CHAPTER THIRTY, FASTA

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      Seu nome era Ivanka Bellorta

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      Seu nome era Ivanka Bellorta. Ela tinha quinze anos. Duas irmãs mais novas. O pai não conseguiu ver o corpo. A família partiria em alguns dias para Celetrial, ela estava ansiosa para conhecer uma cidade de verdade. Não compareci ao funeral.
      A cerimônia começou algumas horas atrás, mas apenas Kiran teve coragem de sair de casa, para apoiar o pai desolado da garota morta por minhas mãos, e acabou levando Murnia consigo. O resto de nós não colocou os pés para fora desde que o voto foi feito.
      Eu nunca conversei com Ivanka pessoalmente. Já a vi algumas vezes nadando no lago de ninféias e participando dos jogos noturnos, mas sequer sabia seu nome. Depois de tê-la assassinado, aprendi mais coisas sobre ela do que jamais teria aprendido caso ainda estivesse viva. Às vezes penso que cadáveres possuem mais importancia que pessoas acordadas. A vida interrompida sempre é mais lembrada que a vivida.
      Ivanka Bellorta. Acho que já posso adicionar seu nome à lista de vidas que arruinei, logo abaixo de uma coluna extensa de lembranças de guerra.
      Disseram que foi um infeliz acidente. O rastro havia começado a segui-la algumas horas antes das estrelas cadentes. Deduziram que ela estava andando pela floresta quando as esferas de fogo chegaram, caminhando de madrugada. Ela se perdeu na confusão e tentou se esconder no único lugar que conseguiu encontrar, mas acabou ficando presa, disse Niore. Mavka acredita na teoria dele, é por isso que o resto do dia permaneceu nublado. Ela se culpa pelo que pensa ter sido um acidente.
      Ivanka não estava se escondendo dentro do tronco. Talvez estivesse, mas não das estrelas, ela estava se escondendo de Clément. De mim.
      A explicação que deram para o sangue foi ainda mais absurda. Disseram que ela deve ter escorregado e se cortado em uma pedra, só então encontrou o tronco oco perto do parreiral.
      Talvez eu escreva para ela, como escrevi para meus outros fantasmas. Talvez ela se torne minha nova lacuna.
      Estou deitada na cama, a cabeça descansando no peito de Edmond, enquanto ele acaricia meu cabelo com os dedos cálidos. Falena abraça minha cintura, fazendo cócegas em minha coluna com a mão livre. Seu afeto é como neve fresca; fria e afiada, porém suave. Ela não vai me dar mais que isso, é seu jeito de dizer que se importa, mas não vai chorar por algo que não pode ser mudado.
      Pluvia trança o cabelo da nevasca, tão perto da borda da cama que pode cair no chão caso não tenha cuidado. Eden não tira os olhos das mãos finas que mexem no cabelo branco, jogado perto de meus pés, deitado de lado com a cabeça apoiada no braço dobrado. Ele faz cócegas em meu tornozelo, mas está distraído demais observando Pluvia para perceber quando cutuco seu ombro com o pé.
      Macaire está aninhado perto de Veuria e Fierce. Os três são um emaranhado de pernas e cabeças no canto da cama. Enquanto os dois primeiros piscam vagarosamente, lutando contra o sono, Fierce usa as mãos para fazer círculos preguiçosos na cabeça de cada um.
      Pela primeira vez, o silêncio é bem-vindo. Como um amigo distante, nos fazendo companhia, acalmando os corações apertados e as mãos enfaixadas.
      Não estou acostumada com tanto afeto. Não fui criada para receber ou distribuir esse tipo de carinho necessário, esse amontoado de pessoas ao meu redor, dizendo que estão aqui por mim, sem precisar abrir a boca para tal. Sempre tive o apoio de meus pais, seu cuidado protetor. Mas isso é diferente, e apesar de me sentir um pouco sufocada, é bom. É necessário, insubstituível.
      E esse momento não pode ser apagado de uma fotografia. E mesmo que eu tenha o rosto riscado em alguns dias, sei que marquei suas vidas o suficiente para não ser esquecida por completo.
      Ivanka, por outro lado, deve de estar sendo apagada das fotografias neste exato momento. Banida da vida e da memória.
      Vez ou outra alguém abre a boca para dizer algo, mas o silêncio os cala, inquebrável e reconfortante, preenchendo o espaço com tudo o que precisamos: nada.
      — Durma um pouco. — A voz de Edmond é calma, rouca. — Estamos aqui para te vigiar.
      — Vamos cuidar de você — promete Veuria.
      Quero dizer que não preciso de sua proteção, mas eu só estaria mentindo. Em outras circunstâncias, talvez fosse verdade, mas aqui, agora, não posso mais cuidar de mim mesma.
      Resisto por alguns minutos, tentando aproveitar a companhia de cada um deles, a presença. Clément não faz questão de me perturbar, não o vejo desde a casa de Apza. Ele me fez matar alguém, e tentou me matar diversas vezes antes disso. A arena foi a pior delas. O Myfilin... Me pergunto onde estão Ninka e Kior agora. Provavelmente lutando, como são treinados para fazer. Ou dormindo. Ou se divertindo nas ruas da cidade acobreada.
      Possuo muitos fantasmas. São nomes demais, em uma lista grande demais, com linhas demais. Contudo, o único que me assombra é o pior deles.
      Caelestis matou mais pessoas do que consigo contar, causou dor e traiu o próprio povo por uma guerra que não vai acabar tão cedo. E mesmo assim, seus fantasmas não parecem incomodá-la tanto quanto os meses de tortura. É claro que ser queimada viva e ser assombrada constantemente são coisas completamente diferentes, que não podem ser comparadas, mas uma parte de mim fica incomodada com o simples fato de que ela não morreu.
      Eu queria que ela tivesse morrido quando Daphna ascendeu aquele isqueiro. Odeio essa parte de minha alma, que grita por sangue e retaliação. Mas não existe perdão para o que ela fez. Ao menos não dentro de mim.
      Afasto os pensamentos corrosivos, inundando a minha cabeça com lembranças de dias melhores. Meu pai podando mudas na estufa. Minha mãe lendo na poltrona da sala. Eden colhendo morangos. Murnia correndo pelo gramado da igreja, caçando ovos de páscoa entre os arbustos. Daphna me trazendo comida, na casa-jardim de Edmond.
      Mas a culpa derruba a distração como se as lembranças fossem uma parede fácil de ser rompida. E me pego pensando em Ivanka. Nunca tive a chance de conversar com ela, mas a garota era jovem, e tinha mais sonhos do que jamais poderei ter. Eu mal sabia seu nome até matá-la. Mas isso não é o pior. O que me assusta, me deixa genuinamente apavorada, é que eu não me lembro de nada.
      Então, sinto como se alguém tivesse acabado de abrir uma caixa cheia de ervas. O cheiro de alecrim e maçãs e baunilha e grama recém-cortada envolve meu rosto com mãos feéricas, acariciando a pele como uma brisa suave. É calmo. Quase anestésico.
      Casa.
      Uma casa antiga, que já não existe mais, queimada até o chão por uma serpente faminta. Mas a essência ainda é a mesma, sem fumaça ou cinzas, apenas o frescor nostálgico de algo que perdi há muito tempo.
      Queria ter uma peça de roupa, um laço de cabelo, um livro empoeirado, qualquer coisa que me ligasse àquela casa, que cheirasse à ela. Eu carregava essa essência doce de poesia e pães frescos, mas quando rastejei pelo santuário, suja e com o vestido chamuscado, a fumaça que cobriu meu corpo arrancou isso de mim. Depois de fugir, comecei a viver escondida na casa-jardim de Edmond, e o que o fogo me tirou, as flores e o sangue substituíram.
      É assim desde que então. O cheiro daquela casa nunca mais retornou – até agora. Com o passar do tempo, o alecrim, as maçãs, a baunilha e a grama aparada desapareceram de minha pele e de minhas roupas. Sumiram. Morreram. Em seu lugar, o que ficou impregnado não me agrada. A essência metálica do sangue, pedras molhadas e aconito recém-colhido. Se eu me concentrar bastante, consigo sentir o odor de rosas murchas contornando o sangue amargo.
      Nenhum dos outros é assim. Eles cheiram à flores silvestres e primavera úmida. Ao menos a maioria.
      Até mesmo meu relicário carregava essa marca de casa. Se eu ainda estivesse com ele, ou com o vestido que estava usando quando atravessei a fronteira... Talvez um pouco tivesse sobrevivido no tecido, e eu poderia enterrar o rosto no cheiro da vida que deixei para trás.
      Mas, com ou sem um suvenir da casa do prefeito, ainda sinto. Fecho os olhos, concentrada apenas na essência nostálgica. Sei que não são meus amigos, muito menos eu.
      É quase um presente do Desconhecido, enviado de algum lugar entre as cordas vermelhas. E eu aceito, me entregando ao sono pacífico.















Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora