Apza é a filha de Clément, e a pessoa por trás de meus tormentos. Ela é o cordeiro que o espectro quer que eu sacrifique. A própria filha, ele quer a própria filha... morta.
Bile sobe até a minha garganta enquanto me esforço para não vomitar as tripas na grama. Até mesmo as estrelas me deixam enjoada, enojada pela idéia de estar sendo perturbada, coagida a matar uma inocente. Não posso fazer isso. Não vou.
Pluvia tentou falar comigo depois do jogo. Ela veio com o plano todo na cabeça para se vingar de Eden e Macaire e toda aquela guerra estúpida na qual eles se envolveram até o pescoço por pura diversão desgastante. Sequer esperei que ela terminasse de contar sobre os cogumelos, antes de deixá-la confusa com minha saída repentina.
Eu não podia ficar lá, não consegui ver Apza tão feliz, sem a mínima noção de que a alma perturbada do próprio pai a quer morta. Então fugi sorrateiramente pelas sombras, deixando Pluvia e os outros no meio da celebração, e corri para cá. Para a macieira.
Juntei cadáveres de insetos na barra do vestido branco, peguei pedras brilhantes e arranquei plantas pelas suas raízes. Eu trouxe tudo o que encontrei pelo caminho até o cemitério aos pés da macieira, e cavei mais buracos do que fiz em um mês inteiro. Ainda não terminei de abrir as covas na terra, e não me importo com os dedos machucados, cortados pelos pedregulhos. A dor me mantém presente.
Como eu não desconfiei antes? Toda aquela história por trás de como ela veio parar em Rosetrum, todas as pistas, as verdades mascaradas, tudo sendo jogado na minha cara constantemente, e mesmo assim, eu não percebi.
Apza e a mãe fizeram as malas com a intenção de fugir de alguém. De Clément. E mesmo agora, no lugar mais seguro em que ela poderia estar, o mal a persegue a passos calculados.
Não consigo parar de pensar em como a mãe dela deve de ter morrido feliz, com a ilusão de que a filha ficaria segura em Rosetrum, levando uma vida feliz e sem problemas até o dia de sua morte. Me pergunto o que ela diria se soubesse que há grandes chances de a vida de Apza acabar mais cedo que o esperado. E por minha culpa.
Não, não vou fazer isso. Eu já estava decidida muito antes de saber sua identidade. Eu já tinha aceitado a oferta de uma morte dolorosa e demorada. E, agora, com a volta da irmã de Mavka, há uma chance, ainda existe esperança. Só preciso esperar alguns meses até que o equilíbrio de Rosetrum seja restaurado de vez, e então as duas irmãs podem me ajudar a barganhar com a morte, ou seja lá o que Mavka tem em mente.
Uma risada rouca ecoa pelos meus ossos. Sério? Você é tão idiota assim, Fórzia?
Se eu conseguir sobreviver sem causar maiores danos até a ressurreição da irmã de Mavka, já vai ser um milagre. Não posso ficar sonhando com o que sei que não vai acontecer. Não vou aguentar nem mais um mês, como pretendo passar por cinco, então? Não tenho a coragem necessária para ver a mim mesma e as pessoas ao meu redor se despedaçando, fragmento por fragmento, virando pó e memórias conturbadas. Cada segundo seria como um prego sendo forçado contra meu crânio.
E sei que estou sendo egoísta por pensar assim. Por escolher deixar meus amigos, minha família. Por escolher não seguir as ordens de Clément. Por abandonar Edmond. Mas não posso matar Apza. Eles me entenderiam se soubessem. Sei que entenderiam.
Talvez seja menos doloroso, se eu contar.
Não.
Não quero que me olhem como olham para aquela mulher seguida pelo rastro. O rastro, mais uma coisa ao meu favor. Ninguém vai desconfiar de nada, pois ele não funciona comigo. Não sou digna de qualquer piedade da natureza.
Continuo cavando, até não sentir mais a terra roçando contra minha pele, porque meus dedos lentamente perdem a sensibilidade, acostumados demais com a ardência que queima meus nervos.
Separo o cadáver de uma cigarra entre os pequenos corpos empilhados na grama, o colocando dentro do buraco com cuidado, e selando a cova com alguns ramos de hortelã, cheios de raízes nas bases dos caules magros e compridos.
Em seguida, enterro o cadáver de uma joaninha, o de uma mariposa, e as pedras brilhantes que encontrei enquanto corria até aqui. O brilho azulado das pequenas rochas pontiagudas mancha minhas mãos sujas com tons profundos e melancólicos. O cheiro da terra que se acumula sob minhas unhas só me deixa mais triste, por algum motivo.
Astrenly, repito com vagareza, como se pudesse destrinchar o sobrenome em minha cabeça. Astrenly. Astrenly. Astrenly.
Um vulto. Um lampejo de vermelho com nuances brilhantes.
Levanto o olhar da terra para a macieira, e alí está ela. O mesmo vestido carmim, os pés descalços com pequenos cortes de espinhos na altura dos tornozelos, o cabelo e a pele tão pálidos quanto a luz da lua gigantesca que ilumina a noite. Os olhos rosados refletem o brilho do céu estrelado.
Ela está pendurada de cabeça para baixo no galho mais grosso da macieira, se segurando com as pernas dobradas na altura dos joelhos e as mãos feridas que agarram os tornozelos. Apesar das bandagens escurecidas, ela tem um sorriso no rosto vivaz, um sorriso que denuncia a inocência infantilizada que costumava estar presente em cada um de seus passos.
Sou incapaz de abrir a boca diante dela. Não sei se devo ficar extasiada ou preocupada. Se posso vê-la, significa que outro limite fora ultrapassado, outra barreira quebrada em minha mente estilhaçada.
Quero gritar e abraçá-la. Mas sei que sua forma vai se esvair por entre meus dedos no momento em que eu tentar tocar o fantasma pálido. Se é que ela é um fantasma. A Morte tem me enviado muitos recados ultimamente, mas nenhum bom, até agora. Provavelmente, é apenas uma forma que meu cérebro encontrou para me acalmar. Um lampejo de paz em meio à tragédia do cemitério de flores.
Fantasmas existem, mas Daphna não é um deles. Fantasmas são presos por memórias e sentimentos, entrelaçados nas cordas do mundo dos vivos por tênues laços de emoção. Clément é um, se debatendo contra as paredes da realidade, colidindo com os desejos inescrupulosos e o acordo que dividimos. Mas Daphna... ela não tem nada que a mantenha entre os dois mundos.
Não sei o que existe além das cordas vermelhas, além do limbo no qual fui parar quando me afoguei. Mas espero que seja um lugar bonito, com margaridas simbólicas e franjas tortas. Espero que nem tudo se resuma à tormenta e à escuridão. Pois, seja como for, é nesse lugar que ela está.
Aqui, comigo, só existe uma concha, uma casca, criada pela minha mente. E é para essa concha de memórias que abro o sorriso mais genuíno que consigo esboçar sem me quebrar.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
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