CHAPTER TWO, PARASTIN

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      Eu brinco com as pedras coloridas que ganhei como cortesia pelo mel, as passando por entre os dedos como em um truque de mágica que Eden me ensinara anos atrás com moedas

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      Eu brinco com as pedras coloridas que ganhei como cortesia pelo mel, as passando por entre os dedos como em um truque de mágica que Eden me ensinara anos atrás com moedas. Na época, era como se a moeda estivesse voando por entre seus dedos, mas agora, é só um pedregulho azul deslizando de um dedo para o outro com um empurrão pausado.
      Subir pelo carvalho com os pés doloridos e cheios de arranhões não é agradável, porém o galho envergado da árvore facilita um pouco as coisas para mim, enquanto escalo me escorando nas partes menos ásperas, até abrir a porta de vidro com a moldura esverdeada e praticamente me jogar de costas no chão da casa.
      — Lar doce lar — arquejo.
      Fiquei tempo demais na praça, presa pela língua comprida de Ammar e atolada no coro de vozes ao qual ela fazia questão de se juntar. Menos de uma hora me separa da despedida, e minhas roupas estão impregnadas com o cheiro de alfazema e suor, contudo, me permito fechar os olhos no chão gelado por um curto instante de exaustão.
      Meu quarto é uma mistura caótica de cavaletes sujos de tinta e raios de sol inocentes que entram pela janela circular e formam uma cortina translúcida aos pés da cama. Passei boa parte das semanas anteriores cobrindo as paredes com pinceladas grosseiras e desenhos pendurados por adesivos transparentes, e não estou nem perto de terminar. O carvão no papel vazio e a tinta nos cantos menos detalhados são outra fuga, um refúgio dentro de outro, um inferno de cores e traços que prefiro perder tempo tentando desvendar à organizar as peças de minha própria mente.
      Também aprendi a fazer o meu próprio material de pintura. Ao menos os mais importantes. Às vezes preciso deixar alguns potes extras na bancada de Ammar para que a tinta não seja desperdiçada, mas a maioria acaba indo para o teto, onde uma constelação inteira parece dançar sobre a minha cabeça. Outro trabalho que nunca irei terminar, outro caminho eterno que escolho todos os dias manter tão cheio e tão incompleto. Cada estrela cadente que se arrasta perto da lâmpada, cada curva salpicada de vermelho e roxo, cada trecho sombreado e cada astro cintilante em tinta branca, é como uma chave na fechadura oca que carrego em minha alma.
      Infelizmente, porém, chaves de tinta não podem abrir fechaduras de aço.
      Sobre os lençóis revirados em um redemoinho azul-marinho, uma caneta prateada e um bilhete rasgado me aguardam com a caligrafia de riscos compridos e puxados para cima no final de cada sentença.

      Roubei alguns de seus pincéis e papéis.
      Também roubei alguns livros, potes de tinta, seu cobertor de estrelas, e uma lista de pequenas outras coisas.
      Prometo que não vou estragar nada.
      Não me mate.
      Atenciosamente, Edmond.

      Quando meus olhos passam do bilhete para a porta, a silhueta que encontro encostada no batente de madeira é alta e esbelta, coberta por um casaco escuro e segurando uma tigela de bagas amassadas junto à mistura de leite e mel que cintila no recipiente.
      — Eu não queria dizer nada, mas... se eu fosse você, quebraria esse cavalete na cabeça dele se algum pote de tinta voltar sem a tampa. — Fierce encara a colher que dança na porcelana sob o comando dos dedos ossudos.
      — Andou bisbilhotando? — pergunto, levantando o pedaço de papel com um sorriso amargo.
      Fierce joga uma perna na frente da outra, o ombro esquerdo apoiado na madeira escura.
      — Andei me certificando de que não havia nenhum tipo de ameaça no bilhete — corrige ele, ainda sem olhar para mim. — Cuidando de sua segurança, apenas.
      — Claro. — Estalo a língua, me sentando no furacão que chamo de cama. — Realmente, eu estava morrendo de medo da caneta explodir.
      A figura de preto dá de ombros, enfiando a colher na boca com um gesto dramático.
      — Nunca se sabe.
      Distraída, me pego relendo as linhas de tinta preta.
      — Ele disse algo? Sobre pegar minhas coisas.
      Fierce quase se engasga com um riso gutural, os olhos agora me encarando em um misto de graça e desprezo.
      — Se um dia ele trocar duas palavras comigo, que não sejam "bom dia" ou "com licença", é bem provável que o céu fique comovido pelo esforço árduo e despenque sobre nós mortais.
      Minhas costas encontram a maciez sútil dos lençóis azuis, conforme me jogo para trás com uma risada murcha. A verdade dita em tom de brincadeira dói como uma flecha enfeitada, então me obrigo a encarar as estrelas que me encaram de volta, todas conectadas em uma constelação tão bagunçada quanto minha própria alma penhorada.
      — Achei que você se candidataria — balbucio, um som quase inaudível, mas uso as palavras para afastar os pensamentos que se amontoam em pilhas esmagadoras de preocupações pendentes.
      O metal emite um ruído melódico ao encostar na porcelana, quase como um sino, uma canção curtíssima que Fierce faz questão de repetir com a colher largada entre os dedos, fazendo círculos preguiçosos pela tigela quase vazia.
      — Hm?
      — Para ir com eles. Caçar.
      Outra risada sai de sua garganta, menos animada que a anterior.
      — Ah. Você deveria saber que sou covarde demais para me botar em risco voluntariamente. — Ele leva outra colherada até a boca, mastigando devagar enquanto os olhos de mel analisam as manchas de tinta no chão. — Consegue imaginar uma cicatriz neste rostinho? — diz, percorrendo a linha do maxilar com o indicador. — Arruinaria a minha carreira de sedutor.
      — Você já fez isso antes. Voluntariamente.
      Na floresta. Com a decisão de usar uma margarida raquítica na lapela e me salvar dos olhos desconfiados em uma campina prestes a explodir. Com nada além da vontade de ajudar uma causa perdida.
      Um calafrio brinca na base de minha espinha quando percebo que muitos daqueles olhos estão fechados agora. Há dias ou meses. No campo minado ou na guerra.
      — É diferente. Aquilo... Eu não podia perder algo que não possuía. — O ruído da colher bem polida contra a tigela ressoa pelo quarto pequeno demais para tantos detalhes. — Vocês.
      Uma família. É o que somos agora.
      Quase consigo sentir o peso das palavras no ar. Fierce é muitas coisas, mas a maioria de suas vertentes permanece atrás de seus ossos. Às vezes tenho a sensação de que ele prefere esconder o coração à se tornar um alvo de pena. Guardo o momento em minha cabeça como se fosse uma página marcada, conheço-o bem o bastante para saber que ele considera esse tipo de sentimento uma fraqueza que vale a pena ser preservada longe dos olhos e ouvidos alheios.
      — Achei que não acreditasse nisso. — Sopro a tenção com um sorriso fraco.
      Fierce ecoa o gesto sutil.
      — Você me fez acreditar.
      — Ah, não me dê tanto credito por isso. Você conquistou um lugar na família de traidores fugitivos por conta própria. — Movo as mãos no ar como em uma reverencia, mas minha posição torna o gesto mais estúpido que sarcástico.
      Só então percebo os nós dos dedos brancos, apertando a colher metálica com mais força que o necessário, e provavelmente mais raiva que o normal.
      — Às vezes, eu me pergunto o que teria acontecido. — Ele parece nervoso, contido, um tipo de medo que já vi antes. Como se segurasse um fósforo aceso enquanto caminha em uma estrada de pólvora. Sua pausa faz o quarto parecer pequeno demais, pesado demais, e não gosto da sensação. — Se eu tivesse traído vocês.
      Quando a informação quase sussurrada recai sobre meus ombros, meu estômago começa a se revirar em uma dança nauseante. O ar ao meu redor vira chumbo, uma pressão esmagadora que me mantém paralisada por um longo minuto. Se seu intuito era ser engraçado, haveria ao menos um sorriso malicioso no rosto afiado, mas tudo que encontro é a desesperança de um olhar tão vazio quanto a tigela em suas mãos.
      — Você é inacreditável.
      — Não, inacreditável é você ter pensado que eu não arruinaria tudo na primeira oportunidade. — Tento capitar qualquer lampejo de graça em sua voz, por menor que seja, mas sua língua está banhada em uma fúria branda. — Eu tenho cara de herói idiota e bonzinho, por acaso?
      Idiota, sim.
      Fui alertada mais de uma vez em relação à índole duvidosa de Fierce. Os avisos de Edmond voltam como uma onda pronta para me afogar. Ele sabia que eu podia ser enforcada, queimada e torturada, amarrada à uma árvore por dias para ser consumida pelos corvos. Sabia que eu podia ter sido morta por cruzar a fronteira, pela acusação de ter facilitado a entrada da Ouroboros na floresta. Sabia que cada passo era perigoso demais em um chão de vidro frágil, e cada respiração me custava a vida de outra pessoa que eu sequer conhecia.
      Em algum momento, naquele lugar doentio, nossas vidas ficaram nas mãos dele, penduradas por cordas finas entre os dedos e a tesoura. Mas ele não as cortou.
      Espero pela raiva, aguardando pacientemente pelo formigamento sob a pele, a sensação de fúria que deveria estar queimando minhas veias. Mas nada acontece. Tudo o que me resta é um limbo anestesiado de desgosto e remorso, sem resquício algum de surpresa.
      — Quando? — É a única coisa que sou capaz de dizer.
      Sentada, os cotovelos apoiados nos joelhos conforme me inclino para a frente com as mãos no rosto, apenas observo o peso que faz sua garganta pulsar ao passo que as palavras nascem e morrem em sua boca.
      — Haviam dois irmãos comigo. — Os Nolarrae. Não me lembro de tê-los conhecido, mas ouvi o bastante para esperar o pior. — Tínhamos um acordo simples: eu descobriria onde você estava se escondendo, e o crédito da informação seria todo deles. Eu nunca fui um idiota, sabia que não podia confiar em Caelestis, então os irmãos eram a minha ponte segura caso algo desse errado. — Sua voz é um eco em minha cabeça, um som rouco e sem motivações que me faz querer gritar. — Me pareceu justo, na época. A vida da criminosa, pela paz ou qualquer que fosse a mentira de Caelestis.
      Fierce parece afundar em sombras por um instante, mesmo diante da luz acalorada que atravessa o vídro e se derrama pelo quarto. A escuridão sempre fez parte dele. Quando um músculo se contraí em seu maxilar, percebo que não faz a barba há alguns dias, a penugem negra começando a despontar da pele bronzeada. Um dos cachos sedosos cai sobre a testa descansada, zombando do olhar estático que ameaça engolir o rapaz para dentro de si mesmo.
      — Mas então a primeira bomba foi acionada e... Eu nunca o vi tão desesperado por algo, por alguém... Ele te carregou para fora do campo minado como se você fosse a última coisa que lhe restasse. — Um nó desce pela sua garganta quando ele engole em seco. — Acho que aquilo mexeu com a minha cabeça mais do que eu queria aceitar. Vocês estavam dispostos a se colocar em risco uns pelos outros. Estavam se protegendo. E eu não podia... Eu não tinha aquilo. Nunca tive alguém que lutasse para me proteger daquela forma, e não podia arrancar aquele laço de vocês.
      Outra vez, espero pela raiva. Espero pela pena. Pela incredulidade. Por qualquer coisa que me tire desse mar de nada. Dor. Ironia. Graça. Fúria. Qualquer coisa.
      Mas nada vem.
      Porque nada disso é novidade para mim. A confissão sempre esteve alí. Sabíamos que confiar nele era no mínimo perigoso, e mesmo assim o fizemos. A carência sempre mascarada pelo sarcasmo excessivo e a pose marmorizada. Fierce vai sempre escolher o lado que lhe ofereça mais, seja por materialismo ou para suprir um espaço vazio. Ele nos escolheu porque enxergou em nós algo que não possuía, algo perdera há muito tempo entre os tropeços do destino.
      Eu devia ter escutado Edmond, quando dissera que ele só se importava consigo mesmo.
      Mas Fierce ainda está aqui, e isso deve significar alguma coisa.
      — Então você decidiu nos ajudar.
      — Ah, não. — Ele apenas confirma minha teoria. — Eu decidi me ajudar. Mas ainda haviam duas pedras em meu caminho. Pedras essas, que entregariam meu nome caso eu voltasse atrás em minha decisão.
      O silêncio repentino faz meus pulmões parecerem menores.
      — Os Nolarrae. — O único sinal de surpresa que recebo é um olhar torto, mas ele não pergunta como o nome veio parar em minha boca.
      — Pedras são altamente fáceis de se quebrar, quando empurradas para o lugar certo. — Apesar da confissão mórbida, não encontro remorso em sua voz. — E, para a minha sorte, a campina estava cheia de lugares propícios para uma queda acidental. Ou duas.
      A imagem de um crânio esmagado e uma pedra ensanguentada me faz estremecer, conforme meus olhos disparam para os cantos mais escuros, procurando pelos olhos abismais que costumam assombrar meus pesadelos.
      — Se eu não podia ter uma família, ao menos podia me certificar de que vocês tivessem uma. Não permitiria que perdessem isso. Não no meu turno.
      — Matou duas pessoas para garantir que tivéssemos uma família? — Minha língua é um chicote.
      — Matei duas pessoas porque suas vidas custariam a minha. E a de vocês. Os Nolarrae nos viram juntos, Fórzia, e eles sabiam sobre as margaridas. Eles nos entregariam, e eu não conseguiria nada se fosse um cadáver.
      Quero perguntar sobre seus pais. Se já teve algum irmão ou parente próximo. O que pode ter acontecido de tão ruim, ao ponto de fazê-lo reconsiderar nos trair, para que não sentissemos o mesmo que ele sentiu?
      — Se queria sentir que fazia parte de algo importante — balbucio, os olhos perdidos nas formas que se movimentam além da janela. — Parabéns, você conseguiu.
      — Não tente fingir que a possibilidade de uma traição nunca passou pela sua cabeça. A mentira não cai bem em você.
      — Não estou surpresa. Só... desapontada. Mas você fez a coisa certa. — Dói admitir, como um espinho sendo arrancado das profundezas da carne. — Mesmo que pelos motivos errados. Não espere que eu te agradeça por ter desistido de nos enviar para a morte, ainda preciso pensar sobre tudo isso. Mas fico... contente, que você tenha escolhido o lado certo.
      O sorriso que me obrigo a colocar no rosto tem um gosto amargo. Imagino que seja uma imagem mais de desgosto descarnado que contentamento, para ser sincera, porém simplesmente não tenho forças para me importar em ferir seus sentimentos com meu descaso. Ele ia nos entregar, e isso é tudo o que consigo pensar no momento. Sua carência e a necessidade de fazer parte de algo foram as únicas coisas que o fizeram mudar de idéia, não importa o quanto ele tente dizer que o fez por algum altruísmo piedoso.
      — Por favor...
      — Não vou contar a ninguém — o corto com a língua. — Você tem a minha palavra quanto a isso. Esse segredo morre conosco.
      Meu enjôo o faz rir, um riso fraco e curto que poderia ser um delírio, caso eu não estivesse vendo o sorriso desconcertado no rosto envergonhado.
      — Não seja tão mórbida. Ainda tenho alguns princípios, sei que uma hora ou outra eles precisarão saber. Só preciso preparar o terreno para amortecer o peso da informação, e ganhar uma certa confiança para que pensem duas vezes antes de chutar meu traseiro. Edmond provavelmente me empurraria da janela sem hesitação.
      A idéia tira um pouco da amargura de minha expressão, quebrando a casca azeda com um lampejo de graça.
      — Mesmo que te jogássemos de volta na floresta, na guerra, você ainda daria um jeito de voltar. — A piada sai tão afiada quanto a adaga que ele insiste em manter.
      Fierce apenas dá de ombros.
      — Não vão se livrar de mim tão cedo.

Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora