Mesmo com o aviso de Mavka, Caelestis ainda tem coragem de estalar a língua, revirando os olhos como uma criança birrenta.
Então, quando Falena pergunta sobre a irmã, e a serpente a ignora, apenas para encarar a deusa com uma mistura de cautela e desdém, as mãos albinas se fecham ao redor do pescoço de Caelestis, e em uma fração de segundo Falena está em cima dela, rosnando no ouvido da cobra que não move um músculo diante da ameaça.
— Acha... que isso me assusta? — O ar parece escapar de seus pulmões em uma carruagem de metal. — Me mate, e o que sei sobre a guerra morre comigo. Pense duas vezes antes de quebrar meu pescoço, garota. Você estará me fazendo um favor.
— O que aconteceu com a minha irmã? — ruge Falena.
O resto de nós se limita a trocar olhares desesperados, enquanto as duas pisam em um teto de vidro com Mavka fingindo não perceber o conflito. Penso que, se Falena matar Caelestis neste exato momento, a jovem dourada irá apenas revirar os olhos e dar um jeito de extrair as informações do cadáver.
Mas Mavka acredita em segundas chances, e talvez seja isso o que a faz tocar o ombro de minha amiga com os dedos de ouro, trancando a raiva dentro do corpo esguio como fez no dia em que Caelestis chegou.
— Última chance — alerta ela. — Você disse que não podia voltar, porém se recusou a ser lida por mim. Respeitei suas vontades, até agora, mas se não colaborar e abrir a boca, vou ser obrigada a extrair suas memórias com minhas próprias mãos.
Caelestis se encolhe conforme Falena sai de cima dela tremendo de ódio, lutando para alcançar a fúria dentro do corpo magricelo, arranhando a casca da ferida com unhas e dentes. Ela esfrega os pontos em que Falena a tocou – o pescoço, os braços, um pouco da clavícula –, de uma forma precisa demais para ser casual. Só então ligo os pontos.
Caelestis foi torturada por meses, depois de ter sido queimada viva. As cicatrizes não mentem. Apesar de estar sendo curada aos poucos, ainda há buracos profundos em sua pele, desenhos feitos pela ponta de uma lâmina nos braços e nas pernas. As asas... destruídas.
Não. Mesmo que o fogo tenha dilacerado boa parte das asas, já se passaram meses.
Me lembro de ter cuidado de uma andorinha, em uma das viagens que fiz com meu pai em busca de plantas raras. Eu encontrei o pássaro no chão, à beira da morte com uma das asas quase sem penas e sangrando. Meu pai disse que o autor da tragédia havia sido um gato selvagem, pelas marcas deixadas na carne exposta, mas também porque os felinos vagavam por aquela área normalmente.
Não me recordo de como ele fez, mas no final do dia o pássaro estava enfaixado com bandagens que levávamos em um quite de primeiros socorros, cortadas em pedaços menores para que servissem na asa destruída. Eu cuidei da ave com a ajuda de Hollis nos dias que se seguiram, apesar dos esforços de meu pai para me convencer de que sacrificá-la era a coisa a certa a se fazer. A andorinha morreu antes de ter a chance de voar novamente, mas isso não importa agora.
Eu vi aquela asa massacrada se recuperar aos poucos. Penas novas surgiram, raquíticas e frágeis como o vento que torturava a ave com a lembrança de seus vôos. Eram muito pequenas, mas já eram alguma coisa.
Caelestis não as tem. Ela voltou sem uma mísera pluma.
Sei que há um abismo de diferença entre uma andorinha e uma mulher alada, e um maior ainda entre ser atacada por um gato selvagem e ser queimada viva. Mas considerando que Caelestis não é exatamente normal, deveriam haver algumas penas, mesmo que somente alguns poucos fiapos distorcidos despontando da pele ao redor dos ossos quebrados sob as camadas de curativos.
E o modo como ela não gosta de ser tocada é um aviso por si próprio.
— Como fizeram? — A pergunta não é acompanhada por qualquer sentimento de piedade, apenas a curiosidade fria como metal.
Caelestis entende o que quero dizer, abraçando o corpo com os braços marcados e cheios de folhas embebedadas sobre as feridas mais profundas.
Macaire fisga meu olhar por um momento, mas ignoro as perguntas que surgem através das íris azuis.
Sinto a mão de Edmond ficar um pouco mais firme em minha cintura.
A serpente caída olha para a poça que se formou sob meus pés, ainda crescendo com a água que escorre de minhas vestes encharcadas. Contudo, não há veneno nos olhos de avelã. Somente raiva, e uma dor cujo tipo já estou familiarizada.
— Alguns dias depois do fogo, eu já estava curada. Pessoas como eu têm esse... dom — diz ela, baixinho. — Eles não sabiam o que fazer comigo, no início. A morte seria fácil demais, então, me prenderam em uma cela minúscula. Mãos e pés acorrentados, grilhões pesados. Quando se lembraram da minha existência, eu já estava quase morrendo, então me deram um pouco de comida podre, e um copo com água. No dia seguinte, eles finalmente descobriram o que fazer comigo.
Fierce e Pluvia recuam alguns passos, ambos se sentando em um leito vazio sem deixar de prestar atenção no relato da serpente.
Veuria gruda o ombro direito à parede, observando.
Eden parece ser o mais nervoso com a situação, brincando com os dedos em uma dança frenética que não me surpreende. Ele simplesmente não consegue permanecer parado em momentos de tensão, é um milagre que ainda não tenha começado a chutar o ar.
— Me tiraram do cubículo durante a madrugada, e me arrastaram pelos braços até uma sala longe de minha cela. Eu já havia visitado o Fosso algumas vezes antes, mas estar presa lá é... diferente. Quando a guerra começou, houve uma rebelião entre os prisioneiros. A maioria conseguiu escapar, matando muitos dos guardas no caminho, então o Fosso se tornou um verdadeiro pandemônio. Os prisioneiros que restaram, não tinham para onde ir, por isso não fugiram na rebelião, e acabaram fazendo parte de meu inferno. Eles estavam lá, na sala escura. Eu não podia ver seus rostos, mas eram eles. — Caelestis esfrega os braços, tentando limpar algo que não está alí. — Pela primeira vez, eu não estava amarrada, e quando percebi que a porta ainda não havia sido trancada, eu corri. Consegui subir alguns lances de escadas, mas antes que eu pudesse me esconder, alguém atirou uma faca em minha mão. — Ela mostra o buraco cicatrizado, e os lábios deslizam em um sorriso de pura conformação melancólica. — Não deram importância aos meus gritos quando me arrastaram de volta. Dessa vez, eles trancaram a porta.
Mavka abre a boca para intervir, a expressão moldada entre o extremo desconforto e a pena que parece surgir no fundo da garganta. Mas Caelestis não se importa. Ela não consegue parar. Os olhos verdes já foram possuídos pelo brilho monótono. A voz rouca já não faz questão de se calar, nem mesmo para respirar.
Uma porta foi aberta. Uma porta forjada em um inferno pior que o meu próprio. E, agora que Caelestis a abriu, não há mais volta. Não para mim, ou para Mavka, muito menos para Falena. Mas para ela.
Vazio. Tudo o que vejo nas íris apagadas é um vazio viciante.
Caelestis não está mais aqui. Foi sugada para dentro de si mesma no momento em que abriu a caixa de lembranças cortantes.
E ela não consegue parar.
— Na manhã seguinte, começaram as mutilações. Eles riam, enquanto eu sangrava. Arrancavam cada pena nova que nascia. Aprendi a esconder as plumas que foram surgindo nas curvas mais fundas das asas, mas não durou muito tempo. Quando descobriram meu pequeno ato de rebeldia, as queimaram. Faziam isso uma vez por semana, assim que uma nova pluma nascia contra todas as chances, minhas asas eram incendiadas novamente. Até que elas começaram a nascer raquíticas, feias. E, eventualmente, elas pararam.
— E o que a minha irmã tem a ver com isso? — A língua afiada de Falena corta o ar com a indiferença fria.
— Eu não estava sozinha naquele lugar.
Falena não tem reação. Nenhum de nós tem, para ser sincera.
O silêncio e o choque nos abatem como um soco no estômago. Qualquer pergunta permanece odiosamente engasgada na garganta de quem tenta esboçar algo além de espanto.
Mãos inertes ao lado do corpo e olhos estáticos. Tudo o que enxergo no reflexo da janela e nas pessoas ao meu redor, é a síntese do desamparo.
Veuria se afasta da parede, repousando a mão fina no ombro marmorizado de Falena, oferecendo um apoio distante, uma âncora que ela não é capaz de alcançar. Mas é inútil, pois todo e qualquer resquício de vida existente alí, escorregou das órbitas paralisadas há muito tempo.
— Não é verdade — acusa Pluvia, se erguendo com os braços cruzados sobre o peito, uma tempestade se movendo nos olhos cinzentos.
Caelestis não ergue um dedo para se defender.
— Nós vimos quando aconteceu. — Aperto a mão de Edmond em minha cintura, e posso jurar ter sentido as pétalas caindo em meu rosto mais uma vez.
— Não minta para nós — adverte Mavka, com o rosto sereno, apesar da voz irredutível.
Ela poderia acabar com tudo isso com um único toque, mas Caelestis não permitiria, e a jovem dourada nunca a tocaria sem permissão, por mais que tente dizer o contrário quando decide vestir a máscara de liderança.
No dia em que ela chegou, Mavka encostou nas feridas e nas cicatrizes, mas não acredito que tenha sido o bastante. Lembranças traumáticas não são como lacunas. Ao menos penso que não.
Caelestis não abre a boca, e o silêncio que serpenteia por entre nós é uma resposta alta demais para nossos ouvidos.
Sentado, Macaire esfrega os olhos com violência, sem se importar com o borrão negro no qual a maquiagem se transforma, manchando o rosto pálido até as têmporas, onde a escuridão caótica se mistura à noite sem estrelas do cabelo bagunçado que para na altura do maxilar. Ele solta um suspiro dramático que parte o silêncio em mil estilhaços, enterrando a cabeça nas mãos com os dedos esticados.
Ninguém ousa abrir a boca durante minutos excruciantes, cada um se afogando nas próprias memórias compartilhadas com Daphna. Todos menos Eden, cujos pés só tocaram o solo pútrido da floresta, quando ela deixou o lugar.
— O que vocês viram? — A pergunta de Caelestis ilustra o ar com um desafio em cada sentença.
Pluvia é a primeira a abrir a boca, mas os lábios rubros se tornam uma linha fina no momento em que os olhos chuvosos encontram os meus com uma interrogação velada.
Nós duas estávamos lá, mas ela já havia pulado quando Daphna me entregou o isqueiro. E Pluvia estava focada demais em me manter viva na água quando o machado desceu sobre a cabeça de Daphna. Querendo ou não, só eu possuo a resposta.
Consigo sentir Falena me vigiando, buscando a alma esburacada que existe por trás de meus olhos doloridos. Mas não tenho coragem de encarar de volta, desviando o olhar para o chão, focando e desfocando a visão como minha única válvula de escape do ardor que percorre minha mente.
Nunca tivemos coragem de contar a ela como foi que Daphna escapou por entre nossos dedos. E ela nunca perguntou. Jamais buscou reabrir a ferida. Nem uma única vez.
Mas agora, Falena é uma espada forjada em línguas de fogo, e cada centímetro dela grita pela verdade, ameaçando dilacerar quantas vidas precisar para chegar ao veredito final.
Então, me permito ser a primeira alma a receber o golpe.
— As costas dela estavam cheias de flechas — começo, a voz embargada com a imagem que nunca vai deixar minha cabeça. — Uma delas atravessou entre as costelas. Ela estava ajoelhada na poça vermelha, sangue escorria de sua boca. — Engulo em seco, e minha garganta arde. — Ela pediu para que eu cuidasse do isqueiro, e fechou meus dedos sobre ele. — Uma única lágrima escorre pela minha bochecha, pendurada próxima ao queixo. — Eu tentei... Tentei puxá-la comigo para fora do penhasco, mas... — As palavras ficam presas em minha boca, acorrentadas na ponta da língua. — Ela me soltou. E pouco tempo antes de eu atingir a água, o Povo da Floresta a alcançou, e um machado brilhou sobre sua cabeça.
Não preco encarar Falena para saber que está petrificada, uma estátua quebrada eternizada em mármore, destruída em cada detalhe. Ela não chora. Não grita. Não reage.
Uma fera contida em uma casca vazia.
De relance, enxergo os dedos dourados de Mavka conforme ela arranha o próprio pulso por debaixo da manga do vestido. Uma única gota de sangue transcende, marcando o tecido pálido com a moeda que significa muito mais que apenas um ato de generosidade. Ela se importa.
E com um arquejo, Falena alcança a prisão dentro de si, arranhando as emoções que explodem em seus olhos de uma só vez, insuportavelmente ruins.
Ela vira a cabeça na direção de Caelestis, tendo plena consciência de que Daphna morreu pelo ódio que ela semeou, e metal frio se contorce nas íris do crepúsculo.
Os lábios pressionados em uma linha fina, são o único indício de arrependimento no rosto de Mavka, porém ela não revoga o feitiço, calada ao lado de Pluvia enquanto observa com os olhos atentos.
Edmond, que até então estava atrás de mim, passa para o meu lado ainda com uma das mãos tensa em minha cintura. Um músculo se contrai em sua mandíbula, e as esmeraldas vasculham a enfermaria com cautela, procurando pela saída mais próxima entre os leitos e as cortinas floridas, mesmo sem mover a cabeça um centímetro sequer.
Eden o encara com o mesmo pensamento, se colocando na frente de Pluvia como um poste blindado, mas ela apenas dá a volta nele e para ao seu lado, franzindo a testa ao cutucar as costelas de meu amigo. Eden não se incomoda com sua persistência em recusar qualquer ajuda, colocando o braço na frente da tempestade personificada como uma última tentativa de protegê-la, mas ela ignora o gesto, dando um passo à frente e desafiando o perigo com o queixo erguido.
Veuria tem o cuidado de se afastar de Falena, encarando Fierce, que se levanta do leito vago calado, deixando apenas Macaire sentado na cama.
Contudo, Falena não move um músculo além do necessário, deixando que Caelestis continue a história enquanto leva a mão até o bolso, tocando o isqueiro sem retirá-lo de seu esconderijo.
Assisto conforme os ombros de Fierce relaxam minimamente, apesar de ele não retornar para o leito.
Por um instante, me pergunto se o comportamento contido é cortesia de Mavka, mas ela me parece tão surpresa quanto o resto de nós. O mérito é apenas da garota, e isso quebra meu coração, pois sei que algo dentro dela está se partindo em mil pedaços a cada respiração controlada.
Ela não diz uma palavra, mas posso enxergar o vazio frio onde a primavera costumava crescer. Uma mente tão baleada e destruída, que as cinzas são provavelmente a única coisa deixada no peito oco.
— Vocês não a viram morrer. — Caelestis agarra o lençol fosco, perpetuando um brilho fúnebre no olhar. — Porque ela não morreu naquele penhasco.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
FantasíaPLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...