Eu me arrasto pela neve da noite mais longa do ano, e minha teia musical se arrasta junto a mim.
Caos acalma caos, é o que repito sem parar, e a cada nova rodada de palavras, a confiança fria cresce dentro de mim, se alastrando pelas veias, dominando os nervos mais frágeis e tomando conta da minha respiração.
Eu me submeto às funções de uma aranha tenebrosa, tecendo a minha própria teia enquanto deslizo pelo gelo, marcando os rostos na memória, registrando lugares e nomes, e repetindo tudo de novo, até que fique gravado de uma vez por todas na rocha de minha mente. São gestos simples, cuja importancia faço questão de ocultar sob a graça de um sorriso gentil, depois de passar por suas formas dançantes, agradecendo por uma risada tirada de um dia nublado ou um favor prestado sem que me cobrassem nada.
É a quinta vez que passo por Murnia, envolvida demais na valsa atrapalhada que performa junto ao cervo de Veuria para sequer notar minha presença – se é que ainda pode-se dizer que o animal pertence à caçadora. Há outros que evito permitir que me encontrem entre os corpos dançantes: Pluvia, Edmond, Falena, Macaire, Eden. Eles serão os últimos, por uma questão de cuidado. Mas não Fierce. Não, esse é o meu próximo destino.
Ele é uma das únicas pessoas que evitam a pista de dança na qual o lago se tornou, desfrutando de um tédio silencioso, sentado em uma pilha de pedras próximo ao calor das fogueiras crepitantes. Contudo, Falena é um obstáculo que não consigo contornar. Eu poderia traçar um caminho por fora do gelo, me esgueirando pelo entorno do lago com a cobertura das labaredas altas e a distração constante do baile que cintila ao meu redor, e ainda assim faria tudo por nada, pois não poderia chegar até Fierce com Falena acampando ao seu lado.
Seguindo meu caminho longe da massa de vestidos de mangas compridas e elegantes, com camadas de tecidos babados e bordados elaborados, anseio por um simples casaco, mesmo sabendo que, diferentemente dos dançarinos alegres, ainda possuo um dever com o solstício de inverno, e outro com a teia que se enrosca em meus dedos. Ao menos nos deram botas de couro forradas, para que o trio das pérolas não morresse antes do final de atear fogo à árvore que é decorada no centro do lago – o mesmo lugar onde o caixão de Eotien fora aberto, horas atrás.
Tenho tudo planejado, um plano que despensa grandes rodeios e comoções, porém tem o rumo entortado a cada curva errada, e uma linha alterada a cada sombra que não deveria habitar minha visão periférica – mas o faz da mesma forma.
O único lugar onde consigo passar despercebida por todos é o final do lago, perto o bastante da margem para sentir o calor do fogo, mas longe demais para me atirar à uma das fogueiras. Com a maioria ocupada em aproveitar a noite de dança, esse lado do gelo fica reservado para o banquete que é servido na fileira de mesas compridas. O único rosto do qual não estou a salvo aqui, é o de Ammar, mas já cumpri meu dever com a alma gentil, e ela não é uma pedra em meu caminho.
Esforço-me para ignorar as pratarias lustrosas que refletem as diferentes luzes do ambiente festivo, mas sempre acabo esbarrando em meu reflexo nas bandejas que mais parecem espelhos, e, quando isso acontece, sou condenada a assistir a mancha na íris que um dia fora azul, afogando o mar em sangue. Um lembrete nada amigável de que sou observada por olhos sombrios, abismos insondáveis no rosto nebuloso que espera nas sombras, aguardando pacientemente a hora de atacar. E eu me apresso, para ter certeza de que o momento nunca chegará.
Papel e caneta são coisas que minhas mãos não alcançam nos bolsos alheios ou sob as cadeiras pomposas, sendo obrigada a abraçar uma alternativa muito menos elegante, porém talvez um pouco mais discreta. Depois de afanar uma maçã escarlate de uma das bandejas riquíssimas, improviso minha mensagem com um garfo dourado, usando a ponta cintilante para gravar as palavras rasgadas na casca de sangue. É simples, uma única linha de letras tortas e brutalmente entalhadas, mas deve servir. Precisa servir.
Mas meu obstáculo não se move, e não faz qualquer menção de se levantar. Então me obrigo a entregar a mensagem através de um terceiro, uma ponte para as teias se fecharem unidas e padronizadas, um passo a mais para a minha vitória. E a oportunidade perfeita se esgueira à minha frente, as mãos pequenas e ágeis deslizando por entre os doces mais chamativos do banquete, e fazendo-os desaparecer sob a manga do casaco cor-de-rosa opaco.
A garotinha me encara com pavor nos olhos arregalados quando minha mão se fecha ao redor do pulso magricelo. Não é como se ela estivesse cometendo um crime ao pegar meros morangos envoltos em chocolate, considerando que outras mãos ainda beliscam as receitas aqui e alí na fileira de mesas decoradas para o grande banquete de inverno, mas dou o meu melhor para fazer parecer que a criança está encrencada. Eu poderia apenas pedir com educação por um favor simples, mas se vou para o inferno hoje, prefiro descer sabendo que aproveitei bem o ar em meus pulmões.
— Você tem duas opções — sussurro, estalando a língua ao me agachar na altura da criaturinha travessa. — Eu posso dizer para todos aqui que há alguém furtando os doces antes do jantar... Ou, você pode me ajudar com algo muito simples, e continuar com o que você tem escondido na manga.
Qualquer pessoa com meio miolo perceberia meu blefe e riria das falhas em meu plano desesperado. Porém, para a minha sorte, a criança apenas bufa, se dando por vencida ao revirar os olhos azuis.
— Preciso que você entregue isto — digo, mostrando o pomo rubro entre meus dedos frios. Com um inclinar de cabeça, meu queixo indica a silhueta do outro lado do lago, além das danças e risadas. — Para aquele rapaz. Mas você precisa ser discreta, e fazer isso de uma forma que a garota ao lado dele não desconfie de nada.
— E por que você mesma não faz isso? — A garotinha esboça uma careta cansada.
— Eu faria, se pudesse. — Minha voz sai firme, enquanto aperto os dedos da criança ao redor da maçã escavada. — Agora, você vai me ajudar ou vou ter que contar à Ammar que uma ratinha andou roubando os doces que ela demorou tanto para organizar na mesa?
Relutante, ela assente com a cabeça, e, antes que eu tenha a chance de agradecer, me vejo sozinha novamente, podendo apenas observar conforme a garotinha desaparece entre vultos e luzes ofuscantes.
Mantenho os olhos em seu caminho invisível aos olhos alheios, oscilando entre ela e um Fierce de expressões vazias, ainda sentado no mesmo lugar ao lado de Falena, ambos encarando o baile de gelo sem demonstrar qualquer interesse em descer até a dança movida a palmas padronizadas.
O ritmo da orquestra em minha cabeça não é o mesmo da música performada pelas dezenas de mãos ao redor dos dançarinos alegres, o que me faz querer arrancar meus próprios ouvidos, mesmo sabendo que ainda assim os violinos não iriam cessar em minha mente conturbada.
Quando o pomo de sangue chega até as mãos de Fierce, dou alguns passos adiante, na tentativa de enxergar melhor seu rosto e a reação confusa ao receber o recado entalhado na maçã escarlate, mas sua forma ainda é um borrão, apesar de eu conseguir distinguir os movimentos entre as chamas vultuosas. Meu amigo gira o fruto rubro com os dedos ossudos, curvado com os cotovelos apoiados nos joelhos, e posso jurar ver as linhas se formando entre as sobrancelhas grossas e escuras, enquanto ele levanta o olhar da mensagem rasgada para os corpos em movimento no gelo. Em vão, pois nossos olhares não se cruzam em nenhum momento.
Então ele diz alguma coisa para a caçadora, que parece parte da neve amontoada perto das fogueiras, encolhida sobre o frio branco com um casaco sobre o corpo pequeno. Fierce dera o casaco à ela, percebo, vendo que a única coisa que cobre suas cicatrizes enigmáticas são as mangas do suéter soturno. Estou longe demais para ouvir qualquer palavra, mas Falena não parece se importar com o que ele diz, se aprumando perto do fogo que esquenta a pele gelada, ao passo que Fierce ruma para a floresta de galhos retorcidos pelo inverno.
Ele não levanta nenhuma suspeita. E eu continuo a tecer minha teia.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
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