Cada parte de meu corpo dói, os músculos pesados e rígidos. Sinto como se houvessem enchido minhas veias com cimento molhado, e agora o material seca lentamente, me petrificado aos poucos. Minhas pálpebras parecem coladas, de forma que doem quando abro os olhos. Nem mesmo os lençóis macios são capazes de me deixar confortável.
Não sei por quanto tempo estive desacordada, mas sei que estou na enfermaria. Cortinas de begônias e gardênias e narcisos me cumprimentam ao passo que acordo, o tilintar constante de frascos se instala em meus ouvidos, assim como o cheiro de alecrim destilado entra em meus pulmões ainda ardentes. Minha língua formiga, o gosto metálico de sangue e terra me forçando a torcer o nariz em desaprovação.
Olho para o lado, apenas para enxergar o leito vazio de Caelestis do outro lado da enfermaria, os lençóis bagunçados brilhando à luz do sol. Ninguém se deu ao trabalho de decorar seu espaço com cortinas de flores ou penduricalhos, apesar dos raquíticos ramos de urzes e violetas amarrados em um buquê caótico na mesinha ao lado do leito. Não preciso perguntar, para saber que as flores foram colhidas pela própria.
Ao mover o braço para puxar a cortina cheia de vida morta, meus músculos reclamam com pontadas afiadas que percorrem minha espinha em um protesto doloroso. Quando me forço a virar no leito, apenas para garantir que o rosto de Caelestis não seja um dos primeiros que eu veja depois de meu repouso pós-envenenamento, encontro uma silhueta musculosa caminhando na faixa luminosa que atravessa uma das muitas janelas colossais.
— Da próxima vez que decidir enfrentar Icca — começa Edmond, se aproximando com as mãos nos bolsos do avental de algodão cru, que exibe manchas verdes de todos os tipos —, se certifique de que há um curandeiro por perto antes. Você quase... — Ele segura as palavras, enchendo as bochechas de ar conforme segura a mão na altura da boca. — Acho que você não está entendendo o quão difícil foi te tirar da beira da morte.
— Bom dia para você também. — Esfrego os olhos, sentindo como se pedras e poeira estivessem sob minhas pálpebras.
— Faltam menos de duas horas para o sol se por. — Edmond se senta no canto da cama, encostando as costas da mão em minha testa. — Sua febre passou — constata ele, deslizando os dedos pela minha bochecha, e pressiono o rosto contra sua pele, absorvendo o calor.
— Boa tarde, então.
Consigo arrancar dele uma risada rouca, que logo cessa com um sorriso aliviado.
— Três dias — diz ele. — Três dias, Fórzia. Foram os piores três dias da minha vida.
A janela mais próxima fica a pelo menos cinco metros de distância de meu leito. Tento enxergar além da luz refletida no vidro, e, apesar dos nuances claros que quase me cegam, consigo distinguir o topo das árvores sem folhas, quase totalmente nuas. Não vejo nenhum resquício de ouro nos galhos de outono. Três dias.
— Clément...
— Está tudo bem — afirma, se virando para abrir a gaveta da pequena cômoda ao lado da cama. De dentro do móvel, ele retira a flor dourada enfeitiçada por Mavka, a mesma que me mantém longe das noites de sonambulismo, e não me deixa perder a sanidade enquanto espero pela ressurreição da segunda deusa. — Mavka fez questão de trazer isto ela mesma.
Edmond retira as pétalas douradas com cuidado, as colocando uma a uma em minhas mãos. Três, uma para cada dia que passei desacordada. Quando o ouro encantado toca minha língua, sequer sinto o gosto da magia, apagado pelo do sangue que ainda dança em minha boca.
— Vai me contar alguma novidade ou vou precisar descobrir sozinha?
Eu me arrasto no leito da enfermaria, repousando a cabeça em seu colo conforme a brisa fria do outono circula pelo ambiente, fazendo os penduricalhos tilintarem no alto da abóboda cristalina.
— Não tivemos nenhum recém-chegado nos últimos dias, mas outro grupo foi mandado para o continente — conta ele, os dedos enroscados em meu cabelo. — O portal continua da mesma forma, exceto que Lavena disse algo para Mavka antes de partir. Ela contou sobre uma conversa que vocês tiveram no dia em que... encontraram Ivanka. — Ele engole em seco ao mencionar seu nome, e eu ecoo o sentimento pesado. — Como não detectamos nenhum espião novo, Mavka deu um jeito de infiltrar um dos nossos lá fora.
— Quem? — A simples menção de levantar a cabeça faz meu pescoço doer.
— Fierce se voluntariou — conta, com um riso de escárnio. — Mas Mavka escolheu Kaife para a função. Agora Caelestis não possui mais um guarda-costas, mas isso limita um pouco seus movimentos.
Tento imaginar Fierce voltando para aquele lugar, fingindo estar do lado do Povo da Floresta para nos trazer informações. Com seu orgulho, provavelmente morreria antes de conseguir descobrir algo relevante. Com seu instinto de sobrevivência e lábia, porém, provavelmente daria um jeito de provar a mentira como se fosse o mais verdadeiro fato. Afasto o pensamento, apertando os olhos com força.
— Ela ainda pode treinar? — pergunto, os dedos passeando pelas manchas em seu avental, arrancando uma folha presa ao tecido.
— Infelizmente, precisarei te decepcionar com a resposta. Icca insistiu, enfatizando que ela possui um grande potencial e precisa de treinamento. Mavka acabou cedendo.
As vozes que ondulam pela enfermaria são como agulhas, sendo enfiadas em meu crânio com pontadas doloridas.
— Falena me contou sobre a Marca.
Posso sentir os olhos de Edmond presos à mim.
— Somos especiais, não sabia? — A amargura em minha voz estraga a piada debochada. — Como se não tivéssemos problemas o suficiente — resmungo.
— É algo a mais para descarregar a sua raiva, pelo menos.
— É uma forma de nos transformar em soldados. Não se esqueça de que só estou aqui porque quase morri.
— Icca não gosta muito de desistências. — Ele torce o nariz. — Pensei que você quisesse lutar.
— Eu quero — digo, reforçando as palavras com os olhos arregalados. — Rosetrum é minha casa, agora. Nossa casa. Só estou irritada. E preocupada. E sobrecarregada. Clément, o Povo da Floresta, Caelestis... É demais para mim. Mal consigo lidar com um problema só, com tudo isso acontecendo ao mesmo tempo, sinto que vou explodir a qualquer momento.
Três dias se passaram. Três dias, e sequer consigo me abalar, pois foram três dias sem fantasmas cobradores ou ameaças de guerra.
A mão de Edmond desce até minha nuca, deslizando em círculos preguiçosos pela minha pele, causando arrepios que me fazem estremecer.
— Só não se esqueça de que estarei aqui para juntar todos os seus caquinhos, caso você exploda de verdade — murmura ele, beijando o topo de minha cabeça.
O cheiro de raízes e poções está impregnado em suas roupas, grudado à pele como uma camada invisível de ervas frescas e plantas amassadas. Eu poderia ficar o dia todo aqui, inalando sua essência até cair no sono outra vez.
— Por quanto tempo ainda tenho que ficar aqui?
— Você vai precisar passar a noite na enfermaria, só por precaução. Niore me deixou assumir o turno dele para que eu possa cuidar de você, mas isso não significa que vou poder ficar ao seu lado o tempo todo.
Em algum lugar entre as cortinas floridas e os leitos ocupados, o som excruciante de uma criança chorando arranha meus ouvidos.
— Alguém veio me visitar? — pergunto, encarando o piso de mármore.
— Eden passou as duas últimas noites aqui — diz ele. — Todos eles passaram um tempo ao seu lado, na verdade. Apza também veio. — Ele aponta para um emaranhado seco de lavandas no pequeno móvel encostado na cama. — Ela parecia bem preocupada quando deixou isso para você.
— Ela me faria engolir essas flores se soubesse sobre Clément.
Uma risada fraca escapa por entre seus lábios, ondulando até meus ouvidos.
— Icca também veio, e pareceu se sentir bem culpada. Ela pediu que ninguém te contasse, mas não sou muito bom em guardar segredos.
Talvez a general tenha um coração, afinal.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
FantasyPLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...