Estou no cemitério do vilarejo. O jazigo da família se ergue à minha frente, adornado com colunas de pedra que sustentam o teto ogival. Rosas brancas se enroscam na construção, adornando a nova casa de meus pais. O lugar no qual eu deveria estar.
A estátua de mármore permanece como em minhas lembranças, o anjo cujas asas abertas apontam para o céu com uma mensagem sutil. Na pedra opaca sob os pés pálidos, leio as palavras entalhadas:ZÖLK VON LUNCHIÓRE.
Logo abaixo, em letras menores, porém minuciosamente gravadas no mármore, a frase que ouvi durante toda a minha infância descansa na pedra como um lembrete cruel.
Inteligente como uma raposa,
Leal como uma abelha.Eles escolheram a frase juntos, meus pais. Antes, o jazigo pertencia a família de minha mãe, mas depois da morte de meu avô paterno, os dois resolveram selar o jazigo dos Lunchióre e imediatamente mandaram esculpir o sobrenome de meu pai na pedra, unindo as duas famílias na vida e na morte.
Foi um final trágico. Um que eles não mereciam.
Meu pai me contou diversas vezes a história de como os dois se conheceram. Ele frequentava a biblioteca na qual ela trabalhava todos os dias, e pedia listas de livros complexos que normalmente são usados na faculdade, apenas para ter uma desculpa para falar com ela. Acontece que, minha mãe nunca foi burra. Ela desconfiou logo nas primeiras visitas, afinal, ninguém lê dez livros em um único dia, e então começou a deixar mensagens escondidas nas últimas páginas, uma palavra para cada livro emprestado.
Quando meu pai finalmente criou coragem para convidá-la para um jantar, ela o fez desvendar a mensagem secreta primeiro. Ele demorou uma semana, mas conseguiu achar todos os livros na biblioteca e juntar as palavras na ordem certa, e no final do sétimo dia, ele tinha a mensagem desvendada em um pedaço de papel que usou para anotar as pistas.
Disseram-me que era um poema. Contudo, eu nunca soube o que dizia nele.
Meus dedos deslizam por uma das rosas pálidas que despontam das colunas, porém o toque transforma as pétalas em cinzas, apodrecendo a roseira como uma praga de jardim. Me afasto com as mãos fechadas no peito, ainda confusa com as folhas que caem e os espinhos que se alastram pelo jazigo, reivindicando a construção com emaranhados de pontas afiadas e caules doentes.
Um par de asas flamejantes se fecha ao meu redor, me prendendo entre as chamas mornas que roçam minha pele, mas não ousam me machucar.
Quando as labaredas são apagadas, sou jogada no mesmo lugar, mas aterrisso no dia da invasão.
O jazigo ainda está em pé, mas ao ver o anjo quebrado em mil pedaços, sei que pouparam a tumba apenas por medo de uma possível retaliação do Desconhecido.
As gavinhas e as flores apodrecem na construção sagrada, e uma das colunas está caída no chão, despedaçada com o impacto da queda.
Isso. Isso é o que eu e Caelestis causamos juntas. Eu, por estupidez. Ela, por ódio.
O cemitério ao meu redor está em pedaços. Lápides intocadas, entre os escombros de construções decorativas e estátuas quebradas. O caos organizado.
As asas não retornam, e me obrigo a seguir os gritos que alcançam meus ouvidos, me chamando para fora dos muros de pedra do cemitério.
Abelhas beijam meu rosto, o zumbido incessante fluindo sob minha pele com um formigamento suave.
Sinto apenas raiva ao pisar na rua asfaltada, agora coberta por cinzas e ossos chamuscados. O ar pesa em meus pulmões, fazendo minha garganta arder a cada respiração. Esfrego os olhos, mas nenhuma gota salgada rola pelas bochechas conforme dou os primeiros passos na direção da casa do prefeito.
As cinzas mudam de posição de acordo com meus movimentos, sendo arrastadas ou empurradas para longe com lufadas de ar a cada passo incerto. Ossos adornam as faixadas das lojas, entre os escombros da Trisbelia e os postes que ainda soltam faíscas.
Pequenos incêndios ainda queimam aqui e alí, soltando nuvens de fumaça preta no céu escuro. Preta porque as chamas devoram casas cheias de coisas inflamáveis, e pelo simples fato do fogo ainda estar aceso. O sol está vermelho, emoldurado pela poluição.
As abelhas me abandonam conforme adentro mais na nuvem espessa de morte que entra em meus pulmões, tornando a respiração cada vez mais árdua.
Passo pela floricultura, as paredes de vidro massacradas, o telhado cheio de buracos. As plantas foram pisoteadas e soterradas por camadas de entulho, nenhuma flor sobreviveu ao caos, nem transcendeu pelos escombros como um símbolo de esperança.
Atravesso a rua, tentando não pisar nos corpos ainda inteiros que escaparam do que quer que tenha acontecido com os donos dos ossos espalhados entre as cinzas. Carne queimada, flechas ensanguentadas e cápsulas de balas compõem o cenário de guerra. Não, não foi uma guerra. Guerras são travadas entre dois lados, ambos armados e preparados para o confronto. Sei que o vilarejo tinha suas armas, mas o que aconteceu aqui... Eles sequer tiveram tempo de fugir. Não deram a eles a chance de lutar.
E, mesmo com todas as famílias que desistiram do vilarejo entre a morte de meus pais e o massacre, a quantidade de corpos entre os escombros é assustadora.
Meus pés evitam os cadáveres, mas meus olhos procuram por conhecidos. E há muitos deles.
Então, corro para o único lugar que não tive coragem de ver ainda. O último lugar onde meus pais dividiram um sorriso. Onde os vi pela última vez.
No caminho, percebo que meu povo não caiu sem lutar. Há dezenas de rostos conhecidos nas ruas, mas alguns eu sei que não eram do vilarejo. E, no fundo do meu coração, uma faísca de orgulho se acende, tão fraca que mal ilumina os cantos sombrios.
A casa do prefeito se desfez até o chão. Minha casa. Não existe serpente alguma na porta, nem alameda, muito menos um pomar de maçãs. Nada sobreviveu ao fogo que devorou a casa pela última vez.
Não sei como ela ficou depois que a reconstruíram, mas não restou nada das paredes que foram reerguidas, e agora permanecem derrubadas entre cinzas e tijolos quebrados. Um pequeno incêndio ainda se alimenta das rosas do jardim, destruindo o emaranhado de espinhos negros.
Desta vez, uma sombra precede a chegada das asas flamejantes, que me envolvem com suas penas queimadas e todo o calor que emana das chamas cheias de vida.
E quando o fogo finalmente me machuca, eu acordo.
Meu próprio reflexo me assusta conforme a sala espelhada se ergue ao meu redor. Mãos bronzeadas apertam meus braços, e mal consigo respirar ao encarar as chamas que queimam nos olhos arregalados. Vikare Aurum. O Grão-Erio.
— Você está bem — murmura, e a voz grave reverbera em meu sangue. — Foi só um pesadelo. Você está bem.
O Grão-Erio se afasta ao perceber as mãos apertadas ao redor de meus pulsos, mas apenas alguns centímetros, e a proximidade me incomoda, secando minha boca.
Só então percebo que não é um sonho, muito menos uma alucinação. Sacudo minhas pernas como uma criança brincando na neve, e sequer penso antes de enfiar as mãos por baixo da blusa larga e sentir minhas costelas com os dedos gélidos. Meu braço está inteiro, perfeitamente curado. Sou a mesma pessoa que entrou na arena com os ossos intactos, porém... melhor.
Não tocaram na cicatriz em minha perna. Ótimo. Eu esfolaria quem quer que houvesse tirado a marca de meu corpo. A pele continua igual, mas infinitamente mais macia. Até mesmo meu cabelo parece mais sedoso e moldável.
Vikare me encara com uma curiosidade indiscreta enquanto me sento na maca, observando meu reflexo vívido nas paredes espelhadas. Uma chama dança nos olhos atentos.
Eu costumava ter dezenas de espelhos pelo meu quarto no vilarejo. Pedaços de vidro espelhado espalhados pelas paredes, objetos que refletiam a imagem que eu tanto gostava. Uma vez, quando Hollis foi até meu quarto porque eu estava doente demais para descer até a mesa do jantar, ela se assustou ao abrir a porta e encarar os inúmeros espelhos. Depois daquele dia, ela me apelidou carinhosamente de Narcisa Pintada. Nunca gostei da comparação com o mito melancólico, mas isso não a impediu de me chamar assim por meses.
Hoje, porém, meu reflexo me assusta. Não consigo mais encarar meu próprio rosto sem enxergar o que não está alí. Demorei algumas semanas para perceber isso, mas é insuportável, cruel. Sempre que me vejo em um espelho, evito meus olhos, me proíbo de olhar acima do pescoço. Porque quando o faço, tudo o que encontro é um rosto estranho. Olhos que são de qualquer um, menos meus.
— Senhorita — ele começa — Fórzia Mártire Zölk von Lunchióre. — O Grão-Erio me olha de cima a baixo. — Sua participação, digamos... surpresa, causou um alvoroço e tanto na noite do espetáculo.
Ele descansa as mãos nos bolsos da calça prateada, esperando por um pedido de desculpas ou uma justificativa.
Mas não consigo formar palavras. Minha boca tem um gosto amargo, e meus sentidos ainda estão entupidos de magia – pois claramente um médico comum não conseguiria me reconstruir, não assim. O simples fato de que não morri naquela arena ainda atordoa meus pensamentos. Clément não ganhou. Ao menos por enquanto, ele ainda não ganhou.
— O efeito dos sedativos vai te deixar sonolenta por alguns minutos. Mas vai passar. — O Grão-Erio dá um passo cauteloso na minha direção. — Nossos curandeiros fizeram um belo trabalho, duvidei por alguns instantes que você sobreviveria. — Outro passo mais perto. — Parece que a senhorita não encara a morte com poucas garras.
— Morrer não é uma opção muito agradável — cuspo as palavras, a língua dormente não colabora com minha voz.
Vikare dá um último passo, preenchendo a distância entre nós. Desvio dos dedos curiosos que percorrem meu braço, mas ele apenas afaga meu cabelo como resposta. Sinto raiva do toque, e tenho a sensação de que ele sabe disso, pelas chamas que dançam nos olhos aterrorizantes.
— Já vi homens com anos de experiência, serem massacrados na arena por pesadelos muito menos cruéis. — Ele estala a língua. — Vai me dizer como conseguiu ser esmagada por um Myfilin e sair ilesa, ou vou precisar implorar?
Me afasto alguns centímetros, quase caindo da maca.
— Se sua definição de sair ilesa é ter quase todos os ossos quebrados... — ironizo, as mãos em punhos ao lado do corpo. — Então, talvez devesse testar a sua sorte. Não morri, e já está bom demais para mim.
— Cuidado — ronrona o Grão-Erio, segurando meu queixo com os dedos compridos — com a língua. Sinto que devo lembrá-la de que não está mais em Rosetrum.
— Está me ameaçando? — Me levanto, mas o fato de que em pé sou ainda mais baixa que ele, prejudica minha tentativa de parecer intimidadora.
Vikare percebe, e ri da minha cara. Mas não relaxo um músculo no rosto carrancudo.
— Encare como um mero lembrete. — O som da lingua estalando no céu da boca ecoa pela sala espelhada. — Quero lhe fazer uma proposta.
— Não estou interessada — respondo, apenas.
Vikare desce o olhar até minhas roupas largas – um conjunto branco de linho, que mais parece uma túnica assimétrica. E não me encolho diante da audácia, alimentando a raiva e o desconforto que crescem dentro do meu peito.
Não sei quem trocou minhas roupas e cuidou de mim durante o tempo que passei vagando entre os fantasmas do vilarejo, mas o simples pensamento de que ele possa ter tido uma participação, me faz pressionar as unhas na palma de minha mão.
— Como pode ter tanta certeza?
— Não estou interessada — repito, o queixo erguido.
O Grão-Erio recua um passo, girando na ponta dos pés.
— Fui informado sobre a sua situação em Rosetrum. Algumas pessoas te tratam como algo especial por ter cruzado a fronteira — ele provoca. — Acho isso um desperdício de palavras. Mas, quem sou eu para questionar os pensamentos alheios? — A ironia na voz faz meu estômago dar cambalhotas dentro de mim. — Todavia, devo admitir que sua determinação é... notável. Não tenho idéia de quais são os seus planos futuros neste mundo, mas caso decida permanecer em meu território, creio que meus guerreiros adorariam uma novata para atormentar na Casa dos Ossos.
Não tinha parado para pensar no assunto até agora. Voltar para perto de minha família significa voltar para perto de Caelestis, e apesar da vontade que me rasga por dentro, a necessidade de estar perto deles, a raiva... voltar agora não é uma opção.
Mas isso não quer dizer que aceito a proposta. Estou cheia delas nos últimos dias. Mavka quer que eu me torne uma das aprendizes dela, e ainda não dei uma resposta definitiva – mesmo sabendo que provavelmente irei recusar a oferta. Afinal, de que me adiantaria aprender a me defender com magia, se em poucos meses estarei morta? Não tenho como impedir Clément de me destruir de dentro para fora, e esperar pela ressurreição da irmã de Mavka é quase impossível. Quando ela voltar dos mortos, eu já estarei entre eles.
E lutar na arena também não é uma opção viável.
— Agradeço pela oferta. — Ergo o queixo um pouco mais, irredutível. — Mas não estou interessada em encontrar outra besta tão cedo. Aliás, o que o senhor está fazendo aqui?
Não tenho medo de questionar o Grão-Erio. Ele pode ser poderoso e ter essas chamas nos olhos, mas não é um soberano para mim. Não moro aqui, não devo nada a ele.
— Queria fazer a proposta eu mesmo. — Vikare dá de ombros, estalando a língua. — Mas vejo que está decidida até demais quanto à arena. Pensei que fosse se interessar por uma distração sangrenta algumas vezes por mês...
— Não, obrigada — cuspo as palavras, desta vez por conta própria, sem precisar do efeito anestésico para parecer rude.
Consigo ver as mãos atadas às costas conforme Vikare recua até a parede espelhada, o reflexo denunciando a raiva com a qual os dedos compridos se apertam. Um músculo se contrai em seu maxilar.
— Tenha um bom dia, senhorita Lunchióre — diz, simplesmente, e sai por uma porta escondida no espelho.
Fierce e Icca entram pela mesma porta, assim que o Grão-Erio desaparece atrás do próprio reflexo. Fierce me dá um tapa forte no ombro, mas envolve meu corpo em um abraço antes que eu tenha a chance de revidar, me levantando e esmagando conforme despeja uma lista de motivos pelos quais eu deveria estar morta agora, e outra com os motivos pelos quais eu não devo fazer algo do tipo novamente.
Mas Icca apenas esfrega as têmporas enquanto explico como fui parar na arena, contando sobre quando saí para tomar um ar e acabei me perdendo no subterrâneo, encontrando os guerreiros por pura consequência de um corredor confuso. Deixo Clément de fora da história, escondido nos furos de meu conto atrapalhado, de onde ele não vai sair tão cedo.
Fierce escuta atento, mas a amiga de Mavka não parece engolir todas as minhas palavras, e só me embolo ao tentar deixar a história mais crível, dando desculpas esfarrapadas para tapar os abismos entre os acontecimentos.
— Aqueles dois já nos contaram o que aconteceu — diz Icca, finalmente. — Eles vieram te ver ontem, mas ainda estava inconsciente. A mais nova mandou dizer que não vai esquecer o que você fez por ela.
— Troy?
— Algo do tipo.
— Eu devia tê-la deixado lutar naquela arena. Não teria quase morrido se o tivesse feito.
Icca apenas dá de ombros, afofando o cabelo.
— De fato.
— Acho que minhas costelas não foram quebradas ontem, não é? — indago, encarando os dois.
— Não, não foram — responde Fierce. — A luta aconteceu dois dias atrás.
Dois dias... Passei dois dias trancafiada na minha mente, desacordada.
— Notícias? — Minha voz é um eco vazio.
Ambos sabem do que estou falando. De quem estou falando.
Dois dias se passaram desde o Myfilin, Mavka precisa ter enviado uma carta ou qualquer tipo de informação sobre o estado de Caelestis, mas principalmente sobre nossos amigos.
O olhar trocado entre Fierce e Icca é o suficiente para fazer meu peito se amassar como uma bolinha de papel jogada fora.
— Mavka enviou uma cauda — desembucha Icca. — É um tipo de mensagem envolta na aura de alguém, como a cauda de um cometa. Ela fez isso com vocês quando os enviou para cá, com as informações básicas grudadas nos dois, mas eu não estava muito... sóbria para perceber — ela ronrona com um sorriso. — Enfim, ela deixou um espaço na cauda de vocês para enviar novas mensagens, e foi exatamente o que ela fez. Mavka empurrou uma mensagem diretamente para a cauda de Pierre, com notícias de Rosetrum.
— Notícias nada animadoras — acrescenta Fierce. — E pela milésima vez — diz, olhando para Icca —, meu nome não é Pierre. É Fierce.
— O que diz na cauda, ou seja lá o que isso for?
— Ela não entrou em detalhes — explica Icca —, mas a recém-chegada indesejada acordou enquanto você estava inconsciente, e aparentemente algo importante saiu da boca dela. Só não sabemos o quê.
— Estávamos te esperando acordar, para decidirmos juntos — murmura Fierce.
— O que exatamente precisamos decidir?
— Nossa data de retorno.
O sangue em minhas veias se transforma em gelo.
— Como?
— Vocês não são obrigados a nada — lembra Icca. — Podem ficar em minha casa por quanto tempo for necessário.
Fierce aperta os dedos na palma da outra mão, e por um momento me pergunto se ele pode atravessar a carne com as unhas.
— Tem mais — avisa, mordendo o lábio. — O nome de Daphna foi citado na mensagem.
Uma faísca queima em meu peito, abrindo a ferida cicatrizada. Não tenho muitas esperanças sobre o nome de Daphna – sei que ela não vai reaparecer das cinzas, eu mesma a vi morrer naquele penhasco. Contudo, não posso negar a curiosidade. Por que Mavka citou o nome dela como uma notícia?
— O que ela disse? — Minha voz é um sussurro rouco.
— Um emaranhado de palavras-chave, para ser honesta. — Icca alisa a blusa de renda que veste por cima do vestido lilás. — Mas o nome de Daphna estava envolto em um trecho mais... forte de energia.
Fierce encara o chão, e me limito a engolir em seco, olhando para a mulher com milhares de perguntas saltando das órbitas. Ela apenas revira os olhos ao perceber minha confusão.
— Imagine uma lista de palavras. Agora imagine o nome de Daphna no meio delas, só que destacado com círculos coloridos e purpurina.
O olhar irônico dela é o bastante para que eu não ouse fazer perguntas.
— Não sei se consigo. Não estou preparada...
Fierce levanta o olhar do chão depois de muito tempo focado nos próprios pés.
— Acha que eu estou? — ele indaga com uma lâmina na ponta da língua. — Mas, querendo ou não, nós os abandonamos naquele lugar. Eles também tinham o direito de vir para cá, e mesmo assim viemos sozinhos. Não consigo imaginar a sensação de ficar preso no mesmo lugar que aquela cobra.
Não havia pensado assim até agora. Não tenho dúvidas quanto ao sentimento compartilhado de ódio, mas não tenho tanta certeza em relação à nossa partida. Eles provavelmente tentaram vir, mas com Mavka naquela situação... Entendo muito pouco sobre os custos da magia, todavia, posso imaginar o peso de abrir outro portal para o continente, e como sei que Mavka se importa demais com cada um naquele lugar, o desgaste deve ser inevitável. Contudo, ainda me deixo sonhar que ela os tirou de lá. Talvez não tenha tido espaço ou força o suficiente para adicionar a informação em nossas caudas, mas ela não pode tê-los prendido naquele lugar.
— Há quanto tempo receberam a mensagem?
Icca olha para o próprio reflexo na parede atrás de mim.
— Só percebi a cauda quando você quase morreu na arena. Um fiozinho celeste ficou brilhando em seu cabelo, sendo esticado conforme o Myfilin te arrastava.
A luta aconteceu há dois dias. Eles esperaram durante dois dias com a mensagem na cabeça.
— Não mandou uma cauda para ela, pedindo explicações mais detalhadas?
Icca ri de minha pergunta.
— Sua noção de magia é terrível, querida — responde, simplesmente.
Olho para Fierce, agora brincando com uma fita preta grudada à lateral do casaco. Ele enrola o tecido entre os dedos, enroscando e desfazendo o próprio trabalho com as mãos largas.
— Você vai voltar?
Ele solta a distração, apertando as mãos na lateral do corpo.
— Sim — diz, apenas. — Não acho justo ficarmos aqui enquanto eles encaram o inferno todos os dias.
Não dou uma resposta. Não acredito que exista uma capaz de me deixar feliz por abrir a boca, ou animá-los com o simples som das palavras.
— Tecnicamente — começa Icca —, você ainda está em um período de adaptação. Mas não me parece traumatizada ao ponto de esfaquear alguém na esquina.
— O que isso quer dizer? — questiona Fierce.
— Se você decidir que não quer voltar — continua, os olhos de avelã encarando os meus —, podemos pular a fase de adaptação e te encaixar aqui. Na cidade.
A imagem de Vikare volta como uma pontada.
— Quanto tempo ainda tenho para tomar uma decisão?
— Quanto tempo desejar. Apenas, tente não abusar do relógio. — Icca olha para o teto espelhado. — Pierce parte amanhã de manhã, se você conseguir o veredito final até lá, talvez possa pegar uma carona com ele.
O rapaz revira os olhos.
— É Fierce!
— Ah, pare de ser tão dramático. Não é como se eu estivesse te chamando de porco. Acertar o seu nome é uma mera vírgula na minha lista de problemas, garoto.
— Se eu quiser ficar, o que vai acontecer?
— Pode morar comigo pelo tempo que precisar. Mas provavelmente vai ter sua própria casa em breve, assim como um emprego.
— Está mesmo pensando em nos abandonar? — A voz de Fierce corta o ar. — E quanto a Edmond? Nem ele pode te convencer?
As palavras despertam a raiva que arranha sob minha pele, me rasgando por completo. Minha decisão não é sobre minha família, mas sobre Caelestis.
— Não tente me ensinar sobre abandono, Fierce. Pelo que eu sei, você foi o primeiro a deixar Edmond sozinho com aquela coisa, anos atrás.
Ele joga as mãos para o alto, um sorriso repleto de ironia recheia os lábios.
— Quer mesmo falar sobre isso? Muito bem, Cisna. Quem deixou um punhado de pessoas para trás, incluindo o melhor amigo, e fugiu para a floresta, causando uma confusão que ajudou a alavancar um massacre? Quem? — agora ele está gritando.
Cada palavra me atinge de uma forma diferente, mas com o mesmo impacto doloroso que faz minha alma sangrar.
— Não comecem! — Icca esfrega o próprio rosto, mas, apesar dos dedos que esticam a pele com ansiedade, a maquiagem continua intacta nas pálpebras escuras.
— Não sei o que aconteceu com a sua família, mas a minha morreu queimada, e por mais que eu tente mentir para mim mesma, sei que poderia ter evitado — rosno, mostrando os dentes como facas sedentas. — Mas não o fiz, e vou precisar viver com essa memória pelo resto da vida. Eu não tinha nada em minha cabeça quando atravessei a fronteira — acrescento. — Perdi meus pais, minha casa, minha vida naquele incêndio. Não sabia se a Ouroboros me caçaria ou não depois que notasse que sobrevivi ao fogo. Então sim, eu fugi porque não estava pensando direito, mas também porque estava apavorada com a possibilidade de me tornar um alvo.
Fierce fica preso entre um riso de desprezo e um olhar longo demais para o próprio reflexo no teto. Quando me encara finalmente, percebo o que a expressão retorcida e o maxilar contraído significam. Não é apenas escárnio que brilha nos olhos de mel. É raiva. Uma raiva que não tenho idéia de como surgiu ou como foi provocada, mas queima como um pandemônio livre nas órbitas dele.
— Ah, por favor. — Fierce morde o lábio, os olhos marejados seguram as lágrimas. — Não se faça de coitadinha, Fórzia. Acredita mesmo que é a única que saiu incompleta daquele mundo? Não percebe o quanto toda aquela confusão os fez perder? Macaire e Pluvia foram caçados pelos próprios pais! Tem noção do que isso significa? Veuria e Kiran perderam o pai e o marido. Daphna morreu! — Ele faz uma pausa, apertando os olhos. — Falena ficou semanas sem dormir, sabia disso? Ela ia até o meu quarto toda noite, e ficávamos nos encarando por horas, sem dizer uma palavra. Até mesmo Eden e a irmã tiveram uma parcela de sofrimento, enquanto pensavam que você estava morta. Tem alguma noção do significado que aquela fronteira tinha? Do que você ajudou a causar quando resolveu bancar a criança desaparecida?
Fierce para por um momento, revisando as palavras antes de abrir a boca, como que pesando o impacto que elas terão sobre mim.
— Caelestis pode ter puxado o gatilho, mas você colocou a bala no cano do revólver.
— Chega!
Desta vez, o grito de Icca parece estabelecer uma calma falsa no ambiente, uma nuvem fria de paz forjada que não funciona contra nosso pequeno incêndio.
— Eu sei que tive uma importância indesejada no curso das coisas. Já entendi que Caelestis me usou para causar uma guerra entre os dois lados, e acredite ou não, eu faria qualquer coisa para voltar no tempo e queimar naquele incêndio. — Pisco, mas as lágrimas secam em meus olhos, contidas pelo vazio na minha voz quando finalmente digo: — Eu pagaria pela chance de voltar, e arder no inferno pela eternidade. Mas não tenho como mudar as coisas, então me esforço para viver com o que aconteceu, mesmo quando acordo gritando de madrugada e ninguém está lá por mim. Pois todos naquele lugar possuem seus próprios demônios particulares.
— Ah, é claro que você tenta, não é? Como quando desaparece antes mesmo do sol nascer, e se enterra em algum canto da floresta como se seus problemas fossem desaparecer se ignorados um pouco mais! — Desta vez, Fierce me faz recuar conforme anda na minha direção, berrando e batendo a mão na maca com tanta força que o som reverbera pelos meus ossos.
— Você não tem a mínima idéia do que está falando.
Se ele soubesse sobre Clément, sobre a lacuna que carrego na alma...
Todos perdemos muito no mundo do qual fugimos, ele não está errado sobre isso. O que me destrói por dentro é admitir que sou tão culpada quanto Caelestis. Eu também matei, não tanto quanto ela, nem tão friamente, mas matei, e isso me deixa no mesmo nível dela. No mesmo limbo caótico de culpa e dor.
— Então me diga! Por que você tem se afastado cada vez mais? Por que você some todas as manhãs e nos deixa com receio quando não aparece nos jogos nem nos jantares? Eu te vi, um dia — confessa Fierce. — Não estava conseguindo dormir, então achei que seria uma boa idéia beber alguma coisa forte para afogar o sono de vez. Mas quando cheguei na cozinha, você já estava lá.
Me encolho contra a parede gelada, tentando me lembrar de qualquer coisa, mas a memória não surge em minha cabeça. Porque tecnicamente, ela não existe. Ele não me viu acordada.
— Eu te chamei, mas não obtive uma resposta — continua. — Você estava parada, em pé sobre o galho do carvalho. Consegui te puxar para dentro da casa quando deu um passo na direção do vazio, mas só contei sobre o ocorrido para Pluvia, que acabou me ouvindo gritar. Você não disse uma palavra enquanto te levávamos de volta para o quarto, sequer estava lá.
De repente, os olhares atentos de Pluvia nos últimos dias fazem sentido, se encaixando em minha mente como um quebra-cabeça resolvido.
— Por que não me contou?
Fierce ignora a minha pergunta, e Icca desiste de intervir, se encostando na maca com um olhar interessado na nossa discussão.
— Tenho dormido do lado de fora do seu quarto desde então — diz, baixinho. — Os outros também.
— Vocês... — Tropeço em minha própria língua. — Eles sabem? Todos vocês... Por que não me contaram?
— Não sabíamos como te perguntar. Tivemos medo de que você se irritasse ou algo do tipo. Não sabíamos nem se você mesma tinha conhecimento disso ou se era algo completamente inconsciente. Ainda não sabemos. — O silêncio cobre a sala como uma manta pesada. — Você sabia? — pergunta, finalmente.
O mundo desmorona ao meu redor, restando apenas um palanque de pedra no qual me equilibro. Sinto raiva.
Esse tempo todo, eles sabiam sobre as minhas andanças, os devaneios inconscientes que me levaram a pegar uma faca e acordar no telhado. Me sinto traída, apesar de não ter o direito de fazê-lo. Pensei estar escondendo deles os meus colapsos, mas eles estavam cuidando de mim esse tempo todo, vigiando cada noite de sonambulismo.
Me sinto como um rato que pensou ter contornado a ratoeira, apenas para cair nas garras de um gato.
— Eu desconfiava — minto. — Mas não tinha certeza, até agora.
— A faca — murmura Fierce, e meu sangue congela. — Pluvia estava de plantão, mas acabou caindo no sono. Você a pegou para raspar a tinta mesmo, ou não sabe como ela foi parar em seu quarto?
A palavra parece despertar o interesse de Icca ainda mais.
— Eu não sou louca...
— Por favor.
Dizer a verdade significa ser encarada como uma pessoa mentalmente instável – o que não seria completamente mentira.
— Eu estava acordada quando a busquei na cozinha. Ter esquecido a faca lá foi um erro, mas não teve nenhuma ligação com o sonambulismo.
O silêncio desce pelas nossas gargantas novamente.
— Edmond sabe?
Fierce apenas assente com a cabeça. Minha boca seca.
— Sinto muito — sussurro, simplesmente. — Eu não controlo isso. Nunca quis atrapalhar as noites de sono de vocês. Não quero. Trancarei a porta da próxima vez, não vão mais precisar se preocupar.
— Você pode destrancá-la facilmente enquanto estiver dormindo.
— Posso trancá-la por fora e entrar pela janela.
— E quem tranca a janela?
Não respondo.
— O que aconteceu lá fora... Aquilo deixou marcas. Todos ficamos perturbados. Todos temos demônios pessoais, não precisa ter vergonha dos seus. Nós não temos raiva de você, Fórzia, só estamos tentando ajudar. Deixe-nos ajudar.
— Não tenho vergonha de meus demônios. Muito menos medo deles. — Ergo o queixo. Não vou me permitir cair. — Vocês já possuem os seus, não precisam de outro para lidar. Posso cuidar dos meus sozinha.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
FantasyPLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...