trás — Irlanda, mas ao mesmo tempo é só uma forma de ir para longe daqui — suspira alto. — Então, vamos na mesma embarcação amanhã?

— Só há uma, então sim — fala baixo a que acaba de tirar o sobretudo bege e entregá-lo a um funcionário. Teodora sorri de forma simples. — E sou capaz de te entender sobre ir para longe daqui. Todos temos nossos demônios, não é mesmo?

E Mealíosa ficaria surpresa caso soubesse que os de Teodora são mais do que abstratos.

— Sim e os meus são muitos — sussurra Teodora para si mesma.


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