CHAPTER TWENTY FIVE, CONCILLIABULE

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      Os últimos raios de sol iluminam a superfície espelhada que reflete a luz entre uma ninféia e outra, tremendo com a brisa que assobia perto demais da água

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      Os últimos raios de sol iluminam a superfície espelhada que reflete a luz entre uma ninféia e outra, tremendo com a brisa que assobia perto demais da água.
      As pessoas avançam com vagareza na direção do jardim de rosas às margens do lago, onde cinco cadeiras douradas brilham à luz do crepúsculo, dispostas em um círculo perfeito, esperando pelas serpentes infiltradas no refúgio.
      Lavena nos vê chegando, mas os olhos de lavanda procuram além de nossos corpos, buscando por alguém que não vai aparecer tão cedo.
      Conforme nos posicionamos ao redor do jardim rubro, Mavka e os cinco acusados abrem caminho entre a multidão, e com um gesto delicado, a jovem dourada indica as cadeiras douradas, nas quais os ratos se sentam sem protesto algum. Nenhum deles sabe da acusação de Caelestis, sequer foram informados do motivo pelo qual estão sendo tratados como a atração principal, mas Guinevere, com os longos cabelos castanhos presos em uma trança no alto da cabeça, analisa o assento como se todo o cuidado não fosse suficiente.
      Os dedos de Mavka dançam no ar, e um fio branco de luz cintila em sua mão, se enroscando nas unhas douradas como uma cobra explorando sua pele.
      — Vocês sabem o que estão fazendo aqui? — indaga ela, brincando com o fio luminescente.
      — O último jogo foi ontem, pensei que só houvesse um por semana — observa Isaac, agarrando os braços da cadeira enquanto ri.
      — Não estamos aqui para jogar, não é? — percebe Guinevere.
      — Ah, é claro que estão — responde Mavka, com um sorriso sombrio no rosto iluminado. — Todavia, hoje o nosso jogo será um pouco mais... interessante.
      Ninguém ousa abrir a boca enquanto ela tira o fio de luz dos dedos dourados, e o entrega para Isaac, que hesita ao pegar a linha cintilante. Me recuso a respirar conforme a coisa se move como se estivesse viva, rastejando e se desfazendo em um ciclo eterno de loucura incandescente.
      — Essa, é a Reveladora da Alma. Vamos lá, diga uma verdade — incentiva Mavka, com uma graça tenebrosa na voz doce.
      Guinevere balbucia algo inaudível para a amiga, Astoria, mas não arrisca tentar se levantar da cadeira encantada.
      — Não sei o que dizer — Isaac ri, o nervosismo começando a transparecer nos olhos verdes.
      Mas o fio cintilante parece brilhar ainda mais, como uma estrela em mãos humanas.
      — Excelente. — A jovem dourada dedilha a cadeira de Guinevere, então passa os dedos pelos ombros de Astoria, e finalmente chega ao assento de Isaac, segurando as mãos na frente do corpo. — Agora, diga uma mentira.
      O rapaz parece se perder nos próprios devaneios por um instante, encarando o braço dobrado como se tentasse decifrar o ar tenebroso que emoldura a brincadeira claramente errada.
      — Meu cabelo é ruivo — entoa Isaac, desconfortável.
      Assim que as palavras saem de sua boca, o fio sangra entre seus dedos, perdendo o brilho e se transformando em uma linha escura, morrendo como uma planta cujo ciclo de vida fora acelerado. Isaac solta a Reveladora da Alma, que cai em seu colo emitindo um chiado excruciante
      — O jogo é simples. — Mavka revive o fio de luz, e o garoto o enrola novamente nos dedos com certa hesitação. — Eu farei algumas perguntas, e vocês irão responder da forma mais breve possível. Quem errar... perde.
      — E se algum de nós não quiser jogar? — indaga Trisko, do outro lado do círculo de ratazanas.
      — Sintam-se livres para desistir.
      Quase que de imediato, Guinevere tenta se levantar, mas a cadeira prende seus pulsos com gavinhas perfeitas de ouro. Ela se debate no assento, grunhindo e choramingando, e o coque se desmancha com os solavancos, contudo, seu corpo permanece preso à cadeira, atado ao destino.
      Em algum lugar da multidão, posso ouvir Lavena gritando algo que não chega aos meus ouvidos.
      — Talvez, nem tanto — balbucia Mavka. — Vamos começar. Você veio para cá com a intenção de fugir do perigo? — pergunta ela para Isaac. Ele não responde, olhando do fio luminoso para o céu crepuscular. Suas mãos tremem como gravetos em uma tempestade. — Então?
      Atrás de mim, alguém tosse para encobrir uma risada.
      — Sim — responde, baixinho.
      A Reveladora da Alma imediatamente se transforma em um emaranhado sangrento. Ele tenta limpar a pele, expulsando algumas manchas de sangue com os dedos, mas só consegue espalhar a sujeira, incapaz de ficar parado no assento.
      — Resposta errada — lamenta a jovem dourada.
      Caelestis disse a verdade, no final das contas.
      O Povo da Floresta teve a audácia de tentar arruinar este lugar. Não pensaram por um momento sequer nas consequências? Rosetrum é uma lenda, porém uma adornada em segredos e mistérios, cujos sussurros ecoam por todos os cantos construindo uma reputação desesperadora para aqueles que a procuram. O Povo da Floresta não tem nada a perder, e isso torna a ameaça imune à maior das magias.
      Com um sorriso diabólico nos lábios largos, Mavka sopra um pó luminoso por entre os dedos, impregnando o rosto do garoto com pontos cintilantes à luz do entardecer, enquanto o mesmo pisca repetidas vezes, tentando acordar de um pesadelo real.
      Todavia, conforme o pó se acentua na face de Isaac, as esmeraldas são escondidas atrás das pálpebras pesadas, e não sei dizer se ele está apenas inconsciente, ou verdadeiramente morto.
      Mas Mavka não se dá o trabalho de esclarecer os detalhes, deslizando até a cadeira da garota loira ao lado do corpo inerte de Isaac.
      Quando Guinevere finalmente percebe o amigo inconsciente, ela rosna como um animal raivoso, perdendo o controle sobre os limites do próprio corpo, lutando tanto que a cadeira ameaça se desprender do chão encantado.
      — Vênus — Mavka saboreia o nome na ponta da língua, passando os dedos pelo braço do assento e entregando o fio ressuscitado à garota. — Você não é uma traidora, é?
      Pluvia estremece, cerrando as mãos em punhos, mas não se dá o trabalho de perceber o olhar preocupado de Eden, a mão que ele permanece encarando, tentando tocar a pele macia, mas sempre desistindo no último momento.
      — Por favor — choraminga Vênus, suplicando por uma misericórdia que não existe mais nos olhos da deusa. — Eu juro que não fiz nada de errado, nós...
      A cadeira de Isaac bloqueia minha visão, contudo, a julgar pelos movimentos de Mavka, o objeto mágico não acredita em suas palavras.
      Irredutível, afiada como a ponta certeira de uma flecha de metal, ela desliza ao redor do círculo dourado de serpentes presas pelas caudas, testando a veracidade das palavras ditas entre uma lágrima e outra, e apagando-os com o pó cintilante que reflete os últimos raios de sol.
      É torturante. Os gritos, as súplicas... Preciso me lembrar de que não são inocentes, porém não sinto prazer com sua queda. Apenas dor. Uma dor aguda que ameaça me consumir com garras de ferro.
      — Guinevere. — A vez da garota chega com um assobio fúnebre, ao passo que a magia incandescente se enrosca nos dedos finos.
      Uma ruga se forma entre as sobrancelhas da jovem, os olhos castanhos brilham com as lágrimas que pulam para fora deles. O coque se desmanchou com a violência, e o cabelo molda seu rosto, grudado à pele suada. Ela lutou. Ainda luta para se soltar e correr para algum lugar seguro. Mas o único lugar seguro é aqui, ela só não foi esperta o bastante para perceber isso antes.
      — Tudo bem! — grita Guinevere, se encolhendo no assento que a mantém presa. — Nos enviaram para cá! Era isso o que queria ouvir? — O fio cintila entre seus dedos, radiante com o brilho de mil estrelas. — Por favor, estávamos apenas seguindo ordens!
      Mavka preenche a distância entre elas com uma lentidão torturante, agarrando os braços da cadeira dourada, acariciando as mãos dela com os dedos de ouro.
      — Resposta errada. — Seu sussurro é uma sentença.
      Então, a garota finalmente para de lutar, sendo levada pela poeira cintilante que se acentua no rosto sofrido, grudando no suor e nas lágrimas.
      — Eles estão... mortos? — pergunta Kaife, ao meu lado.
      Quando Mavka se vira, posso ver o peso da decisão pairando sobre os ombros magros. A postura tensa nunca foi tão reta.
      — Não — suspira ela, tentando não levar as mãos até as têmporas. — Minha irmã costumava matar pessoas como eles, quando tentavam fazer mal à nossa terra. Contudo, eu faço as coisas de um modo mais... civilizado.
      — O que vai fazer com eles? — indago.
      — Agora que sei que Caelestis disse a verdade, apagarei a memória de cada um deles. — Ela olha por cima do ombro, para as serpentes inconscientes. — Os enviarei de volta, mas não se lembrarão de quem são. Serão quase como bebês, babando enquanto vagam pelo limbo de suas mentes destruídas.
      — O que acontecerá com eles? Depois disso? — Apza surge a menos de um metro de mim.
      Eu havia me esquecido. Enterrei verdadeiramente qualquer memória dela nos últimos dias, fugi do acordo com Clément como um rato se escondendo de um gato faminto.
      Mas não posso fugir para sempre, e agora ela está aqui, com o fantasma desgraçado que acaricia seu cabelo, indetectável, se aproveitando da invisibilidade seletiva.
      — Se algum animal selvagem quiser fazer as honras, não irei me importar — responde Mavka, de queixo erguido. — Se o Desconhecido tiver piedade de suas almas, então, na melhor das hipóteses morrerão de fome.
      — Cruel — comenta Lavena, com um sorriso malicioso.
      — Rosetrum é um santuário, um lugar seguro para os necessitados. Não pensem por um momento sequer, que irei permitir qualquer tipo de ameaça à minha casa. Construí esse mundo das cinzas, e o protegerei com cada fôlego. Não deixarei que nos intimidem.
      Calor ondula ao redor de Mavka, moldando o corpo alto da jovem dourada, conforme o sol desaparece no horizonte, deixando a lua pálida no comando do céu obscuro.
      — Vocês foram chamados para um julgamento, hoje. E, embora a maioria ainda não saiba, estamos lidando com problemas que vão além de simples espiões. — Ela enche os pulmões como se todo o oxigênio não lhe fosse o bastante. Mavka não pretende esconder a verdade deles, e a delicadeza controlada com que deixa a voz sair não passa de um truque para esconder o nervosismo que faz a ponta dos dedos de ouro tremerem. — Não sabemos quando, ou como, mas o Povo da Floresta planeja invadir este mundo. E não permitirei que isso aconteça.
      Uma onda de surpresa esmaga a multidão ao nosso redor, entre suspiros e olhares embasbacados.
      De repente, é como se o céu não pudesse mais se sustentar sozinho.
      — Por quê? — um homem pergunta.
      — Aparentemente, não estão satisfeitos com a guerra lá fora. Também querem o que não podem ter, o que é nosso.
      Mavka não guarda segredos, todavia, não se aprofunda no assunto, tecendo explicações básicas sobre as informações que Caelestis nos entregou, mas reforçando que são apenas teorias por enquanto, já que não sabemos se existem mais espiões entre nós. Ela faz questão de alertar sobre o perigo, porém de uma forma tão branda que todos entendem que é uma possibilidade longínqua, que pode demorar meses para se provar totalmente verdadeira.
      — Não haverão mudanças drásticas, por enquanto — avisa. — Tudo ocorrerá como sempre. Apenas tomem cuidado, principalmente com os futuros recém-chegados, que podem carregar mais de um rosto na bagagem aparentemente sofrida.
      — Não vai nos treinar? — Veuria dá um passo à frente, indignada com a falta de medidas mais duras.
      — Precisaremos de algum tipo de treinamento, caso um ataque aconteça antes do previsto — reforça Apza. O modo como indica as cabeças na multidão nos faz parecer meros ratos despreparados. Não posso dizer que está errada.
      Tudo o que somos é uma grande bagunça de crianças traumatizadas com mentes estragadas e passados odiosos. Perto de um exército, mesmo um formado por camundongos e guaxinins, não somos nada. Em uma guerra, então, somos as formigas que são pisoteadas.
      — Há guerreiros no continente...
      — Isso não será suficiente — interrompo, me arrependendo instantâneamente ao enxergar o olhar surpreso da jovem dourada. — Aquelas pessoas estão muito longe daqui. E mesmo que consigam um portal que facilite o acesso à ajuda, o tempo é crucial demais para brincarmos com ele.
      Mavka é gentil e imponente, mas não é uma guerreira. Sua irmã, talvez fosse, mas ela é um estigma do sol, um símbolo de esperança. A morte da família de seu sangue a deixou com uma balança para equilibrar sozinha, e ela vem fazendo um bom trabalho, mas a possibilidade de uma guerra é pesada demais, e ela não sabe lidar com o excesso de violência.
      Não conheci sua irmã, mas é nítido que Mavka está tentando se igualar a ela. O problema é que ela não é um soldado, muito menos uma guerreira ou general. Mavka é um raio de sol, não uma espada.
      Eu nunca participei de uma guerra – muito pelo contrário, fugi de uma –, mas sei que caso decidam invadir antes do previsto, haverá um massacre até que os guerreiros de Vikare e de outros lugares apareçam para nos ajudar.
       A melhor opção é estarmos preparados para uma invasão, armados e treinados para defender Rosetrum quando isso acontecer – se acontecer.
      — Preciso pensar... — Mavka esfrega as têmporas, exausta. — Vou dar um jeito nisso, eu só preciso...
      — Tudo bem — declara Apza. — Temos tempo para resolver. Eles ficarão acorrentados à guerra lá fora por mais alguns meses, não chegarão aqui tão cedo.
      Mas Mavka está cansada demais para prestar atenção, olhando para algum lugar além de nós.
      Não, ela está olhando para algo. Viro meu corpo na direção de seu olhar assustado, e me arrependo imediatamente da decisão.
      Ao longe, um bando de silhuetas pretas se movimenta, batendo as asas negras no céu já estrelado. A luz lilás feérica que dá palco para a lua, contrasta com as formas escuras que se aproximam com audácia, cortando o céu etéreo de Rosetrum com os bicos pontudos.
      Corvos, percebo, quando o bando nos ataca sem qualquer sinal de hesitação.
      — SE PROTEJAM! — berra Fierce, de algum lugar na multidão caótica.
      Caos acalma caos.
      Alguém cai ao meu lado, e Eden protege Pluvia com o próprio corpo enquanto os pássaros os rodeiam, bicando e arranhando.
      Um corvo vem na minha direção, e viro o rosto no momento exato em que seu bico atinge minha bochecha, deixando um arranhão na minha pele. O pássaro se enrosca em meu cabelo, crocitando perto de meu ouvido.
      Outra onda de pássaros desce na nossa direção, passando pelas pessoas que se debatem no chão, e não tenho tempo de desviar antes de ser atingida pelas aves sedentas.
      Caos acalma caos.
      Mavka usa a própria dor para reunir o que precisa para apaziguar os corvos furiosos, quebrando e gritando e cedendo e lutando no pandemônio de asas negras. Não tão longe dela, Fierce e Macaire usam os casacos para afastar os pássaros, golpeando o ar com as roupas pesadas e atingindo alguns inimigos no processo.
      Procuro por Edmond, apenas para encontrá-lo de joelhos ao lado de uma roseira, sendo atacado por meia dúzia de aves esganiçadas que tentam bicar seus olhos. Corro até ele, estapeando os corvos que me ferem e abrindo caminho entre as penas sombrias e os gritos que saem dos bicos dos pequenos demônios.
      — Estou aqui — anuncio, agarrando um dos pássaros perto de sua cabeça e o arremessando para longe. A ave investe na minha direção como se quisesse revidar, mas desiste quando bato em uma de suas asas com força o bastante para levá-la ao chão. — Estou aqui.
      Bicadas insistentes tentam abrir buracos em minha nuca, e um par de asas desnorteadas se choca contra meu peito, contudo, não paro de afastar as criaturas que se interessam por Edmond, que tenta proteger a própria cabeça entre os braços largos.
      Nem mesmo as mãos fúnebres que saem das roseiras são poupadas, sendo atacadas por bicos e garras.
      — Olhe para mim — peço, atirando uma pedra contra um corvo. Não espero para descobrir se minha mira é boa ou não, mas ouço o som estridente que denuncia a resposta. — Estou aqui!
      Edmond levanta a cabeça, apenas o suficiente para que eu veja os olhos verdes. Quase me deixo levar pelo desespero ao enxergar o poço profundo refletido nas íris da primavera, as pupilas que ameaçam engolir qualquer resquício de vida ao redor dos abismos insondáveis. Uma lágrima solitária desce pela bochecha machucada, me puxando de volta para o caos conforme meus dedos trêmulos expulsam a gota salgada do rosto congelado pelo medo.
      — Vai ficar tudo bem. — O seguro com força, protegendo-o com meu próprio corpo. — São só alguns pássaros, certo? Eles já estão indo embora — minto, tentando acalmá-lo. — Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
      Consigo ver Apza derrubando duzias de aves, assim como Mavka e outras aprendizes, varrendo os corvos como folhas. Penso que talvez não seja uma má idéia aceitar a oferta de Mavka, mas já me decidi – mesmo que ela não saiba disso. Existem muitas coisas dentro de mim. Traumas. Medo. Arte. Teimosia. Estilhaços de uma vida inteira jogada fora. Uma lacuna. Contudo, vocação para magia não é uma delas. Assim como lutar em uma arena não é uma opção no momento.
      Edmond não responde, ainda assustado, se agarrando ao meu braço com força.
      O crocitar de um corvo faz meu ouvido doer com o som, então a ave cai morta no chão. Cortesia de Apza, que pisca para mim conforme arrasta um punhado de asas para baixo. Agradeço, mas ela não me ouve, ocupada demais com os pássaros que parecem se multiplicar.
      Mavka já desistiu de tentar acalmar o bando de corvos, e agora os bane do céu com violência, partindo seus pescoços no chão.
      Os traidores inconscientes nos assentos dourados são devorados pelas aves. Guinevere, a garota que não parou de lutar até ser abatida pelo pó cintilante, é a pior das figuras desacordadas. Dois corvos se equilibram em sua cabeça, bicando os olhos fechados que sangram com os buracos abertos, embaraçando o cabelo castanho conforme batem as asas ao seu redor.
      Meu estômago se revira com a cena grotesca, mas não ouso vomitar.
      Fecho os olhos, tentando respirar, mas fico cada vez mais sem ar, me afogando em terra firme.
      Meus braços estão cheios de arranhões, com pequenas gotas de sangue explorando o caminho para fora dos machucados. Um corvo rodeia minha cabeça, bicando minha testa e bagunçando meu cabelo com as lufadas de ar proporcionadas pelas asas de carvão.
      Então, o barulho para de repente. Em um momento, penas e gritos, e no outro, silêncio absoluto. Nem mesmo o vento parece soprar, comovido pela bagunça caótica.
      Ergo a cabeça, e as mãos de Edmond se demoram em meu antebraço, se recusando a ficar à deriva outra vez. Ao nosso redor, um cobertor negro de asas e olhos vazios se estende pelo chão, escondendo a grama verdejante que existe sob os cadáveres sombrios. Demoro alguns segundos para entender que a grama não está escondida, apenas misturada com os corvos, aos poucos adquirindo o mesmo tom de suas asas. O rastro.
      Edmond ainda treme, erguendo a cabeça devagar, avaliando o terreno mórbido que nos cerca. Ele toca em um dos cadáveres, e recua com pavor nos olhos primaveris. Não sei qual é o motivo de tamanho medo, mas reconheço a reação assustada, porque tenho a mesma quando acordo em lugares estranhos pela manhã, ou quando o fogo volta para terminar o serviço em meus pesadelos.
      Mavka cutuca as próprias feridas, arrancando sangue nas unhas douradas, antes de caminhar até o centro do cemitério negro e levantar as mãos como se segurasse um vaso de flores. Com o simples gesto, as aves retornam à vida, acompanhadas por pequenos espasmos no processo. Contudo, não nos atacam ou se movem enfurecidas. Os pássaros apenas se reúnem em uma nuvem sombria de silhuetas que dançam no céu quase totalmente escuro, voando para longe, crocitando ao vento que voltou a soprar. Indo embora, e desaparecendo entre as árvores que não passam de borrões de nanquim.
      Pluvia solta um grito ao se deparar com a visão de Guinevere, o sangue ainda escorrendo pela face, se misturando aos trechos rubros já coagulados. Eden a segura conforme ela vomita as tripas, horrorizada com a cena traumática.
      Cabelos emaranhados e olhos esbugalhados se erguem por todos os lugares, todos atordoados e machucados.
      Mavka olha ao redor, as madeixas douradas bagunçadas, o vestido branco teve a gola alta manchada de sangue, e uma pena escura está enroscada em uma das tranças.
      — Começou. — É tudo o que ela diz, antes de cair de joelhos no chão cheio de penas perdidas, fraca demais para erguer a cabeça.
      

      
      
      

Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora