Pela manhã, quando acordei, eles ainda estavam lá. Mas eu não sabia quem eram. Precisei de um tempo considerável para recuperar a memória de seus rostos, e Fierce acabou ganhando um olho roxo no processo.
Estão tentando não me tratar como uma desequilibrada que pode morrer ou matar alguém a qualquer momento, mas as facas da cozinha sumiram, e Eden reforçou as trancas e fechaduras da casa. Minha janela tem um segredo para ser aberta, a porta do quarto vai continuar sendo vigiada durante a noite. Sempre que tento sair – para ir à praça ou visitar as colméias –, Pluvia e Fierce casualmente se oferecem para me acompanhar. Penso que é uma questão de tempo até que comecem a me escoltar pelos cômodos.
O único lugar em que posso relaxar de verdade é dentro da banheira, cercada até o pescoço, finalmente sozinha. Mas nem mesmo a paz da água morna que afunda meu corpo é eterna, já que alguém sempre bate à porta de cinco em cinco minutos para ter certeza de que não estou morta.
É exaustivo tê-los por perto conforme durmo ou simplesmente me levanto. Isso é o que eu estava tentando evitar. Contudo, entendo que não podem mais confiar em mim da mesma forma. Eu matei alguém enquanto dormia, não há como garantir que não vai acontecer de novo enquanto estou acordada.
Sou uma prisioneira que construiu a própria cela.
No café da manhã, o único assunto em discussão é o mais difícil possível. É como se todos fizessem parte de um complô silencioso, espalhando pela mesa detalhes sobre Ivanka que eu sequer imaginava antes. Sonhos que ela não pôde realizar, coisas que ela gostava de fazer. Os Bellorta não saem de casa desde a cerimônia, aparentemente. Contudo, partem hoje mesmo para Celetrial. Os boatos dizem que o pai vai trabalhar em uma padaria no centro da cidade.
Mas eles não são os únicos que estão de partida. Com a chegada iminente do time de instrutores que Mavka convocou, muitas pessoas estão preparando as malas para o continente.
Com ou sem partida, todo e qualquer assunto morre quando Caelestis atravessa o jardim. Ela não está usando as vestimentas da enfermaria, mas Kaife a acompanha de perto, seguindo-a, provavelmente encarregado de manter os dois olhos na serpente. No lugar de uma camisola larga, ela veste um conjunto de roupas simples – blusa e calças da cor da fumaça que manchou o céu no dia da invasão ao vilarejo, uma manta bege lhe cobre os ombros –, que mais parece o traje adequado para uma clínica de reabilitação. As partes de seus braços que não foram escondidas pela manta, estão enfaixadas, as feridas ainda se curando no escuro.
Não restou nada da líder da floresta, da imperatriz alada e poderosa. Apenas uma Cleópatra sem coroa, povo ou reputação.
Comparadas às nossas calças coloridas e coroas de flores, suas roupas parecem... sem vida. O luto em Rosetrum é tratado de forma diferente. O céu cinzento que estampa o sentimento de culpa de Mavka já é o bastante, não precisamos de mais lembretes fúnebres. E mesmo que Caelestis possua apenas roupas escuras e sem graça, como uma forma sútil de dizer que ela não é exatamente bem-vinda, é quase uma afronta de sua parte.
Até mesmo Fierce, precisou desistir do casaco escuro por um dia, usando uma camisa amarela de mangas compridas.
O ruído das taças e dos talheres é a única coisa que impede a floresta de cair em um silêncio mortal, pois nem mesmo os pássaros parecem dispostos a compartilhar sua melodia conosco.
— Não achei que ela sairia da enfermaria tão cedo — diz Eden, baixinho.
— Se veio até aqui à procura de qualquer tipo de empatia, espero que se engasgue no próprio veneno — balbucia Macaire.
Ninguém cede um lugar à mesa para ela, ou oferece uma fatia de torta. Nenhum sorriso ocupa as cadeiras, enquanto Caelestis fica parada a menos de um metro dos assentos reivindicados ao redor da comida.
Alguns sussurros começam a desabrochar, vozes baixas e incomodadas com a presença indesejada. Um grupo de garotas deixa a mesa, largando seus pratos ainda pela metade.
Minha mão arde como fogo quando cerro o punho, tremendo, apesar de manter a fúria controlada. De canto de olho, consigo ver uma colher se dobrar entre os dedos enfaixados de Falena, o talher sendo amassado e se transformando em uma bola de metal retorcido. A cicatriz que ganhou durante a primeira caçada treme no rosto quase translúcido.
Lavena olha para ela com preocupação pura nos olhos violeta, apertando o punho como se lutasse contra a necessidade de tocar a mão da caçadora.
Mavka não faz nada para evitar que os sussurros ofendam Caelestis, sequer ergue um dedo dourado para demonstrar que está prestando atenção na serpente, conforme bebe da taça de cristal. Ela não terá a mesma gentileza que os outros recebem, ao menos não enquanto a mesma não demonstrar um pingo de remorso por tudo o que fez.
Mas Caelestis não parece se abalar. Quando percebe com todo o seu intelecto calculista que não é bem-vinda na mesa, ela apenas se vira e começa a andar, pronta para voltar para sua casa por tempo indeterminado – a enfermaria cujas promessas esperançosas não se aplicam à mesma.
— Vadia derretida — xinga Riselyth Eddor.
Ela e Ivanka eram praticamente grudadas, até eu cortar suas cordas.
Caelestis congela. Kaife se vira imediatamente, lançando um olhar acusatório para Riselyth, que agora está em pé, encarando as costas cobertas da mulher. Imagino que já deva ser exaustivo o suficiente monitorá-la o dia todo, precisar evitar uma briga não é a primeira coisa em sua lista de desejos no momento.
— Acha que isso tudo é coincidência? — provoca Riselyth, indicando Caelestis com o queixo. — Os espiões, Ivanka... Ela está apodrecendo esse lugar com sua presença venenosa. — Os olhos selvagens reviram a mesa, repousando sobre os ombros de meus amigos ao dizer: — Deviam tê-la matado quando tiveram a chance.
Falena se levanta com a fúria de um dragão. Ela não se dá ao trabalho de se despedir, antes de jogar a colher amassada contra a mesa e se retirar de imediato. Lavena crava os olhos em cada passo dela, acompanhando cada movimento estarrecido da loba ironicamente solitaria, mas não a segue. Nenhum de nós o faz. Conhecemos Falena o suficiente para saber que ficar sozinha é a única coisa capaz de acalmar seus nervos, além do isqueiro da irmã.
Caelestis permanece imóvel, de costas para as acusações de Riselyth.
— Senhorita Eddor. — Mavka se levanta, juntando as mãos na frente do corpo. — Está sendo difícil para todos nós, mas o que aconteceu com sua amiga não passa de um fatídico acidente. Culpar alguém que estava sendo vigiada a noite toda não irá trazê-la de volta.
Mas, apesar de ser verdade que Caelestis estava sob os cuidados da enfermaria quando tudo aconteceu, os murmurinhos ao redor da mesa espalham a discórdia, colocando um sorriso orgulhoso no rosto redondo de Riselyth Eddor.
Fierce pisa em meu pé por debaixo da mesa e, quando o encaro, um músculo se contrai em seu maxilar. Ele está preocupado. Não somente com o motivo de nosso juramento, mas também com as suspeitas que estão se fechando ao redor do anjo caído.
Parte de mim vai sempre odiar Caelestis, não importa o que ela faça para tentar mudar isso. Mas também existe uma parte de minha consciência que não fica exatamente feliz ao vê-la sendo acusada por algo que eu fiz.
E não posso deixar Mavka se culpar pela morte de Ivanka.
— Ela tem razão — responde Caelestis, sem se dar ao trabalho de se virar na nossa direção. — Peço perdão se esqueci de mencionar que o garoto das veias coloridas e os outros carrapatos que ficam ao meu redor durante os sete dias da semana, me ajudaram a matar a sua amiga. Sabe como é, tenho muito tempo livre para fazer o que quiser, não é?
A ironia que pinga de sua língua atinge Riselyth Eddor como uma facada nos olhos. E, preciso admitir, um lampejo de satisfação faz minha mão cortada vibrar.
Às vezes fica difícil saber para que lado minha noção pende, mas o prazer de uma pequena vitória, mesmo que inimiga, sobre um rival irritante, nunca falha em me fazer ceder um sorriso momentâneo.
Kaife está mais pálido do que nunca, e por um momento não tenho certeza se o sangue que corre pelas veias negras circula corretamente. Ele me lembra alguém que fora atingido por um raio. Acidentes assim deixam marcas parecidas com as dele, como se as raízes de uma árvore estivessem crescendo sob a pele quase translúcida.
Não sei como eu deveria me sentir em relação a tudo isso – o cadáver, Caelestis perambulando por aí, Mavka se sentindo culpada por uma morte que eu causei, o burburinho que Riselyth fez nascer sobre a má índole do anjo caído. Tudo o que eu sei, é que preciso dar um jeito de consertar essa situação, ou ao menos explicá-la para Mavka.
— Tivemos o suficiente por hoje — alerta a jovem dourada, sem um pingo de compaixão na postura ereta. — Kaife, leve-a de volta para a enfermaria, espero não vê-la perambulando pelo resto do dia. As refeições serão devidamente servidas em seu horário rotineiro. Quanto à senhorita — pontua ela, olhando diretamente para Riselyth —, não admitirei mais uma palavra. Sinta-se livre para deixar a mesa.
Kaife apenas assente com a cabeça, levando Caelestis de volta para o lugar de onde não devia ter saído, e ela não protesta, caminhando alguns metros à sua frente, sempre mantendo uma distância entre os corpos.
Riselyth Eddor apenas se retira com passos pesados. Ela não possui outras amigas, então ninguém a segue conforme a garota ruma para o leste.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
خيال (فانتازيا)PLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...