XXIII. Ele não merece o pavor que sentirá

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1927, IRLANDA


Três e trinte e três da madrugada.

Apenas a luz da lua ilumina do céu sem estrelas de Dublin. Um sorriso doce se ergue de seus lábios, os olhos vermelhos batem abaixo dos óculos escuros sem pressa e a felicidade é sentida a quilômetros de distância. Lúcifer segura um cigarro entre os dedos da mão direita e fornece nicotina ao seu corpo antes de vir até mim.

Estou sorrindo também, de saudade e amor. Tomo um longo suspiro antes de abraçá-lo com força e ele retribui, apertando minha cintura com força, erguendo-me do chão de pedregulhos. Quando me solta, coloca as duas mãos sobre o meu rosto. É como se não nos víssemos há anos, mas sabemos que não é assim. Apenas estamos com muitas saudades, aquelas que não foram mortas em cento e quatro anos no inferno após o ciclo, porque estávamos ocupados demais tentando quebrá-lo. Estamos ocupados demais.

— Fumar causa câncer — informo, ele solta uma risada genuína. Gosto de vê-lo sorrir assim. Minha voz está fraca, assim como eu. Dou dois tapinhas em seu ombro esquerdo. — Não acredito ele deixou — falo com uma angústia intensa que não posso deixar transparecer. Odeio o motivo de estar aqui.

— Vamos ficar bem sem você lá? — E olha o céu, como se fosse capaz de me ver como sempre, mas o sol brilha do outro lado da terra, mesmo que eu não esteja lá.

Estar aqui me exige muito poder, mas não podia deixar de vir. Alguns sacrifícios são necessários para reestabelecer a ordem e outros para buscar tapar o buraco que se abrirá, é pelo segundo que estou aqui. A estrela de fogo começará a perder seu calor quanto maior o tempo que eu ficar longe dela, mas não pretendo me demorar nesta terra. Lúcifer suspira e me encara mais uma vez, desacreditado da minha presença, e preocupado, explicitamente e com motivos. Os óculos de sol sobre nossos olhos são iguais e me sinto engraçada ao usar esse termo e um objeto que teoricamente protege-me de mim mesma, e nem estou no céu.

— Há quanto tempo está aqui? — Pergunta-me então, levando o cigarro à boca mais uma vez. — Aliás, por que está aqui? — E sua voz é impassível, desconfiada. Com razão.

— Algumas horas — respondo. — Foi o tempo de vê-la e depois te procurar — um sorriso simples deixa meus lábios, Lúcifer ergue as sobrancelhas. — Não acredita em mim — deduzo, ele balança a cabeça para os lados como faz quando se sente contrariado. Sei disso porque o conheço melhor que qualquer um que exista, exceto nosso pai.

Ele joga o resto do cigarro no chão, pisa em cima com o sapato social preto, caro e brilhante. Há uma cartola sobre sua cabeça e me pergunto se ele pensa ainda estar na Era vitoriana ou algo do tipo. Também pelo grande sobretudo preto cobrindo todo o seu corpo. Lúcifer me olha.

— Por que está aqui, Rebeca? — Dou os ombros, balanço a cabeça negativamente e solto o ar preso. Lúcifer às vezes deveria confiar mais em mim, mas ele sabe que ocupo meu lugar ao lado do desgosto de Seth em receber almas terríveis. Só que dessa vez estou aqui por ele. Preciso estar.

— Da última vez que esteve nessa terra, transou com sua própria irmã — ironizo sem rodeios, fugindo da real resposta, Lúcifer faz cara de vômito.

Ele não se lembra com detalhes de tudo o que viveu, sei disso porque meus olhos estão em todos os lugares. Eu vejo todas as coisas, todas as possibilidades, começos e términos. Meu dom é também uma praga, porque sei como essa conversa tem fim. Não quero dizer nada a ele, porque não sou capaz de suportar seus olhos assustados caso saiba. Lúcifer agora retirou os óculos e me olha com suas sobrancelhas tensas. Sei o motivo, ele tenta ler minha mente, mas não consegue. Está tentando, muito, é uma guerra mental entre nós e meu irmão está perdendo. Cerra os olhos, está confuso. Só não sabe que faço isso unicamente para protegê-lo de algo que não quer saber. Ele não merece o pavor que sentirá ao descobrir.

— Sol! — Briga e mantenho-me neutra.

— Você sabia o tempo todo — sussurro, Lúcifer arqueia as costas para trás, engole em seco e pensa em uma desculpa, mas não tem nenhuma. — Você já sabia qual era a energia dela. Descobriu antes de vir para cá — digo sem que minha voz deixe transparecer o desespero que sinto.

Meu irmão me encara coagido por ter sido exposto e minha decepção só não é maior que meu medo do que está prestes a acontecer.

— Não deveria estar aqui, não precisava estar aqui, por que veio então, Lúcifer? — Tento me aproximar dele, mas meu irmão da passos na direção oposta. Não consigo mais conter o que há dentro de mim.

— O que está fazendo, Rebeca? — Sua voz é mais alta e nervosa. — O que está acontecendo? — Quer saber meu irmão gêmeo, que agora veio até mim e colocou as duas mãos sobre a camiseta de seda preta que cobre meus ombros, e seu tom é cheio de angústia e preocupação.

Essa é sua reação diante do líquido vermelho que escorre de meus olhos e já alcança o pescoço branco e fino. Afasta meu cabelo preto de perto do meu rosto e retira meus óculos, não o impeço. Ainda estou concentrada em não o deixar entrar na minha cabeça. Nos encaramos com intensidade. Somos tão parecidos, mas o terror queima dentro dos olhos dele. Lúcifer não merece isso.

— Sol... — E meu nome ecoa entre nós dois. — Eu vim pedir perdão a ela. Precisava me desculpar caso tudo dê errado — justifica-se, com as sobrancelhas tensas e dor na voz.

Vejo o líquido de seus olhos entre nossos rostos, ele está tentando entrar em mim, Lúcifer está começando a ficar desesperado. Só que menos, bem menos, do que vai ficar se souber. Ele com certeza consegue sentir meu corpo já vibrando em dor.

— Fala comigo — pede, começando a ficar ofegante. Procura as respostas em meus olhos, mas não é capaz de encontrada. — Por favor — implora.

Os olhos arregalados, o líquido vermelho que retornou ao seu local de origem, a boca seca entre aberta porque nunca me viu assim.

Não poderia já ter me visto assim alguma vez porque o que está prestes a ocorrer é inédito.

Eu vim me despedir, Lúcifer. E nesse instante, ele consegue escutar o que penso. Está dentro da minha cabeça, da dois passos cambaleantes para trás, confuso. Olha-me com ansiedade e um som alto ecoa no céu, fazendo com que todos os pássaros adormecidos se assustem. Olhamos para cima juntos e quando encaro Lúcifer mais uma vez, ele está de costas para mim.

Não só isso. Azazel está exatamente na frente do meu irmão.

Sinto que posso colapsar a qualquer instante. Um soluço extenso larga meus lábios, seguido por um grito terrível que estremece tudo ao redor. O líquido vermelho deixa meus olhos com maior intensidade, a ponto de espirra além do meu rosto.

Já sabia que isso iria acontecer.

Mas a dor que sinto é pior do que a que senti quando Teodora se partiu. É a pior que já senti em toda a minha existência. Minha luz começa a surgir no céu, os raios ultrapassam a atmosfera de forma brutal, incontrolável e fora e horário. Minha pele brilha em um amarelo extravagante, o dia se inicia em oposto à escuridão dentro de mim.

Há uma lança de zinco atravessando o corpo de Isaac.

FUGITIVOS DO INFERNO 02 -Triângulo Da Morte [EM ANDAMENTO] Onde histórias criam vida. Descubra agora