Edmond queria vir comigo, mas ele precisa estar na enfermaria pela manhã, assim como os demais curandeiros de Rosetrum, e como não sei quanto tempo Mavka vai demorar para fazer o que quer que seja para manter Clément afastado, pedi que Veuria viesse comigo, já que não deixariam que eu saísse sozinha, de qualquer forma.
Sei que estão apenas tentando me manter longe de problemas, mas a falta de liberdade é sufocante. Mesmo na floresta, com um alvo em minhas costas e um possível preço pela minha cabeça, eu possuía mais espaço para respirar.
— Sabe que não precisa bancar a guarda-costas, não? — suspiro, pulando sobre o tronco caído de uma glicínia morta.
Veuria não responde, caminhando em silêncio atrás de mim. Seus passos são abafados pelo cobertor de folhas com orvalho que se estende por entre as árvores, e com a escuridão que nos cerca, preciso olhar ao redor vez ou outra para me certificar de que não estou sozinha.
— Você nos fez jurar fazer algo que vai além da lealdade, Fórzia. Só estou tentando garantir que a promessa não precise ser cumprida.
Um riso de escárnio molda meus lábios.
— Me colocando em uma bolha? Eu fui bem clara quando disse que não queria ser tratada com diferença. Por favor...
— Se esse for o preço para que não tenhamos de matá-la, então espero que aproveite sua gaiola de vidro temporária.
— Por que concordaram, afinal? Já que vocês claramente se recusam a cumprir o juramento. — Meus lábios oscilam entre um sorriso sarcástico e um descontentamento que fica nítido mesmo na escuridão. — Entendo que estão tentando fazer o que acham certo, entendo de verdade. Mas é a minha decisão e, se não posso evitar, ao menos tenho o direito de escolher como quero morrer.
Meus olhos queimam, porém não permito que lágrimas desnecessárias molhem as bochechas quentes.
Veuria aperta o passo, caminhando ao meu lado como um fantasma indignado.
— Morrer não é uma escolha, Fórzia.
— Morrer com honra, sem ter que derramar mais sangue inocente... é uma escolha.
No momento em que as palavras são jogadas para fora de minha boca, desejo poder engolir cada vírgula. Sei que a ofendi com o tom ácido. O pai de Veuria preferiu morrer à se entregar para o Povo da Floresta, ele escolheu partir com a honra que possuía, porque sabia que estava do lado certo daquela batalha, e tinha consciência de que seria morto no momento em que o pegassem.
— Ele não teve a escolha que você tem. Mesmo que Clément a faça ferir alguém novamente, ninguém te torturaria até a morte por isso, porque sabem que você não tem controle sobre isso.
— E você acha justo, que eu permaneça intocada enquanto pessoas inocentes morrem? Acima de qualquer punição porque "não possuo controle"?
— Não é sua culpa! — exaspera, jogando as mãos para o alto.
No Mundo de Fora, aprendi que as árvores podem ver o que o musgo costuma escutar, e, apesar de Rosetrum não ser tão diferente em relação a isso, o tom de Veuria não me preocupa. Estamos passando por um trecho da floresta em que os arbustos espessos encobrem boa parte dos sons, nossas vozes são como sussurros inaudíveis para qualquer alma curiosa – se alguma ainda estiver acordada a essa hora da noite.
— É claro que é minha culpa! Eu matei Clément. Eu me entreguei à morte naquele maldito pântano. Se eu não tivesse feito pelo menos uma dessas coisas, nada disso estaria acontecendo.
Os pés de Veuria param de se mover. Ela prende os dedos ao redor de meu braço, me puxando com tanta rapidez que demoro alguns segundos para digerir o movimento, encarando os olhos puxados na escuridão, sem entender o motivo por trás da brutalidade do solavanco que meu corpo enfrentou ao ser virado.
— Você queria ter morrido. — É tudo o que ela diz, mais para si mesma que para mim.
— E teria conseguido, caso Clément não estivesse tão determinado.
Ao terminar, puxo meu braço com rispidez, lhe dando as costas e voltando a seguir meu caminho enquanto ela permanece imóvel.
Admitir isso para mim nunca foi difícil. Esse é o tipo de coisa que não precisei esconder de mim mesma com memórias falsas, sobrepondo a verdade com imagens ilusórias. Porém, confessar para Veuria é como engolir um bloco de aço com pontas afiadas.
— Você não dá a mínima para o que Clément fará, não é? — A voz dela corta o ar até mim, e eu me transformo em uma estátua sem movimento, parada de costas para Veuria. — Aquele maldito voto de sangue, nunca foi sobre proteger pessoas como Ivanka ou Apza, muito menos sobre ética ou honra. Era sobre você, e essa sua obsessão com a morte. Você não se importa com nada disso — ela solta um riso de escárnio entre as palavras, como se não acreditasse no que sai de sua boca —, só nos fez selar o juramento para nos usar como um meio de alcançar o que não consegue fazer sozinha.
Não me viro, sequer respiro conforme ela cospe o que acha que é a verdade absoluta.
Veuria não está totalmente errada. Depois de um tempo alimentando falsas esperanças, entendi que não existe um futuro para mim, aqui ou em qualquer outro lugar, porque mesmo que eu consiga me livrar de Clément, e tudo ao meu redor se transforme em quietude genuína, esse estigma nunca me abandonará. Estou condenada a viver o resto de minha vida atolada em possibilidades que eu mesma aniquilei, assombrada por fantasmas cujas almas eu mesma roubei. Esse é o fardo que irei carregar até que meus pulmões se esvaziem permanentemente.
Mas ela está errada quando diz que não me importo. Em parte, eu usei o voto escarlate como uma desculpa para convencê-los a me ajudar a alcançar um fim melhor. Mas não fiz isso apenas para conseguir o que quero. Eu me importo de verdade com o que Clément reserva para meu breve futuro. Meu coração sangra toda vez que o nome de Ivanka ressuscita em minha memória. Toda vez que alguém insiste em me contar algo novo sobre ela, como se a minha culpa não bastasse para me afetar. Toda vez que penso nos planos de Clément, e em como Apza se encontra em cada um deles.
Isso só me faz querer ainda mais que alguém cumpra o juramento, ou que uma estrela me queime viva durante a noite.
— Já parou para pensar — continua Veuria, ainda parada atrás de meu corpo petrificado — em como isso nos afeta? Ou realmente acredita que se um de nós te matar, tudo ficará bem? Você não é um brinquedo insignificante, Fórzia! Não pode entrar em nossas vidas em um dia, e pedir para que nós a tiremos no outro. Se um de nós cumprir o juramento, seja lá quem for, não vai escapar da mesma forma que entrou. Eu sei disso. Você sabe disso! Que merda, Fórzia!
Minha garganta é um emaranhado de gritos sufocados sob pedras pesadas.
— O que acontecerá com Edmond, se ele precisar fazer isso? Diga, Fórzia! O que acontecerá com ele, com Eden, ou até mesmo Pluvia?
— Vocês vão seguir em frente. — A mentira queima minhas cordas vocais. — Vocês ainda vão ter uns aos outros...
Não consigo continuar falando, a simples menção de abrir a boca faz minha cabeça girar e capotar.
— CHEGA! — berra Veuria. Sequer tenho tempo de me virar antes de ser agarrada pelos braços e jogada no chão com tanta força que meus ossos reclamam. — Pare de mentir! — rosna, segurando meus pulsos contra o chão e subindo em meu corpo imobilizado. — Não existe "seguir em frente", isso não é um jogo!
Tento me soltar, forçando meus braços para cima, mas ela não cede, me prendendo com mais força contra o chão. Sinto que minha cabeça vai explodir, cada veia dentro de mim é uma linha sufocada, presa e prestes a se arrebentar. Grito e choro e me debato como um peixe jogado para fora do lago, mas isso apenas ajuda Veuria a assumir o controle.
— Assuma uma única vez, que você sabe que isso vai destruí-los, vai nos destruir. Edmond nunca será o mesmo, Fórzia. Nenhum de nós será. — A raiva em sua voz se desmancha, derrete ao redor de um eco sem emoção, vazio e entorpecido.
— Você está me machucando — choramingo, com os pulsos sendo esmagados por seu peso.
— Isso vai nos destruir — repete ela. — Pense em como ficaremos.
Então, penso. Por um momento, consigo imaginar um breve luto, seguido de um futuro gentil para todos eles. Mas a imagem de desfaz como fumaça, e através da névoa fragmentada, o que vejo é escuridão. Se um deles cumprir a promessa, estarei fechando uma porta e fugindo do inferno que restará atrás dela. É sempre assim, fugir é a primeira opção que surge na minha cabeça, para qualquer tipo de problema. Eu fugi do incêndio. Fugi da floresta. E estou fugindo de Clément.
— O que você quer que eu diga?
— Não quero que você diga nada. — Veuria me solta. Esfrego os pulsos doloridos, onde ainda consigo sentir seus dedos apertados contra a pele. — Apenas que entenda o preço de seu juramento egoísta. Se quer tanto morrer, ao menos seja justa consigo mesma, Fórzia. Isso não é morrer com honra. É desistir.
Quando ela sai de cima de mim, me deixando no chão enquanto continua seguindo o caminho até a Iglaevi, eu não tento me levantar por longos instantes, digerindo tudo o que aconteceu nos últimos minutos.
Depois de finalmente criar coragem para ficar em pé, passo o resto do caminho andando alguns metros atrás de Veuria, e ela não se dá ao trabalho de olhar por cima do ombro conforme avança entre as árvores.
Ao pisar no jardim silencioso, tudo o que faço é passar por ela com o queixo erguido, a deixando para trás com um orgulho que sequer possuo.
— Não precisa me esperar, posso voltar sozinha para casa. — Sustentar a postura ereta enquanto finjo não estar quebrada, só faz meu peito se partir ainda mais.
— Acho que ainda não percebeu, mas essa decisão deixou de ser sua no momento em que você tirou a nossa.
Não olho para trás quando avanço na direção da árvore, para a luz que brilha no meio do jardim como uma escapatória para meus conflitos.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
FantasyPLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...