CHAPTER SEVENTEEN, VOLERY

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      Um abatedouro

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      Um abatedouro. Clément me trouxe para um abatedouro.
      — Você a trouxe para lutar? — rosna o rapaz loiro.
      — Você mesmo disse que três pessoas eram necessárias para o espetáculo, docinho.
      Vasculho a platéia com os olhos, todos gritando em uma euforia genuína, assobiando e batendo palmas para as três figuras no meio da arena. Para nós.
      As luzes floridas no teto de vidro e a mureta que protege o público dificultam minha visão, me impedindo de encontrar Fierce ou Icca na multidão, mas sei que eles estão tentando me tirar daqui, sei que estão correndo contra o tempo para evitar o desastre. Ou, pelo menos, é o que eu espero.
      O chão sob meus pés treme, e meus joelhos falham diante do terremoto que me força a assumir uma posição defensiva.
      A arena mudou enquanto eu discutia no subsolo. No lugar dos metros de pedra lisa e do pequeno palco no qual o Grão-Erio ficou em pé minutos atrás, há grama espessa e árvores cujas copas não ultrapassam os limites da plateia, contidas abaixo das muretas por qualquer tipo de magia que tenham imposto na arena que agora parece uma floresta.
      Mas não são as árvores ou os cogumelos vermelhos que me preocupam. É o silêncio. A platéia parou de sussurrar em meus ouvidos, nem mesmo um aplauso pode ser ouvido, no silêncio mortal que só pode significar a chegada de nosso destino.
      — Ela não sabe lutar! — vocifera o guerreiro.
      — Ela fez Troy desistir, é justo que lute no lugar dela.
      — Eu tenho um nome — rosno entredentes. — É Fórzia.
      Posso jurar ter visto um lampejo de raiva nos olhos da magricela insanamente determinada.
      — Ah, ótimo. Belíssimo. Sua fama não vai te tirar daqui, princesinha fugitiva. Espero que saiba como lutar com as mãos, embora eu tenha ouvido sobre a sua tendência a... correr. — Como uma cobra, ela saboreia o próprio veneno na ponta da língua que faz questão de morder em provocação.
      Mas o garoto dos olhos azuis me joga uma lâmina transparente, e agarro o cabo metálico que machuca meus dedos de tão detalhado.
      — Kior — a guerreira repreende.
      — Você a arrastou para a arena. — Ele aponta para mim com uma espada que irradia luz pálida. — E agora vamos precisar cuidar dela. Então não tente bancar a inconsequente, porque, se ela morrer, a culpa será sua, docinho.
      Ela apenas revira os olhos.
      — Sei lutar. — Nem mesmo eu sei se estou mentindo ou meramente dizendo uma meia verdade. — Não como vocês, mas consigo me defender.
      De alguém com o meu tamanho, talvez. Uma aberração escolhida a dedo para um massacre, porém...
      — Você não tem idéia do que vai acontecer aqui hoje, não é? — O sorriso da magricela faz meu estômago se revirar.
      — Estão tentando me tirar daqui.
      — Ah, querida, ninguém pode interferir enquanto o show acontece. Ou você sobrevive até o final, ou os seus ossos saem da arena em um saco preto. Isso, se sobrar algum osso quando o pesadelo terminar com você.
      Nem um mundo de refugiados e sobreviventes é feito apenas de paz e segurança.
      Então o rugido quebra meu corpo com um raio de terror, ecoando por entre as árvores, trincando meus ossos e me paralisando em pé.
      — Quantos? — É tudo o que consigo dizer.
      — Três — responde Kior. — Um pesadelo para cada um de nós.
      O rugido morre entre as plantas da arena, e o silêncio preenche minhas veias como gelo.
      Mas a grama... está viva.
      — Nenhum de nós tem o rastro.
      A magricela semicerra os olhos para o chão sob meus pés, como que inconformada com a vegetação que transborda vida no lugar da morte.
      — Não tenho certeza se as leis do Desconhecido funcionam na arena.
      — Por quê? — arquejo.
      — É só um cenário. Construído.
      — São árvores e...
      — Não são reais — Kior explica. — É magia temporária, isso tudo vai desaparecer quando o show acabar. Não faria sentido o rastro funcionar em algo assim. Até hoje, nunca funcionou.
      E antes que eu possa raciocinar direito e planejar uma fuga, o cervo emerge de trás das árvores, cheirando o ar com as narinas escuras e dando pequenos passos na nossa direção, passos calculados e precavidos que me fazem recuar. Não jogariam um cervo inofensivo em uma arena de aberrações.
      A magricela e o parceiro assumem posições defensivas, com as lâminas prontas para cortar e dilacerar e matar.
      Mas o cervo para a metros de distância, os olhos inocentes não me enganam, observando cada movimento como um predador analisando a presa encurralada.
      Para a minha surpresa, o animal abre a bocarra em um rugido gutural, exibindo as inúmeras fileiras irregulares de dentes afiados como facas, e antes que ele tenha a chance de atacar primeiro, recuo até um carvalho e não penso duas vezes ao escalar a árvore o mais alto que consigo, chutando as botas de salto para longe sem soltar a lâmina transparente que pode salvar minha vida.
      A magricela ataca primeiro, rasgando a lateral do corpo do pesadelo com uma faca de duas pontas, e Kior não hesita ao cortar uma das pernas do cervo cheio de dentes afiados.
      A aberração solta um rugido de dor que faz meu coração dar um salto, mas não paro até alcançar um lugar seguro na árvore.
      A besta sangra no chão da arena, tentando morder o tornozelo metálico da magricela egocêntrica, e a garota golpeia os olhos do cervo com a faca, arrancando um deles e erguendo-o como um troféu entre os dedos ensanguentados.
      Talvez os pesadelos sejam o menor de meus problemas nesta arena.
      A platéia aplaude e grita com o pequeno ato de vitória, mas a alegria se dissipa quando as árvores do outro lado da pequena floresta começam a tremer com um vento inexistente.
      — Covarde — murmura a desconhecida para mim, soltando o olho e esmagando-o sob o pé direito.
      Não retruco, sequer abro a boca ao apertar o cabo da faca comprida, observando em silêncio as árvores se curvando do outro lado da arena, sendo inclinadas, quebradas pelos movimentos de alguma aberração que rezo para não precisar ver.
      Kior não espera para dar de cara com o pesadelo, correndo instintivamente até a parceira de luta e a arrastando para perto do carvalho, praticamente jogando a garota em um arbusto para que ela se esconda.
      — O que está fazendo? — ela sussurra.
      — Às vezes precisamos saber quando lutar, e quando recuar.
      Ela abre a boca para responder, mas as palavras morrem no fundo de sua garganta conforme Kior corre novamente até o cadáver do cervo letal, arrancando trechos de pele cheios de sangue com as lâminas mortalmente afiadas.
      Só então percebo o que ele está fazendo.
      Kior esfrega os pedaços do cervo pela armadura, manchando até mesmo os cabelos loiros com o sangue carmesim que vai coagulando aos poucos. É uma boa estratégia, o cheiro de humanos – com ou sem magia –, sem dúvida é como um farol para criaturas como essa.
      Mas antes que o guerreiro possa correr para perto de nós, a criatura emerge das árvores com um grunhido pausado que ecoa pela arena.
      E, vendo a aberração, finalmente me dou conta de que ninguém vai interromper o show para me tirar do abatedouro. Minha sobrevivência só depende de mim mesma. Minha vida está em minhas mãos, e não tenho idéia de como mantê-la.
      Mesmo através das peças de metal, consigo ver os ombros de Kior estremecendo com a visão mortífera.
      O tigre albino possui longas galhadas vermelhas que acabam em ramos de flores sangrentas, os olhos felinos clamam por tripas dilaceradas, focados no corpo ensanguentado de Kior, que recua com as duas mãos ocupadas por espadas luminosas.
      As galhadas se enroscam no alto das árvores, arrancando folhas e gravetos de seus lugares conforme o tigre se move. Uma única pata da criatura é capaz de me esmagar como uma formiga. Contudo, ignorando as presas afiadas na boca arreganhada e o perigo que transborda de cada pelo, é a coisa mais linda que já vi em toda a minha vida. Belo como um sonho, letal como um pesadelo.
      Me pergunto se a garota que cresceu no vilarejo e costumava ter uma vida pacata, pensaria a mesma coisa caso encontrasse um desses no jardim de casa.
      Talvez seja o cheiro do sangue o camuflando, ou apenas a falta de interesse por parte do tigre, mas Kior é simplesmente ignorado pela aberração. A magricela e eu, por outro lado, não temos tanta sorte.
      O tigre se lança em uma corrida na nossa direção, as patas ferozes praticamente flutuando, esmagando plantas e arbustos inteiros com poucos movimentos.
      O desespero soca meu estômago com mãos frias, e começo a descer pelos galhos como uma velocidade assustadora, me jogando de um lado para o outro no carvalho. O que me salva, porém, é o escorregão que me faz despencar. Atinjo o emaranhado de arbustos no momento em que o tigre com chifres atinge a árvore, dilacerando a madeira em grandes lascas que por pouco não me atingem.
      Eu tento me desvencilhar das patas albinas com o dobro do meu tamanho, cambaleando e me arrastando até Kior e a garota magricela que agora se escondem em uma abertura na terra, sob um tronco com cogumelos e insetos que com certeza fora colocado na arena como uma escapatória eficaz.
      A magricela se contorce de dor no espaço apertado e sujo, mas Kior a segura com força, mantendo a boca dela fechada com um esforço difícil. Sua armadura tem uma peça faltando, o braço ossudo vulnerável, sangrando com a lasca de madeira do tamanho de uma faca que o atravessa como um espeto de churrasco. Ela enterra os dedos na terra e na sujeira conforme mantém os gritos enjaulados na própria garganta.
      Silêncio e discrição são as nossas melhores armas contra a besta albina.
      Kior leva uma das mãos até o cinto de armas e o desprende da cintura, sem se importar com as diversas lâminas mortíferas que caem na toca sob o tronco cheio de cogumelos. Ele prende uma das pontas do cinto de couro entre os dentes, mordendo com força o material conforme amarra a parte de cima do braço da parceira de batalha.
      — Sei que torniquetes são sempre a última opção — sussurra ele, para ninguém em especial. — Mas não posso arrancar o pedaço de madeira, e se ele permanecer aí, vai causar uma infecção em pouco tempo...
      O rugido da besta o cala.
      A garota esguia enfia os dedos na terra com mais força, arrancando punhados de sujeira e insetos, enquanto pressiona as costas contra o peito de Kior com tanta determinação que me faz desviar o olhar por um momento.
      Algo no modo como os dois falam e agem me faz pensar no dia em que Edmond pediu que eu pintasse pinheiros na parede de seu quarto. Me pergunto se ele olha para a pintura terminada e sente vontade de raspá-la da parede, ou de entrar na imagem da floresta de pinheiros e se perder no que eu trabalhei durante as tardes dos últimos dias. Provavelmente as duas coisas.
      Outro rugido, mais longe agora.
      Torniquetes são sempre a última opção, a frase ecoa pela minha cabeça com um humor irônico, conforme me lembro do pedaço de roupa rasgada que usei para amarrar em minha perna no dia em que caí no santuário que me mostrou um novo mundo. Um mundo de poções e estátuas fúnebres sobre túmulos poéticos. De banquetes envenenados e crueldade calculada. Um mundo do qual nem todos conseguimos escapar com vida.
      — Vai ficar com uma cicatriz feia. — A tentativa de Kior de amenizar a tensão não surte efeito.
      A ferida sangra ao redor da lasca fincada na pele pálida, o tecido da roupa escura por debaixo da armadura fora rasgado pelo pedaço de madeira, deixando alguns fios desfiados que despontam do braço imóvel.
      — Precisamos de um plano — digo, finalmente.
      — Não temos mais um. — Kior segura o braço dela com mais força. — Se quiser formular um novo agora, estou ouvindo.
      Encaro as roupas laranjadas em meu corpo, um verdadeiro por do sol na terra maldita. O casaco peludo está todo esfolado e cheio de torrões de lama seca. Minhas botas provavelmente não passam de cinzas agora. Depois do que a aberração fez com o carvalho, duvido que algo do par de sapatos tenha restado sob os pedaços caóticos da árvore dilacerada pelo impacto e pelas garras letais.
      — Por que diabo vocês sequer cogitaram participar deste inferno?
      — Honra? — Kior levanta uma das sobrancelhas.
      — Vocês têm uma visão bem diferente de honra. — Puxo meus pés para perto do corpo. — Isso é suicídio.
      — Nós somos os caçadores aqui, não as presas.
      — Diga isso para o tigre com chifres que quase nos matou.
      Espio a besta que brinca com a árvore caída, arranhando o tronco dilacerado como um gato afiando as unhas.
      Mas o terceiro pesadelo ambulante solto na arena começa a se manifestar, soltando grunhidos guturais e um som rouco que me lembra um urso. Sei que é outro monstro pelo simples grito esganiçado que chama por nós, escondido entre as árvores com a esperteza sutil, imitando nossas vozes com um esforço notável.
      — Ninka... — o sussurro profundo ecoa pela arena, mais letal que o tigre ou o cervo, mais letal que a própria morte. — Kior...
      É um som perturbador, como se mil vozes se fundissem na tentativa de criar uma.
      Pela brecha entre o tronco e a terra, consigo ver a besta albina torcer o pescoço para o lado, atenta ao perigo. Nenhuma dessas criaturas vai estar viva no final da noite, esse é o objetivo do espetáculo – com ou sem nossa vitória sobre os cadáveres –, mas se o tigre ainda não tinha percebido sua posição arriscada no jogo, a presença invisível da terceira besta o desperta para a cautela necessária.
      O silêncio preenche o lugar novamente, mas, desta vez, ele antecede algo muito maior. Posso sentir as linhas vermelhas trabalhando contra nós, colocando cada um por si conforme a aberração emerge das árvores, abocanhando o pescoço do tigre e arrancando um pedaço da garganta do animal.
      Mas o tigre luta com a outra besta, usando as galhadas sangrentas para jogar a fera para longe, cambaleando com o pescoço jorrando vida escarlate.
      O terceiro pesadelo não é tão grande quanto o felino albino, mas é mais rápido, fazendo uso da perspicácia para saber quando recuar. Esperto como uma raposa, apesar da pele cinzenta e esticada que cobre o corpo esguio e me lembra um lagarto deformado. Os braços compridos se arrastam no chão, com garras negras afiadas como facas, e a coluna magra exibe a espinha sob a pele fina, curvada até a parte de trás da criatura amedrontadora.
      O pescoço comprido sustenta o crânio reptiliano longo e relativamente simples. A criatura não possui olhos, mas as narinas dilatadas e a bocarra que ocupa metade da cabeça compensam a falta da visão com maestria. O pesadelo é cego, percebo. Ainda estou em dúvida se isso nos favorece ou martela outro prego em nosso caixão.
      Ninka ainda tenta se controlar com a lasca de madeira fincada no braço agora inchado, mas Kior observa ao meu lado, vasculhando a arena com os olhos, passando pelos monstros, ignorando a paisagem e parando no corpo do cervo que já está cheio de moscas e insetos repugnantes revirando a carne dos ossos.
      — É a nossa melhor chance.
      Não respondo, mas seguro o braço do estranho.
      — Vocês são guerreiros, certo? Vocês literalmente matam essas coisas por diversão, por puro entretenimento.
      Kior assente com a cabeça, os olhos azuis ainda focados no confronto silencioso.
      — E só possuem facas? Vocês não têm nenhuma outra arma além dessas lâminas que são como gravetos para eles?
      A lâmina que perdi quando caí da árvore certamente é um amontoado de pedaços quebrados a essa altura do espetáculo.
      — Essa é a graça do perigo. Se fosse para simplesmente matarmos uma dessas coisas com um tiro na cabeça, não haveria show algum. — Ele olha para Ninka, ainda abatida. — São raras as vezes em que guerreiros morrem na arena, somos treinados durante anos para isso... Mas já aconteceu antes, e pode acontecer à qualquer momento.
      — Vai acontecer hoje? — Ninka arrisca perguntar.
      Kior inclina a cabeça para o lado, apesar de não conseguir levantar o olhar para a parceira ferida, voltando a encarar os monstros que giram em uma roda de ameaças como se precisasse de uma distração para se manter focado.
      — Não sei.
      O pesadelo esguio ataca mais uma vez, passando pelo tigre como um raio e se arremessando nas galhadas vermelhas, quebrando-as com mordidas e chutes com força o bastante para matar um humano.
      A besta albina chacoalha a cabeça, tentando se livrar do animal ossudo, mas a cada movimento desesperado, mais sangue jorra da garganta ferida, manchando a pelagem branca com rastros de carmesim, formando uma crosta coagulada que desce até uma das patas colossais. Um gigante morrendo aos poucos, sendo torturado por um monstro esguio e cinzento com um terço de seu tamanho.
      — Sabe alguma coisa sobre o tipo dele?
      Kior quase ri de minha pergunta.
      — Myfilin. É uma espécie em extinção, na verdade. Caçam por diversão, têm problemas para interagir com outras bestas, estão a poucos degraus do topo da cadeia alimentar.
      — Não me importo com a posição daquela coisa na cadeia alimentar, muito menos com o risco de extinção. — Esfrego as mãos, deixando que os dedos me distraiam com a sujeira entre as unhas. — Só preciso saber as fraquezas disso.
      — O tipo dele é incrivelmente letal. — Kior passa os dedos pela lâmina de uma adaga, e prefiro não perguntar como ele sabe que a besta é um macho. — Porém, se você souber onde enfiar a faca, ele pode se tornar tão vulnerável quanto um esquilo.
      — Eles não teriam colocado algo tão frágil para lutar em um show tão especial.
      Kior fecha os olhos, e os lábios cheios de sangue do guerreiro se contraem em uma linha fina.
      — Entre ele a besta albina, reze para que a segunda vença — diz ele, quase sussurrando. — Myfilins são exageradamente rápidos, isso é o que os faz tão poderosos. O pesadelo branco é realmente assustador, mas se conseguirmos chegar até o pescoço, ou perto o suficiente das costelas, temos uma ótima chance de matá-lo sem que uma interferência dos guardas que monitoram o espetáculo seja necessária. Com o Myfilin, vamos ter muito mais trabalho.
      Olho para Ninka, com nada além de raiva queimando no rosto imundo. Deste ângulo, ela parece uma tartaruga se escondendo no casco de prata.
      — Você disse que ninguém pode interferir enquanto o show acontece — disparo, cogitando a possibilidade de começar a gritar para que alguém nos tire daqui.
      — E não podem. Não até que alguém morra, ou seja muito, muito ferido. — A voz da garota agora não passa de um ruído rouco, um som quase inaudível.
      O braço inchado sob a roupa justa rasgada por debaixo da armadura está em péssimas condições. O sangramento parou, mas uma crosta de sangue coagulado e pequenos insetos que ela tenta em vão expulsar com os dedos, se formou na manga do figurino escuro.
      — Isso não é o bastante para que façam alguma coisa? — ironizo, indicando com o queixo a lasca que atravessa sua pele.
      Um lampejo obscuro de minha perna rasgada surge, mas afasto a memória com um piscar de olhos.
      Ninka, apesar do braço ferido, engatinha até mim, mostrando os dentes brancos demais, franzindo o nariz empinado para enfatizar a expressão felina no rosto sedutor que me faz recuar alguns centímetros.
      — Homens com braços arrancados por bestas infernais, os olhos saltando para fora das órbitas depois de os crânios terem sido esmagados. Mulheres com pescoços rasgados por longas garras afiadas, perdendo sangue na arena e sendo pisoteadas por patas indiferentes — descreve ela, a voz rouca cada vez mais gutural conforme chega mais perto. — Mandíbulas destruídas com um único golpe, jogadas para longe dos corpos inúteis. Colunas quebradas em pontos tão pequenos e cirúrgicos, que nem a magia pôde consertar. — Nossos narizes se tocam. A guerreira parece querer pular para dentro de meus olhos enquanto permanece com a testa na minha, tão perto que seu rosto se torna um borrão de cortes e sangue e sujeira diante do meu. — Vamos precisar de muito mais que um braço inchado para interromperem o espetáculo.
      Sua voz ainda soa como uma coruja em um funeral, mas há um toque de vulnerabilidade no modo como ela diz as últimas palavras, quase como uma bêbada percebendo a alma vazia dentro do corpo alcoolizado.
      Ninka deixa o braço machucado se dobrar no chão, um pequeno solavanco e o corpo magricelo se entorta para o lado conforme ela volta para o canto da toca, sentada com as costas grudadas à parede de terra que se desmancha a cada toque.
      Kior não se incomoda em contrariar a parceira, ele sequer presta atenção na cena, os olhos azuis parecem buscar um plano no fundo da mente do guerreiro, estudando o combate das bestas com as sobrancelhas arqueadas.
      Me pergunto o que está acontecendo na platéia alvoroçada. Consigo imaginar Fierce arrancando os cachos da cabeça, enquanto Icca pensa em um jeito plausível de explicar para Mavka que a novata da terra dos refugiados morreu em uma arena por acidente.
      Agradeço ao Desconhecido por Edmond ter ficado em Rosetrum. Ele provavelmente pularia na arena e morreria conosco na primeira oportunidade.
      O som de ossos sendo partidos desperta a minha atenção, mas ao virar a cabeça na direção do conflito, meus olhos queimam em um misto de surpresa e aflição.
      De alguma forma sobrenatural que não consigo explicar, a criatura cinzenta de pele elástica triunfa sobre o corpo do tigre moribundo – estraçalhado no chão, com os membros torcidos em ângulos completamente errados e aterrorizantes, os olhos abertos encarando o vazio. Assim como aconteceu com o cervo carnívoro, não há nenhum vestígio do rastro da morte. Apenas o sangue empoçado na grama, respingando em algumas margaridas minúsculas perto do cadáver.
      Mas o colapso da segunda besta não é o que me assusta.
      O Myfilin rodeia o corpo gigantesco, cravando as garras afiadas no peito peludo do animal albino e rasgando a pele até a região pélvica, abrindo o tigre como o embrulho de uma caixa de presente.
      Kior se move com um ruído de desconforto na garganta, mas não ouso desviar o olhar da carnificina.
      — Sei que não pediu nenhum conselho...
      — Não — interrompo, sem me dar ao trabalho de observar os olhos azuis —, realmente não pedi.
      — Certo — ele suspira. — Mas vou dar um de qualquer forma. Se eu fosse você, não ficaria tão entretida com o que ele vai fazer agora. Pode... fazer coisas com o seu estômago.
      Só entendo o que Kior quer dizer ao ver o pesadelo abrir a barriga do tigre. Tripas e litros de sangue jorram do buraco escuro e grotesco, alguns órgãos são praticamente cuspidos do corpo, jogados na poça carmesim escorregadia sobre a grama verdejante. Um verdadeiro show de horrores, do qual, agora eu sei, não tenho a mínima chance de escapar com vida. Não, a única maneira possível de me tirarem desse massacre, é em um caixão selado. Não gosto de pensar em como Edmond reagirá à notícia.
      — Está procurando o coração — sussurra Kior, apoiando as mãos na grama da arena e saindo do esconderijo sem qualquer explicação. — É a nossa melhor chance — diz, estendendo a mão na minha direção.
      — Não vou sair daqui. — Enterro meus dedos na terra, me agarrando ao único refúgio na carnificina descontrolada. — Não com aquela coisa solta.
      — Você disse que sabia lutar.
      — Eu digo muitas coisas.
      Kior estica o braço um pouco mais. Em vão.
      — Temos menos de sete minutos de vantagem. Ele vai se deliciar com aquele coração e, com muita sorte, talvez decida mordiscar um pouco do fígado antes de voltar ao trabalho. De qualquer forma, vai ficar consideravelmente lento nos próximos minutos, além de desinteressado em qualquer outra coisa que não esteja morta e em pedaços. É a nossa melhor chance.
      — Para fazer o quê?
      Ninka solta uma risada bufada atrás de mim, seguida por um arquejo de dor que escolho ignorar. Mas Kior torce o pescoço para o lado com um olhar preocupado na direção da parceira de batalha, e um lampejo de palavras não ditas escurece os olhos azuis.
      Não sei qual o tipo de parceria que os envolve – se é algo carnal ou apenas a mera necessidade de saírem vivos da arena –, mas mesmo que seja a pura vontade de sobreviver, e nada além disto, me parece justo que os dois saiam daqui com a vitória sobre as cabeças. E que eu tenha a chance de descobrir.
      — Ninka está ferida. — Ele esfrega o cabelo úmido, manchado com o sangue do cervo. — Quer dizer que ou você me ajuda, ou eu vou sozinho e morro tentando. Então levante o traseiro e saia dessa toca — acrescenta, apontando para os pesadelos do outro lado da arena —, antes que aquela coisa termine de se banquetear e resolva caçar outro prato.
      Arrisco um olhar sobre o ombro, capturando o rosto de Ninka no momento em que a suplica velada é arrancada de seus olhos e coberta pela máscara fria que esconde a esperança e o medo silenciosos.
      Arrependo-me das palavras antes mesmo de abrir a boca.
      — O que eu preciso fazer?











Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora