XXIV. Alguns de nós somos mais irmãos que outros

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2031, TERRA 52, BRASIL


Isaac não estava aqui quando Lorenzo abriu os olhos. A lança de zinco não mais pairava em sua mão e isso o preocupou. Olha para a casa à sua frente, com um alto portão branco e um jardim bonito e florido. Não sabe onde está, essa viagem não foi como as outras. Suas asas não são visíveis e ele veste o mesmo terno que usava minutos antes de entrar no prédio para enfrentar a Morte. Estanha todas as vezes que roupas o cobrem sem que se lembre de as tê-la vestido.

Aperta os dedos das mãos para ter certeza de que o que vive é real e observa o vulto na janela do andar de cima da casa. O vidro está fechado, mas limpo o suficiente para que o dono de uma alma imortal possa ver a jovem loira o encarando com sua reconhecível face de desespero. Porém, antes que possa caminhar em direção àquela que já sente falta como um pedaço de sua carne, uma mão fria aperta seu ombro direito.

— Desculpa te assustar — diz a mulher de olhos pretos marcados pela presença de um delineador bem puxado e cabelos cacheados acima dos ombros.

Mônica respira fundo, esperando que a respiração nervosa de Lorenzo volte ao normal, então retira sua mão negra do ombro dele. As unhas pintadas de preto se apertam em seus braços quando ela os cruza e não há sinal de alegria nos traços de seu rosto redondo. Lorenzo, agora a olhando com desconfiança, pergunta:

— Onde Isaac está? — E assiste o pesar ficar ainda mais nítido nos olhos de Sofia. Ela toma um audível suspiro que infla seu peito e engole em seco.

— Lorenzo, não sabemos se Isaac vai voltar. — A sinceridade em sua voz é desconcertante. Ele pressiona as sobrancelhas, confuso com essa informação que julga descabida. Mônica não volta atrás. — Sinto muito que você não se lembre — descruza os braços, pressiona seus lábios grossos e olha em direção à loira na janela, que não se moveu. Lorenzo não olha para trás.

— Onde Isaac está? — Insiste, preocupado. Muito mais do que achou que se sentiria em relação ao demônio de olhos vermelhos e um humor mórbido demais para o seu gosto. Sofia nada disse. — Mônica! — Sua voz sai mais alta, um vento intenso larga seus lábios e balança os cabelos daquela à sua frente.

— Ele não vai voltar, Caim — sussurra de maneira doce e se aproxima dele. — Ele não vai voltar — fala com um pesar temeroso.

Nesse instante, Lorenzo dá um passo para trás surpreso por reconhecer sua maneira de falar. Já tinha falado diretamente com Mônica dessa maneira, mas, nesse exato momento, há um tormento em seu coração que não sabe ao certo a origem. Os olhos dela estão tão brancos quanto os dele ficam logo depois e ela não deixa de tentar se aproximar à medida que Lorenzo recusa o contato que os dedos da mão direita de Mônica, estendidos, querem com seu rosto.

Mônica então para, impaciente. Lorenzo faz o mesmo, olha para Eloísa pela janela, a garota está balançando a cabeça negativamente.

— O que é isso? — Exige saber, voltando a encarar a mulher negra, que fecha os olhos decepcionada. — Como assim não vai voltar? — Ela abre seus olhos, agora negros e tristes. — Eu estava com ele há um segundo.

Mônica olha para seus pés e pressiona os olhos com força. Ela odeia precisar se aquela que conta isso a Lorenzo. Tentou adiar o máximo que pôde, mas agora não há outra opção.

— Eu sabia que não era a hora certa — lamenta ela. A decepção em cada um dos mais delimitados traços do rosto de Mônica, quando ela ergue a cabeça, chocam Lorenzo de maneira única.

Ele suspira, com os olhos arregalados e os lábios secos. Mônica tenta se aproximar mais uma vez e, mesmo que Lorenzo pense em recuar, seus pés estão colados no asfalto. Não importa a força que faça para se mover, é tudo perda de tempo. Seus olhos se arregalam ainda mais; e quando Mônica fica exatamente à sua frente, coloca as duas mãos em seu rosto e exige que Lorenzo a encare nos olhos. Seus olhos brancos surgem graças ao medo, mas é um pavor completamente sem motivos racionais. A mulher só está querendo que ele a veja de verdade.

— Alguns de nós somos mais irmãos que outros — sussurra Mônica. — Isaac e Rebeca são mais irmãos que os outros. Eloísa e Paulo são mais irmãos que os outros — revela, soltando-o, mas Lorenzo permanece a encarando.

Já não tenta mais se soltar feito um louco. Está encarando-a confuso e descrente. Tenta olhar para Eloísa mais uma vez, mas sua confusão o impede. Não entende que tipo de verdade é essa.

— Nascemos do nosso pai em pares, Caim — engole em seco. — São faces de uma mesma moeda. A emoção e a razão. A coragem e a covardia. O egoísmo e o altruísmo. Assim se faz o equilíbrio. — Mônica da um passo para trás e agora é Lorenzo que vai em sua direção. Ela coloca as duas mãos na parte de trás do corpo, suspira. — Eu e Sofia, somos mais irmãs que os outros. Se você lembrar, tudo fica menos doloroso — conta ela. — Se lembra, Caim, por favor.

Mas nada que ela diz pode ser capaz de trazer uma memória como essa a Lorenzo. Afinal, não é do desejo dele ser incapaz de lembrar. Porém Mônica está certa, seria muito menos doloso para ele caso se recordasse e foi por isso que Eloísa implorou que Mônica fizesse isso. Sofia estava triste demais por Isaac para conseguir e não existia mais nenhum lado deles da moeda além de Mônica para fazê-lo entender. Mônica argumentou que Lorenzo reagiu mal a parte de sua história com Lilith que lembrou e seria muito pior quando o resto viesse à tona, mas ao saber sobre Isaac, aceitou. Não existia nenhum outro argumento capaz de bater o que Sofia e Eloísa usaram e ela se convenceu de que o momento era agora. Só que não está sob sua escolha, é isso que Mônica esqueceu. É por esse motivo que Lorenzo ainda a encara confusa, não importa o quanto force a mente dele em direção a ela, o quanto deseja que ele se lembre da história. De como nasceu, das unhas de Deus, e de como ocupou o Éden terrestre em um teste mundano. Mônica quer, amargamente, que Lorenzo se lembrasse de como matou Abel e foi amaldiçoado a fugir. Mas, mais do que isso, ela quer que Lorenzo se lembre que Abael o perdoo, porque a culpa o torna muito falho. O sentimento de remorso o impede de libertar sua memória e todo o poder que ainda carrega dentro de si. Um poder que Isaac esperou que ele fosse usar para matar a Morte, mas que sua ausência quase o fez ser colocado para dormir com uma lança de zinco. Essa energia, que ela e os outros sentem, esse poder que retornou a eles após anos no inferno. Mônica precisa que Lorenzo o reencontre. Até porque, para que o triângulo da morte seja concluído no fim, ele precisa se lembrar de tudo. Cada trecho de sua história, cada erro, acerto e perdão.

— De quem eu sou mais irmão dos que dos outros? — Quer saber Lorenzo, e todos os pelos de Mônica se arrepiam de uma só vez. — O que há de errado comigo?

Ela o encara com tristeza. As mônodas sabem que a ida de Isaac para a outra terra irá forçá-los a acelerar ainda mais esse processo. Todos têm conhecimento que, se Lorenzo não tiver todas as suas memórias no momento que precisarem, de nada terá adiantado tudo o que fizeram.

FUGITIVOS DO INFERNO 02 -Triângulo Da Morte [EM ANDAMENTO] Onde histórias criam vida. Descubra agora