Depois do balde de água fria que caiu com um empurrão de Clément, Edmond não desgruda os olhos de mim, mesmo deitado comigo, com os braços ao meu redor, apertando meu corpo contra o dele enquanto minha pele queima e formiga pelo que eu não posso ter. Porque todas as vezes que estou prestes a alcançar, algo nos separa. Os pesadelos, o sangue... O que devo esperar da próxima vez? Um raio caindo em minha cabeça e me reduzindo à cinzas?
Consigo sentir os olhos de jade presos em mim conforme Edmond faz carícias preguiçosas em meu pescoço, deslizando o polegar em círculos pela pele macia.
Não sei que horas são, mas a lua já expulsou o sol do céu na disputa de turnos, libertando as manchas roxas e azuis na grande tela escura e cheia de pontos luminosos cujo brilho é refletido pelos cristais emaranhados no teto, as pedras claras filtrando os raios de luz, borrando o ambiente com trechos sem cor na calada da noite.
Eu monitoro a respiração dele, até os intervalos se tornarem mais longos e profundos, os pulmões trabalhando com calma conforme Edmond é tomado pelos sonhos.
Eu, por outro lado, vou continuar acordada a noite toda, sopesando o acordo que ameaça não só a minha vida, mas a de Apza e de minha família.
No começo, eu não quis passar a noite, preocupada com os outros, mas Edmond me assegurou de que Macaire sabe onde estamos, e como já se passaram horas, ele provavelmente já abriu a boca para alguém.
Além de que não estamos mais na floresta. Rosetrum não possui assassinos ou qualquer tipo de perigo para nós. Não enquanto eu conseguir manter a corda que segura minha sanidade presa às minhas próprias mãos, sob os meus comandos.
Devagar, afasto um dos lados do cobertor de estrelas que nos aquece, me levantando com cautela, evitando respirar alto demais para não acordá-lo. Não posso dormir, pois sei que no momento em que eu cair no sono, não vou poder fazer nada para evitar os dedos de Clément me controlando pelos palitos de madeira como o titereiro que é.
Mas Edmond não pode saber disso.
Desejo poder contar a ele, pois foi assim que perdi meus pais. Porém conheço-o bem o bastante para saber que ele iria até o inferno para recuperar minha alma se fosse necessário.
Não posso arriscar perdê-lo assim.
Mavka me fez uma proposta, me ofereceu a chance de me juntar às aprendizes dela, ter minha própria defesa, aprender a construir minhas próprias armas para a batalha que me espera.
E não fosse pelas condições emocionais da magia, meu nome já estaria entre os das jovens feiticeiras. Quando se trata de preços e consequências, eu sempre acabo fazendo a coisa errada e me desgraçando cada vez mais no caminho.
Sinto a pétala em minha testa ao esfregar o rosto com as mãos gélidas, e a removo com cuidado, puxando a natureza-morta com os dedos esguios. Mas ao analisá-la na palma de minha mão, encontro uma mensagem diferente da que eu esperava. Caixinha de Pandora nanica.
Desvio a atenção para Edmond, o fuzilando com os olhos.
Tenho consciência de que sou a menor pessoa do nosso grupo, sendo que até Pluvia é alguns centímetros mais alta que eu. Mas me insultar assim é um golpe baixo demais, até para ele.
Então, revido.
Na prateleira, arranco algumas pétalas aveludadas da rosa e seguro a caneta entre os dedos. Quando termino de escrever, tudo o que resta da beleza sutil é um caule murcho com o miolo desprotegido.
Olho para as palavras distribuídas pelas partes amputadas da flor, e algo entre o prazer da retribuição e a culpa do silêncio escorrega pelos meus lábios.
Idiota. Pervertido. Imbecil. Arranha-céu. Obelisco loiro. Poste ambulante.
E, trabalhando com a sagacidade de uma raposa, espalho as pétalas pelo corpo de Edmond, colando-as sobre seus braços descobertos, grudando algumas no rosto adormecido. Ao terminar, não sou capaz de conter o sorriso que desponta de meus lábios, mostrando a língua para a alma que permanece presa nos próprios devaneios sonolentos. É deveras interessante pensar que ele nunca saberá sobre este insulto em particular.Me arrasto pela noite vislumbrando as pinturas nas paredes, e quando minhas pálpebras começam a pesar sobre os olhos, pego um dos cadernos e início outra forma de passar a madrugada acordada.
Desenhar Edmond enquanto ele dorme é um desafio no qual persisto. Ele se mexe demais, rolando para os lados e bagunçado os cobertores. Uma das pétalas se desgruda de seu ombro quando puxa o lençol para cima.
Depois de dezenas de folhas silenciosamente amassadas, e expectativas quebradas nas pontas gastas do lápis de carvão, consigo capturar uma pose antes que ele a estrague outra vez.
Eu rabisco a folha branca com a ponta escura, dando forma ao cabelo bagunçado, contornando os braços agarrados ao travesseiro, detalhando o corpo proporcionalmente perfeito. Preciso reunir toda a força que não possuo para evitar acordá-lo, arrancando a determinação das paredes e da fraca luz da lua que mancha meu rosto, para permanecer presa ao desenho.
Todavia, o sono me vence antes que eu possa terminar de rabiscar a blusa de Edmond no papel, o cansaço me puxando com as garras dormentes, soltando minha consciência no mar de nada.
Surpreendentemente, meu cérebro me presenteia com imagens felizes, me permitindo navegar por memórias boas, algumas tão enterradas dentro de mim que mal as reconheço ao vê-las refletidas nas paredes de minha mente.
A noite me envolve com as mãos de minha mãe, o sorriso de meu pai, e o calor das ruas do vilarejo, mas meus olhos se abrem com o sol de Rosetrum, que bombardeia meu rosto com um feixe dourado que se derrete por uma das pequenas janelas.
Rolo para o lado na tentativa de desviar da luz, e minhas costas encontram a ponta do lápis que usei para desenhar durante o domínio da lua no céu, resultando em um grito esganiçado que ninguém além de mim pode ouvir, pois tenho o cuidado de aprisioná-lo atrás dos ossos de minha cabeça.
Apoio a mão no chão para me impulsionar para cima, mas meus dedos afundam em camadas de plumas e travesseiros macios. Cortesia de Edmond, sem dúvida. Se ele ao menos houvesse tirado o lápis de minhas mãos com o mesmo cuidado que me colocou na cama, talvez eu não precisasse me machucar logo ao abrir os olhos, mas imagino que minha pequena retribuição de insultos floridos tenha o distraído para tal, ou sido o motivo pelo qual me deixou encontrar o lápis por conta própria.
Então qualquer resto de gratidão pelas plumas e cobertores se torna poeira quando meus olhos capturam a pétala raquítica grudada na pele cheia de pintas do flanco de minha mão, a caligrafia torta espremida em uma só linha.
Meio ser humano.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
FantasiaPLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...