Quando fomos avisados sobre nossa nova rotina, não esperávamos que ela demorasse quase um mês para acontecer, com Mavka fazendo infinitas reuniões para confirmar a vontade de todos em relação ao treinamento, e os avisos da ressurreição da outra deusa nos alcançando enquanto o atraso se estendia. Contudo, nossos instrutores de batalha finalmente chegaram pela manhã e, não fosse por Murnia me arrastando para o lago de ninféias, eu poderia estar um pouco mais animada para conhecer as pessoas que mudarão nossa rotina a partir de hoje.
Cometi o erro de contar a ela sobre o tempo que passei no continente, e desde então a garota decidiu se tornar uma extensão de meu corpo, me seguindo por todos os lugares, como antes ela fazia com Alein – o pobre cervo de Veuria, cuja companhia Murnia decidiu trocar por repetições desgastantes de minhas histórias.
Desde criança, Eden e ela são como meus próprios irmãos, e Murnia não chega a ser um carrapato irritante, mas sua presença em todos os lugares, como uma sombra me acompanhando pelos cantos, já está começando a me sufocar de verdade.
Por outro lado, é bom ter por perto alguém que não sabe sobre Clément, e não tenta me amarrar à uma árvore com uma coleira florida.
Já se passaram semanas desde que Mavka furou meus pulsos na árvore sagrada e me deu a rosa dourada. As pétalas de ouro têm um gosto forte de mariposas mortas e brasas quentes, mas se ingerir uma delas por dia é o preço que preciso pagar para mantê-lo longe de mim e de minha família, posso me acostumar com a sensação de chamas subindo pela garganta seca. Meu fantasma cobrador não me visita há semanas, e pela primeira vez, eu consigo sentir como era viver antes de tudo isso: a liberdade limitada, mas também controlada por mim, e sã, sem crises onde perco a noção do tempo ou penso que estou morta, sem pesadelos constantes.
Faltam apenas três pétalas para a rosa se tornar inútil em minhas mãos, porém Mavka prometeu renovar meu pacto temporário de liberdade – como ela escolheu chamar o ritual com a magia de Iglaevi – sempre que for necessário. Ela prometeu me manter viva até a chegada de sua irmã, e está tentando tudo o que pode para cumprir sua palavra, assim como meus amigos, que tentam até demais me manter longe de problemas, mesmo nas condições atuais.
Restam menos de dois meses para a ressurreição da segunda deusa, mas sobreviver até o grande evento como um pássaro enjaulado por minha própria família talvez seja mais difícil do que sobreviver a Clément.
Enquanto Murnia me arrasta para a aglomeração de pessoas perto do lago, encaro minha mão. A cicatriz de nosso voto de sangue está quase curada em minha pele, por onde os espinhos dançaram na carne rasgada, em algum lugar há dias, semanas, talvez meses atrás. Acontece que, com o juramento selado, eles estão fazendo de tudo para não cumprí-lo, e para me "proteger", seguram meu pescoço em uma coleira apertada.
Só posso deixar a casa se alguém me acompanhar como um guarda-costas. Meu sono ainda é vigiado diariamente, com turnos perfeitamente organizados. Eles me tratam como uma criança doente, que precisa de cuidado dobrado para tudo o que faz, agem como se eu fosse explodir a qualquer momento em uma chuva de estilhaços, e sei que apesar de tudo, ainda existe o risco de Clément voltar e me fazer pular de uma ponte, mas esse excesso de cuidado é tudo o que tentei evitar ao esconder deles a verdade, e agora é a única coisa que tenho recebido recentemente.
Ao menos não me sinto como um animal amarrado ao dono quando Murnia me faz companhia, me salvando do olhar incomodado de Veuria e da presença superprotetora de Fierce e Eden. Macaire e Falena parecem ser meus únicos aliados nesse conflito silencioso, eles sabem o quanto isso me faz querer gritar, e às vezes deixam a porta da cozinha aberta durante seus turnos noturnos, desviando o olhar de propósito quando abro a porta do quarto sem emitir um som, e escapo para meu cemitério particular – cujo mesmo não preciso mais aumentar o número de túmulos, agora que possuo a rosa encantada que estabelece uma barreira entre mim e a morte ambulante, mas continuo frequentando pela pequena sensação de dever, passando a maior parte do tempo deitada nos galhos da macieira.
Entre o cuidado excessivo e a compaixão doída, fica Edmond, que tenta não assumir nenhum dos lados, e ainda assim permanece jogando em ambos. Ele passa a maior parte de seu tempo na enfermaria, trabalhando com Niore e Astan e os outros curandeiros, contudo, sempre que estou por perto, seu olhar parece mudar, como se antecipasse meus movimentos e estivesse constantemente pensando em uma maneira de me impedir de fazer algo ruim. Eu já tentei convencê-lo de que estou bem, já tentei explicar que Mavka conseguiu a chave para me manter viva até a ressurreição – quando a força das duas irmãs será restabelecida, e terei a chance de me livrar do acordo –, e sempre que o faço, posso ver o lampejo de culpa e compaixão que ondula nos olhos dele, mas essa esperança sempre morre depois de alguns segundos.
Normalmente, consigo fazê-lo entender que estou temporariamente livre, mas eu os fiz jurar que me matarão caso eu me torne uma ameaça, e mesmo nos momentos em que Edmond abre minha gaiola para me deixar respirar por alguns minutos, me levando para o nosso lugar secreto, ou negligenciando o perigo quando finge não me ver, apenas para que eu possa escapar por alguns minutos e me enterrar na campina, ele ainda tem medo de onde as cordas podem me levar, de quem pode controlá-las. E, no final do dia, esse medo sempre ofusca a esperança.
Queria poder dar a eles uma prova, qualquer coisa que confirme minha segurança, além da minha palavra e a de Mavka, mas penso que, mesmo que eu lhes desse uma, ainda haveria a possibilidade de algo dar errado, e nada que eu faça pode acabar com esse receio que carregam.
Quando Murnia finalmente solta meu braço, me vejo inerte entre rostos conhecidos e estranhos, pessoas com as quais possuo um vínculo de amizade, e outras com quem sequer conversei durante toda a minha estadia aqui. Por um momento, as imagens do julgamento dos impostores do Povo da Floresta inunda minha mente, com todos ao redor do círculo de cadeiras douradas e Mavka vagando de assento em assento com o fio da verdade. Mas isso não é um julgamento, e nenhum de nós terá os olhos furados por corvos mensageiros do destino.
Apenas duas semanas atrás, tivemos três dias de árvores entrando em combustão de dentro para fora, queimando por dentro dos troncos como se raios houvessem as atingido. Quase não tivemos descanso, com medo de que o segundo aviso atingisse nossas casas durante a noite. Agora, só restam alguns presságios vindo na nossa direção, o próximo sempre pior que o anterior, até o dia do retorno da segunda irmã.
Mas as pragas não são nossa maior ameaça. Desde que Guinevere e seu grupo ridículo de espiões foram enviados de volta, não tivemos mais notícias deles, todavia, os refugiados continuaram chegando conforme a guerra se estende lá fora, e todos em Rosetrum passaram por um julgamento discreto, mesmo os que já estão aqui há um tempo. Mesmo nós. Os recém-chegados são testados assim que tocam o solo na floresta, é assim que sabemos que ninguém foi enviado depois do fracasso do primeiro grupo.
O único problema, é que os nossos também não voltaram. Mavka enviou dois voluntários para que cuidassem do portal do lado de fora, mas não temos notícias de nenhum deles há pelo menos cinco dias, e os informantes que ela mandou atrás deles não trouxeram respostas, apenas mais perguntas, já que não encontraram um rastro sequer. Querendo ou não, sabemos que não vão voltar, é por isso que Mavka decidiu não enviar mais ninguém para o Mundo de Fora – espiões nossos ou guardiões voluntários do portal, ninguém mais tem permissão para deixar este mundo.
A deusa renova as proteções do portal todos os dias, literalmente sangrando para impedir que alguém ruim passe por ele, já que não possui forças para fechá-lo ou simplesmente mudá-lo de lugar, e sinceramente duvido que ela o faria mesmo que pudesse, já que se recusa a negar ajuda aos que realmente procuram por abrigo em seu mundo.
Como não temos um vasto catálogo de opções, um treinamento adequado para nossa defesa no caso de uma possível invasão, é o nosso melhor recurso se quisermos defender nossa casa. Felizmente, depois de um atraso que nos deixou apreensivos, nossa nova rotina começa hoje, e como Mavka dispensou apresentações formais, conheceremos nossos instrutores quando chegarmos à nossa primeira aula.
Os que escolhem não lutar, por trauma ou pelo medo que é totalmente compreensível, estão deixando Rosetrum aos poucos, recomeçando suas vidas no continente como pessoas normais, como deveria ser para todos nós, não fosse o egoísmo e o descontrole do Povo da Floresta. Por um tempo, rezei para que Apza se juntasse a eles e tivesse uma vida calma longe de Rosetrum, mas acabei percebendo que meu maior gatilho não vai abandonar esse lugar tão cedo, e consequentemente precisarei aprender a conviver com ela, escondendo que o fantasma de seu pai quer que eu a mate a qualquer custo.
Às vezes me pergunto o porquê de eu ainda estar aqui, esperando por uma batalha, mas ficar longe não é uma opção. Preciso ficar, pelo solstício de inverno e a ressurreição, por Mavka, que está me mantendo viva por enquanto, mas principalmente porque não conseguiria permanecer longe por muito tempo. Eu não conseguiria ficar em Celetrial, ou em qualquer outro lugar, sabendo que estão lutando em Rosetrum contra um exército de invasores descontrolados. Quero lutar, quero fazer parte dessa guerra se ela realmente acontecer.
Abro caminho entre os corpos ao meu redor, ficando na ponta dos pés para conseguir enxergar quem nos treinará pela primeira vez. Quando finalmente consigo chegar na primeira fileira de pessoas, posso ouvir o estampido que meu queixo faz ao se chocar contra o chão. No centro das atenções, em pé às margens do lago de ninféias, com um vestido sem mangas turquesa colado nas curvas generosas, e meus dúzia de borboletas monarcas descansando nos cachos escuros e definidos, está a última pessoa que eu esperava encontrar aqui.
Icca pisca um dos olhos de avelã para mim ao notar minha presença, mas não se dá ao trabalho de demonstrar muita surpresa, prosseguindo com instruções e perguntas sobre nosso primeiro dia de treinamento.
Mas é o suficiente para que Murnia cutuque minhas costelas, alerta como uma raposa.
— É ela, não é? — pergunta, sem tirar os olhos de nossa instrutora.
Talvez eu tenha descrito Icca bem demais, pois a pergunta de Murnia é certeira, ela nem mesmo espera uma confirmação minha; já sabe que é verdade. Seus olhos brilham diante da presença da mulher misteriosa que coleciona conchas e exala poder.
Icca olha através de nós, passando a atenção de rosto em rosto até nós ver como um só. Um único exército despreparado e sem treinamento, que sequer conhece o significado de disciplina ou coordenação. Alguns, talvez saibam. Mas são a exceção, a minoria caçadora que enfrenta os pesadelos por esporte, e volta com cicatrizes que encaram como troféus dourados.
Ela examina cada um dos pés à cabeça, nos analisando como se fôssemos ratos de laboratório, sendo testados até que não precisem mais de nós.
— Algum de vocês já recebeu qualquer tipo de treinamento antes? — O olhar das avelãs é desanimador, fazendo meus ombros cederem com a perspectiva de meu fracasso.
Conforme dúzias de mãos presunçosas e cheias de vantagem se erguem acima de nossas cabeças, me encolho como a ratazana que sou. Sinto vontade de abaixar a mão de Falena quando a vejo esticada sobre o braço esguio, então vejo a cicatriz enrugada perto do lábio e, quando me lembro de sua função como caçadora, meu rosto queima de frustração por todas as coisas arriscadas e perigosas das quais escolhi ficar de fora. Mas os caçadores costumam matar, e apesar de estar longe demais da inocência e até mesmo da ordem, não é o tipo de atividade com a qual eu gostaria de gastar o dia.
— Isso vai ser... interessante. — A voz de Icca é um suspiro de puro desânimo. — Bom, dividam-se em duplas. Agora. — Ela bate palmas apressadas, os olhos arregalados com uma urgência frustrada. — Não fiquem aí parados, movam-se!
Reclamações e lamúrias preguiçosas são levadas em forma de sussurros pela brisa matinal. Icca não se importa, um olhar severo é o bastante para calar os cochichos de protesto.
Sequer abro a boca para reclamar, mas a presença de Icca me causa calafrios, como se a qualquer momento ela pudesse rasgar a garganta de alguém com os próprios dentes, mesmo sem demonstrar um mínimo esforço inclinado à violência.
Apesar de nosso período de tempo em Celetrial, ela não parece disposta a me dispensar do treinamento para jogar conversa fora sobre os últimos ocorridos no continente ou qualquer coisa.
Observo o rosto de traços marcantes, mas não encontro nada além de um tédio contagiante, que se derrama por mim como se fosse uma doença.
Penso em me juntar à Murnia, mas ela se afasta de mim quase que imediatamente, indo saltitante até uma garota com a mesma idade que a sua, cujos dedos não conseguem largar a trança escura no próprio cabelo. Apesar da pouca idade, ambas parecem mais perigosas que os guerreiros que conheci na arena, em Celetrial, ao pegarem os bastões compridos de madeira que Icca começa a distribuir entre as duplas.
Vasculho o ambiente com os olhos, procurando por alguém solitário que possa ser minha dupla, mas Lavena é praticamente reivindicada por Falena, e posso jurar ter visto os cristais em seus ombros nus cintilarem quando os olhos violeta reconheceram a presença da nevasca afiada.
Nas mãos de Falena, o bastão de madeira poderia facilmente ser uma espada de ferro. Ela manuseia o objeto inofensivo como se fosse uma arma mortal, cortando o ar com movimentos ariscos e presunçosos, mas Lavena sabe apenas observar com um sorriso que se expande no canto da boca.
Alguém cutuca meu braço com um bastão, e a madeira arranha minha pele quando me viro, buscando pelo rosto aflito atrás de mim.
— Oi. — A voz de Apza faz meu peito murchar, pesado como uma pedra.
A garota me oferece o bastão que segura com a outra mão, um convite e uma intimação. Uma das asas da mariposa do lado esquerdo de seu rosto treme, e as demais que cobrem seus olhos ecoam o movimento, farfalhando em uma onda de asas brancas.
Sinto minha garganta trancar, se fechando e encolhendo além da visão de Apza.
A filha de Clément é a última pessoa com a qual pretendo lutar, mesmo que seja apenas um treinamento. Com alguns movimentos, tenho certeza de que Clément poderia me fazer machucá-la.
Ou pior.
Mas ele não pode mais me controlar. E não vai. Mavka me assegurou que não acontecerá com tanta facilidade.
O gosto da pétala dourada derretendo em minha língua retorna à minha boca como metal fervente. Como sangue.
Agarro o bastão com as duas mãos, sem a mínima noção de como usá-lo propriamente, porém, me esforçando para lhe oferecer um sorriso que não flui em meu rosto, preso nos lábios petrificados com a incerteza de meus próprios pensamentos e impulsos. A madeira roça contra a cicatriz na palma de minha mão.
— Prometo pegar leve com você. — Uma das mariposas se mexe, no que considero uma piscadela amigável.
— Até onde eu sei, você também não possui muita experiência com armas e combates — observo.
Apza faz um biquinho, considerando meu comentário.
— Aprendo rápido. — Ela levanta o bastão na altura da cintura. — Além de que, como amiga de alguns dos caçadores veteranos, sei de um ou dois truques.
— Só... não quebre nenhum de meus ossos. — Embora eu mereça mais do que você pode imaginar.
— Vou pensar no seu caso — murmura, inclinando a cabeça para o lado, exibindo um sorriso esperto.
Perto do lago, Icca se apoia no tronco de uma glicínia, as pernas esbeltas visíveis pelos dois cortes generosos nas laterais do vestido justo. Uma borboleta paira sobre sua cabeça como uma pedra de safira com asas, flutuando entre os cachos e despertando em mim a lembrança de Ivanka, com os pés descalços entre o tronco oco e as hortências azuladas.
Afasto a memória trágica, mas não antes de sentir uma pontada entre as sobrancelhas.
Enquanto a maioria dos olhos presentes se retesam sobre a figura intimidadora, Icca apenas abana o ar com as mãos de cores diferentes.
— Vão — ordena ela, entediada com nossa confusão. — Comecem!
— Como? — Reconheço a voz de Kaife, em algum lugar à minha esquerda.
Me pergunto se Mavka permitiu que Caelestis ficasse sem supervisão, ou deixou alguma outra pessoa tomando conta da refugiada que ao mesmo tempo é uma prisioneira sem correntes de ferro.
— Façam qualquer coisa — orienta ela. — Ataquem. Defendam-se. Machuquem-se. Qualquer coisa. Quero ver como vocês se saem, preciso ter uma idéia de com o que estou lidando. — Icca volta a balançar as mãos, como se pudesse nos empurrar para seu objetivo. — Vão, vão! Não sejam acanhados.
Então, antes que eu possa sequer notar o movimento, o bastão de Apza cutuca meu braço com uma falsa batida. O susto é maior que a dor, já que seu intuito era apenas chamar a minha atenção, mas meu coração acelera com o perigo inexistente.
Às minhas costas, Lavena trava uma batalha contra sua parceira de treinamento, e não preciso me virar para saber que o cristal humano está perdendo. O som de madeira contra madeira ondula até meus ouvidos, soando como uma verdadeira derrota quando o último golpe reverbera atrás de mim. Falena conseguiu derrubá-la em menos de quinze segundos.
— Eu esperava mais de uma caçadora. — A voz de Lavena não passa de um suspiro entusiasmado.
Olho por cima do ombro, e meu queixo toca o gramado quando percebo que a pessoa no chão, apoiada sobre os cotovelos e soprando uma mecha branca para longe do rosto, não é Lavena Litacaecirnus.
Falena agarra a mão estendida de sua dupla, mas assim que levanta uma das pernas para tomar impulso, trás Lavena ao chão com um puxão perfeitamente orquestrado. Em pé, ela limpa os pedaços de grama dos ombros magros, evitando olhar para a amiga caída, encobrindo o sorriso de seu rosto com um biquinho tedioso de vitória.
Quando volto a prestar atenção em Apza, o bastão de madeira encontra meu estômago, rápido demais para que eu possa desviar, e solto minha única arma com a dor que irrompe de minhas tripas.
— Desculpe — ela se apressa em dizer, se aproximando com preocupação. — Pensei que você fosse se defender.
— Acho que... meu próprio corpo vai tentar se livrar de mim quando isso acabar — digo, tossindo entre as palavras.
Ela apenas ri, enquanto seguro o bastão novamente.
— Você prometeu que pegaria leve comigo — lembro, minha voz se perdendo em uma risada. — Por favor, não me obrigue a desmaiar no meio de tanta gente.
— Não posso fazer nada, se você mesma não se protege. Ao menos tente desviar ou bloquear meus golpes, não é tão difícil assim.
Quando me recomponho, as costas retas indiferentes à dor em meu estômago, o bastão pesa em minhas mãos, como se fosse feito de ferro ao invés de madeira envernizada. Não sei o que fazer com ele, tudo o que consigo é movimentá-lo como uma espada, me lembrando de como Ninka e Kior usavam suas armas na arena, mas não tenho a mínima ideia de como usar o bastão, então apenas o giro nas mãos, esperando pelo próximo movimento de Apza.
Menti ao dizer que sabia como lutar na arena. Mas não saber como me defender em um simples treinamento é algo que faz minhas bochechas arderem. Eu sei lutar, minto outra vez, mas agora para mim mesma. Eu sobrevivi à muita coisa, não teria o feito sem saber revidar.
Ela corta o ar com o pedaço de madeira, rodopiando e parando com o mesmo a centímetros de meu pescoço.
— Xeque — diz ela, e uma das mariposas em seu rosto parece comemorar conforme um sorriso malicioso desabrocha nos lábios carnudos.
Eu provavelmente não arriscaria, caso fossem espadas de verdade, com lâminas de verdade, repousando em nossas mãos. Mas, como não são armas afiadas, levo meu bastão até um ponto macio entre suas costelas. Se estivéssemos com facas, ela cortaria minha garganta assim que eu tentasse me mover, ou eu seria mais rápida e atingiria algum órgão vital, mas os bastões não perfuram a pele, muito menos matam nas circunstâncias atuais.
— Um movimento corajoso — observa Apza, admirada. Com um único golpe, ela me desarma. — Porém, idiota.
Desvio o olhar para a glicínia perto do lago, onde Icca estava minutos atrás, mas agora a árvore está sozinha com seus galhos retorcidos. Apza dá um passo à frente, me derrubando com um chute e pressionando o bastão contra minha garganta, mantendo meu queixo erguido.
— Eu já havia perdido, isso não é muito justo de sua parte.
— Nenhuma batalha é justa, Fórzia. — A voz de Icca vibra pelo ar. Aperto os olhos para enxergá-la contra a luz do sol, parada com as mãos na cintura fina, a barra do vestido a centímetros de minha cabeça. — Esperar que uma seja é burrice. Ou você acha que o Povo da Floresta vai levar a honra e o senso de justiça em consideração, se invadirem este lugar?
— Jogar limpo não é uma opção muito entusiasmante — comenta Apza.
— Quando você joga limpo, você perde. — Icca me ergue pelo cotovelo, colocando o bastão em minhas mãos novamente. — Não estou dizendo para serem trapaceiras, apenas usem tudo o que possuem a seu favor.
— Para mim, são a mesma coisa — digo, colocando o peso de meu corpo sobre a perna esquerda.
Icca estala a língua no céu da boca.
— De qualquer forma, não há espaço para honestidade em uma batalha como a que está por vir.
— Não sabemos se tentarão invadir de verdade. — Limpo os pedaços de grama colados ao meu joelho. — Há muitas formas de evitar que isso aconteça, e tenho certeza de que Mavka irá tentar tudo o que estiver ao seu alcance para impedir que coloquem os pés aqui.
Apza inclina a cabeça para o lado, como que desviando o olhar enquanto se perde em alguma lembrança ou simplesmente acompanha o vento.
— Você ficaria surpresa com o quanto o alcance de Mavka é limitado, criança — suspira Icca. — A faísca que ela possui, não chega aos pés da explosão que morreu dentro dela.
— Isso não a impede de tentar. Ainda existem muitas coisas que ela pode fazer com o que tem.
Existem muitas coisas que ela está fazendo por mim, que apenas alguém com muita magia conseguiria.
— Mavka não pode mudar o portal sozinha — pontua Apza —, nem colocar proteções mais fortes ao redor dele. Essa faísca ainda é mais poderosa do que qualquer coisa nesse mundo, mas é limitada, e o Desconhecido não abre exceções. Nem mesmo para deuses.
— Quando a irmã dela retornar...
— Quando Eotien renascer — Icca me atropela —, os poderes das duas serão devidamente devolvidos. Mas nada disso acontecerá se o Mundo de Fora resolver antecipar sua agenda de ataques. Não podemos contar com algo que ainda está tão longe de acontecer, seria como ignorar qualquer aviso. Não seja idiota, você é esperta, sabe que está sendo burra.
— Podemos atrasá-los. Faltam quantos meses para ela voltar? Três? Dois? Menos? Podemos jogar pistas falsas...
— Não! — A voz de Icca ecoa em meus ouvidos, apesar de ser abafada pelo som dos bastões ao nosso redor. — Vocês tentaram enviar alguns dos seus para fora, e onde eles estão agora?
Respiro, calada por um momento. Mortos, na melhor das hipóteses. Sendo torturados, na pior delas.
— Desaparecidos — respondo, baixinho. — Estão desaparecidos.
Desta vez, é Apza quem olha para o céu, balançando a cabeça com um misto de descrença e irritação.
— Eles sabiam como voltar, Fórzia. Não é como se estivessem perdidos.
— Capturados — prossegue Icca. — Acho que essa é a palavra que você estava procurando. — Os olhos de avelã parecem se projetar nos meus, como se sua alma estivesse pulando para dentro de meu corpo através do contato visual, vasculhando a minha em busca de algum sinal de inteligência.
Abro a boca, mas se alguma palavra sai de mim, eu não a ouço ou sinto.
Icca recua um passo, alisando a cintura do vestido. Os fragmentos pálidos na pele escura me fazem pensar no desenho de um planeta que eu vi quando criança, com o mar abrangente preenchendo o globo entre os espaços de terra.
Quando levanto a cabeça, meus olhos vão além dela, para um lugar mais longe, onde me perco por alguns segundos.
Entre os corredores baixos de roseiras fúnebres, Caelestis está sozinha, avançando com cautela pelo jardim, enquanto os que a vêem se esquecem do treinamento para observar a ousadia da serpente cheia de marcas.
Com nada além de um sorriso inocente no rosto, ela caminha na nossa direção, diminuindo a frequência dos passos conforme congela os olhos que se viram para observá-la com atenção. A tenção que se condensa no ar ao nosso entorno é pesada, como se cada movimento fosse atrasado por uma onda limosa de fumaça e neblina e luto.
As roupas claras e leves da enfermaria ondulam com o vento afiado, e o som dos gravetos que se quebram sob seus pés é o único que corta o ar até nossos ouvidos. Ramos compridos de moréias e bocas-de-leão despontam de suas costas expostas, caindo sobre os ombros como penduricalhos floridos, presos à pele por fitas adesivas que se enrolam no que restou de suas asas.
Quando Caelestis se curva para desviar das roseiras lúgubres, os ramos tão cuidadosamente colados às suas costas se assemelham às asas etéreas que um dia pesaram seus passos.
Desde aquele café da manhã, quando Riselyth Eddor tentou colocá-la como suspeita por um crime que eu cometi em segredo, tive o desprazer de encontrá-la apenas quatro vezes, vagando por Rosetrum sob a vigilância de Kaife ou sentada à janela da enfermaria enquanto eu passava. Porém, mesmo tendo visto Caelestis em poucas ocasiões, é sempre nítida a falta de equilíbrio com a qual seu corpo está lidando, depois de ter tido as asas arrancadas de si.
Suas costas estão sempre inclinadas demais ou eretas demais. Nunca há um equilíbrio real. Os passos costumam ser aleatórios, como se não seguissem um caminho de verdade, como se tivesse desaprendido a andar propriamente.
É como assistir à uma criança andando de bicicleta pela primeira vez, porém durante meses seguidos, e ela nunca aprende a deixar as rodas estáveis.
— Me disseram que vocês estariam treinando aqui — diz ela, finalmente. Caelestis dá passos desajeitados na direção de dois garotos, pegando o bastão que um deles deixou cair, e suas mãos se fecham ao redor da arma inofensiva, como se estivesse segurando algo de valor inestimável. — Então eu vim. — Ela levanta o bastão na altura da cintura, pressionando os lábios em uma linha reta ao encarar Icca em busca de qualquer autorização.
Kaife tenta abrir caminho até ela, mas Icca dispensa o ato com um movimento de mão, e o garoto fica preso entre impedir que Caelestis se aproxime e ficar parado no lugar.
Atrás de mim, ouço um bastão se quebrando. Não preciso olhar por cima do ombro pra saber que os danos foram causados por Falena.
Minhas mãos doem conforme cravo as unhas afiadas na pele, reabrindo cicatrizes e sentindo o sangue que corre por minhas veias como uma correnteza voraz.
Me viro ao escutar Falena balbuciar algo, mas Lavena prende seu ombro no dela, segurando-a no lugar. Vendo o modo como a primeira luta silenciosamente para se libertar da segunda, empurrando e chutando sem emitir qualquer som, mostrando os dentes com uma fúria irredutível no olhar, não consigo enxergar a diferença entre ela e o lobo que matamos na floresta.
Um animal enjaulado, é o que ela é. Um lobo feroz com sede de sangue, mas preso pelas grades que outros constroem ao seu redor. Se um dia a trancarem em uma sala com Caelestis, duvido que a serpente tenha a mínima chance de sair com vida.
Caelestis sussurra algo para a grama sob seus pés, antes de encarar o céu sem nuvens e dizer:
— Mavka disse que todos precisam estar preparados.
— Acho que nem mesmo você se encaixa nessa categoria — responde Lavena, banhando a língua em desprezo puro.
— Posso levá-la de volta para a enfermaria, se assim desejar — oferece Kaife, observando o olhar distante de Icca.
Ela fica parada por alguns instantes, e quase consigo escutar as engrenagens trabalhando em sua cabeça, buscando por uma decisão que se encaixe perfeitamente.
— Não. — A palavra me derruba. — Deixem-na aprender alguma coisa. Qualquer interesse em defender essas terras é bem-vindo, mesmo vindo de alguém com uma índole tão... contestável.
O sorriso que se abre no rosto de Caelestis me destrói. Uma pedrada na minha cabeça teria menos efeito que sua aparente vitória.
— A senhora não pode estar falando sério... — uma garota de cabelos negros agarra o braço de Icca com delicadeza.
Reconheço-a da praça, não sei seu nome, ou qualquer informação importante sobre sua identidade, mas ela é uma das poucas pessoas que trabalham em uma barraca de peças bordadas e enfeites de madeira entalhada.
Icca se desprende das mãos dela com nada além de julgamento nos olhos castanhos, massageando o lugar onde os dedos da garota estavam segundos atrás.
— Não me façam perder a manhã toda envolta em uma discussão sobre quem deve ou não aprender a se defender. — Icca passa por Falena, ignorando a fera que luta para se libertar dentro do receptáculo frio. Assim que ela se aproxima de Kaife, agarra seu braço com uma única ordem: — Mantenha os olhos nela.
A mulher não se dá ao trabalho de esconder de Caelestis o pedido, sem se importar minimamente com o tom das palavras que saem de sua boca.
— Fórzia — chama Apza, baixinho. Ela envolve minhas mãos com hesitação, contornando o sangue das unhas com os dedos finos. — Isso não vai resolver nada.
Apza limpa as manchas vermelhas com as próprias mãos, expulsando o sangue das feridas com os dedos. Não tento me afastar enquanto ela oferece toda a piedade que não mereço, aceitando o gesto com um nó na garganta.
Icca ainda segura o braço de Kaife, sussurrando ordens que não posso ouvir, contudo, meus olhos repousam sobre a figura maltratada que abraça o próprio corpo, com uma das mãos fechada ao redor do bastão de madeira, segurando-o verticalmente. As moréias que se dobram sobre os ombros expostos parecem brotar de sua pele, como se Caelestis as tivesse plantado sob as cicatrizes.
Os olhos dela encontram os meus, e por um momento a serpente congela. Sei que não me vê como uma de suas vítimas. Quando olha para mim, tudo o que consegue enxergar é a pessoa que lhe deu a chance de conseguir algo imensurável, e lhe tirou a oportunidade de certa forma. No final do dia, sempre serei a pedra que ela não consegue arrancar do sapato, e pensar nisso me faz sorrir. Um sorriso largo, que não alcança os olhos ou demonstra qualquer sentimento além de satisfação.
Assim que Kaife faz menção de chegar até ela, eu me viro na direção de Icca, que reconhece meu olhar com um gesto de mãos, como que pedindo para que eu permaneça onde estou.
— Eu vou.
Icca pressiona os lábios carnudos em uma linha fina, mas Kaife permanece indiferente às minhas palavras, cada vez mais perto de seu objetivo.
— Fórzia — alerta Apza.
— Eu vou — repito, a determinação guiando a língua.
Desta vez, Kaife para ao ouvir minha voz. Caelestis apenas recua um passo quando as palavras alcançam seus ouvidos.
Posso sentir os olhos de Falena cravados em minhas costas, a atenção presa entre a minha figura e a de Caelestis. Mas ela não é a única a observar os acontecimentos. Quando olho por cima do ombro, Lavena ainda está com as mãos ao redor do braço da companheira, mas sua cabeça se move em um gesto afirmativo, como se me desse permissão para esfolar Caelestis nas roseiras afiadas.
Kaife busca por uma ordem de Icca, porém, apesar de não parecer querer uma guerra no primeiro dia de treinamento, o sorriso malicioso nos lábios de cereja não é capaz de sustentar a faceta pacífica, deixando nítido o divertimento da jovem.
— Deixe-a ir — diz, finalmente, e sua voz parece romper uma parede de vidro entre nós.
— Não — protesta Kaife. — Ela... Não! Ela veio para treinar, não para levar uma surra!
— Fórzia não irá machucá-la, não é, criança? — Icca me observa de esguelha, segurando as mãos na altura da cintura.
Me limito a balançar a cabeça em negação.
Kaife desaba em uma risada nervosa ao perceber minha resposta.
— A senhora não pode estar falando sério — diz ele para Icca, ainda com um sorriso sarcástico no rosto cheio de veias escuras. — Elas vão se matar!
Eu me sentiria ofendida pela forma como ele parece tão convicto, caso não soubesse que, de fato, é o que a maioria das almas presentes aqui pensa.
— Não seja tão dramático, garoto. — A amiga de Mavka abana o ar com as mãos manchadas, rindo da situação com cautela. — Fórzia não consegue ficar em pé por mais de dez segundos em uma luta, não é como se ela fosse uma assassina treinada.
Algo dentro de mim se sente fortemente atingido pelo comentário pesado de deboche, mas não permito que o sentimento vazio seja notado por qualquer alma além da que habita meu corpo.
Caelestis permanece imóvel, uma estátua entre tantas outras no jardim onde treinamos. Gavinhas perfeitas de névoa matinal envolvem seus pés, ondulando como uma fumaça opaca ao redor do corpo inerte.
A cada passo que dou em sua direção, ela se encolhe um pouco mais, se esforçando ao máximo para não demonstrar qualquer receio, apesar dos movimentos calculados e carregados de cautela. Os olhos verdes mapeiam os meus como se eu não passasse de uma folha de papel disposta à sua frente.
— Olá, cobrinha — sussurro, girando o bastão nos dedos uma única vez.
Caelestis evita me encarar por mais tempo que o necessário, focando em meus movimentos, provavelmente tentando prever um golpe antes que seja tarde demais para desviar.
— Não quero ver ninguém enrolando — grita Icca, batendo palmas acima da cabeça coroada por borboletas. Ela empurra Kaife para cima de Riselyth, o obrigando a formar uma dupla com a garota insuportavelmente irritante. — Vamos, vamos! Não temos o dia todo!
Aos poucos, o som de madeira contra madeira e corpo contra corpo preenche o ambiente novamente, reprimindo o silêncio com punhos de ferro.
Para a minha surpresa, é Caelestis quem ataca primeiro, me derrubando com um golpe no estômago, e pressionando o bastão contra meu peito. Ela se curva com dificuldade, apoiando as mãos na grama para não perder o equilíbrio, e os lábios quentes encostam no arco de minha orelha.
— Esperava um pouco mais de você, ratinha.
O sorriso de escárnio em seu rosto faz meu sangue borbulhar dentro das veias.
A imagem do Povo da Floresta nos perseguindo até o penhasco invade minha cabeça com um choque. O vestido de Pluvia sendo rasgado por flechas. As costas perfuradas de Daphna. A queda. O sangue. O isqueiro.
Golpeio sem hesitar, mirando a ponta do bastão no queixo pontudo da serpente traidora. Ela desvia com um reflexo impecável, todavia, a madeira pesa em minhas mãos quando atinge o nariz reto e o osso estala ao ser empurrado com força.
Uma trilha de sangue escuro contorna os lábios largos, se empossando no arco do cupido e escorrendo pelo rosto de Caelestis. Ela se encolhe, levando as mãos ao nariz quebrado no momento em que alguém grita entre os corpos em movimento ao nosso redor. Não sei dizer o grito foi de dor ou espanto, mas prefiro pensar que o ruído não possui qualquer relação com nossa luta.
Ela cospe o sangue que entra em sua boca, suportando a dor como se fosse apenas um corte de papel ao contornar o osso rubro com os dedos cheios de cicatrizes e suspirar.
— Vou precisar retribuir a gentileza, mas acho que você já sabe disso. — Um sorriso de escárnio se abre nos lábios molhados, mostrando os dentes vermelhos com o sangue amargo.
O joelho dela encontra meu pescoço, e por um momento me pergunto se ainda estou viva, então o bastão pesado beija meu rosto, e não sei em que parte de minha face a madeira toca primeiro, mas a dor lancinante que irrompe pelo meu crânio me faz parar por um instante, incapaz de me levantar ou sequer abrir os olhos.
Metal derretido molha minha língua, se partindo entre os lábios e escorrendo pelo meu rosto. Quando meus dedos alcançam a fonte da dor latejante, hesitam em tocar os ferimentos, mas chegam perto o suficiente para que eu possa vê-los pintados de um vermelho escuro e vivo ao colocá-los diante de meus olhos entorpecidos.
Consigo sentir cada osso de meu corpo reclamar do ar que entra e sai de meus pulmões.
Uma linha viçosa de sangue e saliva e dor se estica entre meus lábios e minha mão direita, brilhando à luz do sol como uma das cordas do destino, que me guiam novamente até o bastão.
Algo no modo como Caelestis me atingiu, quebrou uma parede entre os meus dois mundos – a vida emprestada e a morte penhorada. Com as pontadas ardentes que queimam atrás de meus olhos, e o sangue que escorre de meu nariz quebrado, minha visão se expande para um emaranhado de linhas finas e cordas bem amarradas, nós vermelhos como a minha alma.
Uma delas liga o braço de Caelestis e o bastão que a mesma empunha à minha barriga, e é quando a corda se afrouxa, desaparecendo no movimento ágil da serpente, que meus pés giram na grama, derrubando-a com um chute que faz meus joelhos tremerem.
As cordas continuam formando nós firmes, ao mesmo passo que se arrebentam em decisões descartadas. E são elas que me guiam entre os golpes de Caelestis, até que as flores de suas costas estejam despedaçadas em minhas mãos, e meu corpo sobre o dela no meio de uma roseira cujos espinhos e punhos não fazem exceções.
Seu corpo se encolhe sob o meu, as costas sendo cada vez mais pressionadas contra as pontas afiadas e os dedos sem vida que habitam entre as flores. Não me deixo levar pelas vozes abafadas e os gritos enfurecidos de Kaife, ou pelo som de ossos se partindo abaixo de mim. A raiva entalhada em minha alma não permite que eu me distraia com as ordens que Icca ruge na minha direção.
O rosto de Caelestis é um caos vermelho, com sangue empoçado entre os olhos, transbordando da boca entreaberta. Ela não tenta me derrubar, não luta contra isso. O sorriso de dentes sangrentos que se alarga em sua face é o bastante para que eu saiba que qualquer golpe meu, é um favor para ela.
Mas, apesar da recusa em resistir, ela recua a cada toque direto. A minha pele contra a dela, a assusta, faz com que o sorriso vermelho diminua entre as feridas. Fora muito machucada enquanto dividia gritos com Daphna e as outras garotas, perfurada e destruída de formas que sou incapaz de imaginar sem que meu estômago testemunhe um furacão. De todas as coisas que lhe tiraram no Fosso, a repulsa ao toque foi a única que ela ganhou.
As pupilas dilatadas me abominam, se abrindo mais a cada segundo desperdiçado me observando. Medo dança no abismo que engole as íris verdes. Medo de verdade, um pavor genuinamente esculpido e cravado na alma. Construído a partir de cada mão que traçou um caminho sem volta por seu corpo.
Eu precisava ver esse medo. Para entender. Nenhuma dor – física ou emocional – é capaz de fazer de Caelestis um anjo, inocentando-a de todas as coisas horríveis que ela nos fez passar, todas as vidas que ela tirou com o barril de pólvora que ajudei a acender. Mas eu precisava ver. O trauma rasgado e pregado em cada centímetro de seu corpo e mente – o fragmento estilhaçado que, apesar de ter nascido no gelo, desperta o calor da raiva penosa que queima dentro de mim.
Caelestis é uma assassina. Um monstro frio e calculista que costumava se esconder atrás das asas angelicais, e agora tenta fazê-lo com as novas – feitas de flores coladas às suas costas, como se as pétalas pudessem substituir as penas. Ela é um demônio que mesmo o Desconhecido rejeitou ao permitir que continuasse viva. Com a influência que possuía na floresta, fez com que eu e meus amigos vivêssemos cada um dos círculos do inferno, em um curto período de tempo entre o ferro e o fogo.
E mesmo tendo escapado de seu próprio inferno, continua voltando para lá todas as vezes em que é tocada diretamente.
Eu nunca vou perdoá-la por todos os horrores que vivi sob sua liderança na floresta, e ainda assim, não suporto a idéia de odiar alguém que sequer se dá ao trabalho de se levantar, depois de ser reduzida à cinzas tantas vezes. Porque, apesar de serem histórias e traumas diferentes, a minha dor possui um laço antigo com a dela, considerando que eu não queria mais viver quando deixei que a água entrasse em meus pulmões.
Não posso mais fazer isso. Não consigo odiá-la com a mesma força que antes.
Nunca serei capaz de entender o que ela sentiu quando estava presa no Fosso. A sensação de perder o próprio corpo, de habitar em uma casca que fora invadida tantas vezes e quebrada além dos limites da dor humana. Não conheço a dor dela, mas conheço a dor, o sentimento de desespero que nunca deixa o peito, até que seja substituído por outra coisa pior. Eu conheço isso.
A dor possui muitos espectros. Espaços diferentes para pessoas diferentes. Categorias infinitas de sofrimento eterno. Não sei em que parte disso ela se encontra, mas sei que, apesar de serem salas intermináveis, cada uma delas pertence ao mesmo estado de agonia – uma que nunca desaparece, independentemente de quanto esforço é usado para arrancá-la de si. E eu faço parte disso. Desse emaranhado de cordas vermelhas e nós reforçados. Esse é um caos que se enraizou em minhas veias há muito tempo, e já perdi qualquer esperança que um dia tive de cortar os ramos, tão crescidos que não sei mais diferenciar o começo do fim de seus galhos.
Caelestis é a pior pessoa que já cruzou meu caminho em toda a minha vida. E ainda assim, odiá-la significa odiar a mim mesma.
— Faça — ela tropeça na língua, se engasgando com o próprio sangue. — Nós duas sabemos que é o que você quer.
As pálpebras cobrem parcialmente os olhos. Sem a força necessária para mantê-los abertos, mas se recusando a mantê-los fechados por mais que alguns segundos, ela cospe o sangue que se empoça ao redor da língua fina.
— Venha. — A palavra sai como uma pedra, praticamente caindo de minha boca amarga.
Quando a solto, finalmente saindo de cima de seu corpo, e estendo a mão para a figura maltratada entre as unhas fúnebres e espinhos, os olhos de Caelestis se obrigam a duvidar de minhas intenções, assim como de sua sanidade, provavelmente. Contudo, ela agarra minha mão após alguns segundos de contradições.
— Você quebrou minha costela — diz ela, baixinho. A voz não passa de um arquejo rouco.
O rosto de Caelestis se contorce conforme eu a puxo para cima, sem me importar minimamente com os danos que causei aos ossos da mulher.
Só então permito que meus olhos percorram o ambiente ao nosso redor, os rostos e os corpos inertes que nos cercam como pedras – alguns, aliviados, outros, furiosos. Entre a raiva e o desgosto, Icca é um enigma perigoso. Sem demonstrar qualquer emoção, boa ou ruim, em relação ao caos no qual empurramos uma à outra, ela se limita a observar os danos causados por nosso acerto de contas, focando mais em meu nariz torto e sangrando, do que nas costelas quebradas que impedem Caelestis de ficar ereta, ou minimamente em pé.
— Eu duvido — arqueja a figura maltratada, abraçando o próprio corpo em uma posição entre estar em pé e sentada no chão — que teriam te punido, se tivesse me matado.
— Isso não significa que somos amigas. — Limpo o sangue de minha bochecha com as costas da mão.
Caelestis apenas ri – uma risada fraca, entrecortada pelos arquejos de dor, tão baixa que penso ser um truque de minha mente.
— Ah, eu odiaria isso tanto quanto você.
Assim que as palavras escapam por entre os lábios sangrentos, minha rival despenca nos braços de Kaife, que se apressa para acudir a jovem mulher, as veias escuras ainda mais saltadas de preocupação. Caelestis é uma peça perigosa em um jogo perigoso, de fato. Um demônio à procura do paraíso. Mas Mavka acredita que, apesar de toda a frieza calculista, ainda existe uma chance para a redenção, e deixá-la morrer aqui não irá agradar a deusa, apesar de não deixar ninguém desolado com a partida.
— Estão dispensados — Icca não parece feliz ao dizer as palavras.
Uma onda de suspiros cansados destronca o silêncio. Os bastões são soltos, se transformando em raízes e gavinhas perfeitas ao atingirem o chão, fazendo parte dele. Talvez Icca seja uma feiticeira, no final das contas. Mas o truque contorna o ar ao nosso entorno com o perfume de narcisos queimados e ameixas frescas – o mesmo que exala de todos os feitiços de Mavka, sua marca registrada no mundo da magia.
Ao passo que meus colegas se dispersam com o alívio estampado nos rostos exaustos, Icca caminha como um furacão escarlate na minha direção, a barra comprida do vestido justo farfalhando na grama verdejante.
— Isso não se estende a você — declara, baixinho, a mão se fechando ao redor de meu braço com uma força descomunal. — Preciso ter uma conversa com alguns de vocês.
— Está me machucando — reclamo, tentando me libertar de seus dedos apertados.
— Eu sei. — Ela aperta mais, cravando as unhas vermelhas na minha pele como estacas.
Não sei se ela está tentando me punir pela desobediência, ou apenas sendo cruel. Mas só consigo focar na dor lancinante que irrompe pelo meu braço, navegando entre os nervos.
Icca se prende aos meus olhos, enxergando os ossos que existem por trás dos globos com as íris azuis como o fundo do oceano, expandindo o campo de visão para além do anel carmesim que envolve minhas pupilas, afogando o mar em sangue. Ao menos o tom avermelhado esconde o dano de verdade. O sangue que se derrama pela íris do olho direito.
Antes era apenas uma manchinha que eu sequer me dava ao trabalho de reclamar, pois já sabia que era obra de Clément. O ritual na Iglaevi, todavia, com o ouro que banhou minhas órbitas e atingiu minha alma, fez com que o pequeno ponto rubro se transformasse em algo maior, como um pincel sujo de tinta carmesim sendo lavado em um copo com água. Às vezes é difícil enxergar qualquer coisa sem que uma cortina rosada filtre a visão.
Sinto que Icca pode distinguir cada célula do meu corpo, ouvir cada batida ressonante do coração que pulsa em meu peito.
Quando as unhas pontudas rastejam para fora dos buracos em meu braço, o sangue nos dedos dela se mistura ao esmalte vermelho, e me pergunto se a escolha do tom não fora feita para momentos como esse. Um suspiro pausado pende nos lábios cheios, acompanhado de um balanço negativo de cabeça.
— O Grão-Erio da Chama Crescente realmente possui um talento para reconhecer jóias raras.
— Está falando de Vikare?
— Ele viu a Marca, criança. É por isso que ficou tão interessado em você.
— E suponho que não vá me contar sobre essa maldita Marca.
— Maldita, de fato, minha querida — concorda ela, com um riso de escárnio irrompendo por entre os lábios. — Dor, é o que a Marca significa. Você não possui idéia do quanto isso te torna poderosa em uma arena.
Não consigo evitar estalar a língua com um sorriso odioso.
— Estamos pisando na terra da dor, todos aqui possuem isso. Não é algo raro neste lugar.
— Não zombe de minha percepção, criança. Qualquer tolo pode enxergar que ninguém passa pelo portal sorrindo de orelha a orelha. O que quero que você entenda, é que algumas dores são maiores que outras. A Marca sabe de todos os infernos pelos quais você já passou, e ainda passará, até o dia de sua morte. Imagine-a como uma prisão, de certa forma, te prendendo entre duas paredes de fogo. Ela te cerca, reforçando a dor do passado e guardando a do futuro, se acentuando sobre suas cordas como uma camada limosa e escorregadia.
— E como me livro dessa coisa?
Icca contém uma risada, mas o som da gargalhada morta me faz querer explodir em cinzas.
— Algumas pessoas tentaram, você deveria perguntar à elas. Se souber como se comunicar com cadáveres há muito apodrecidos, é claro.
— Então, eu estou amaldiçoada? — Toda a esperança restante em minha voz se esvai com a pergunta cuja resposta já possuo.
— Eu diria marcada — observa. — Mas, para o bem ou para o mal, a resposta é sim. Receio que o inferno de seu passado não ficará isolado para sempre. Novos demônios o habitarão, em um futuro não tão distante.
Creio que esfregar uma faca em meus ossos não vai ajudar em nada, então.
— Que conversa mais agradável.
Icca desliza a mão por meu ombro, e o tecido fino se move sob seus dedos, acompanhando o movimento singelo.
— Isso não é apenas sobre dor, Fórzia. É sobre transformar tudo o que você enterrou dentro de si, em algo maior. Algo melhor.
— Ótimo — resmungo. — Estou destinada a viver o inferno mais uma vez. É por isso que Vikare propôs que eu me juntasse aos guerreiros, não? Ele pensa que essa coisa pode me tornar imbatível, ou algo do tipo.
Fechando os olhos, Icca esfrega as têmporas, os lábios lentamente deslizando em uma risada engraçada.
— Nem em cem anos, você seria imbatível, criança. A Marca te dá a chave para usar a sua raiva em algo que importe, seja isso uma luta em uma arena ou um combate de guerra. Mas não te torna invencível. Você ainda é apenas uma humana, criatura tola.
— Mas ela me dá uma vantagem, não é?
A amiga de Mavka confirma com a cabeça, e uma borboleta se acomoda no topo de sua cabeça.
— A Marca afeta os pesadelos. Você deve ter percebido isso na arena. Para aquelas criaturas, a Marca é como um farol, ela os amedronta com a mesma intensidade que os atrai. É um jogo perigoso, cujas peças ficam a seu favor, querida. E... bom, ela pode não te tornar invencível, mas serve como uma armadura às vezes, permitindo que você vá além dos limites de um humano comum. É como se você possuísse dois corpos, e os danos se distribuíssem entre ambos para amenizar o impacto. Acho que pode se considerar com duas vidas, garota. É por isso que quero treinar vocês separadamente.
— "Vocês"? — pergunto, juntando as sobrancelhas em uma única linha.
— Não seja estúpida, você não é tão rara assim. Afinal, aqui é a terra da dor, não é? você é uma safira, certamente, mas essa ilha está cheia de outras com o mesmo brilho. Uma semana, é tudo o que eu preciso para separar vocês das pedras comuns, e então trabalharei apenas com a lapidação das jóias.
— E os outros?
— Eu não saí do continente sozinha, garota. Mavka convocou pessoas diferentes para ensinarem coisas diferentes. Meu trabalho é treinar os marcados, lapidá-los até que se tornem guerreiros de verdade. Assim que eu separar vocês, os demais ficarão sob a responsabilidade dos outros instrutores.
— Caelestis está marcada?
O que realmente quero perguntar, é se vou precisar vê-la todos os dias sem pular em seu pescoço. Mas me controlo para suprimir o sentimento.
— Não posso afirmar que sim, e também não posso negar que há algo intrigante na figura enigmática. Mas, de qualquer forma, não irei permitir que você desperdice a sua marca.
— Eu mal consigo segurar uma arma.
— Mas conseguiu quebrar alguns dos ossos de Caelestis com um bastão de madeira, não conseguiu? Querendo ou não, precisaremos de toda a ajuda possível para defender esse lugar, Fórzia. Em uma guerra, um único soldado pode ser a diferença entre a vitória e o fracasso.
Analiso minhas opções com cautela – mesmo sem possuir muitas escolhas, já que aparentemente Icca não desistirá tão fácil da tal marca que prevê minha desgraça. Eu poderia desistir de tudo agora mesmo, largar minha vida aqui e construir uma nova em Celetrial, ou em qualquer outro lugar do continente, longe do perigo que causo à Apza e do juramento que obriguei meus amigos a fazerem. Mas estaria sendo covarde e desonesta, além de que eu nunca conseguiria ficar longe das únicas pessoas que sustentam meus pilares todos os dias, e não posso abandonar Eden. Não posso deixá-lo para trás como fiz quando cruzei a fronteira.
Tenho medo de falhar. Medo de não ser boa o bastante, e acabar decepcionando Icca, ou até mesmo Mavka. Mas, por outro lado, não tenho nada a perder. Quanto mais tempo eu passar treinando com o time especial de Icca, mais tempo longe dos olhares vigilantes ficarei. Mal consigo ficar sozinha por mais de cinco minutos em paz, e preciso estar acompanhada todas as vezes em que decido sair de casa. Talvez, ficar um tempo longe da proteção excessiva de minha família seja a escapatória da qual eu precisava tanto, e, agora, só preciso dizer que aceito.
Ainda precisarei participar de outras aulas, provavelmente, e nelas não estarei livre de Caelestis ou dos olhos atentos de Pluvia, mas ao menos não precisarei ser monitorada por algumas horas – mesmo que durante esses momentos de liberdade eu precise sangrar e gritar.
— Quando começamos? — digo, finalmente.
Um sorriso vitorioso e cheio de elegância molda os lábios de Icca, esticando o rosto sofisticado com uma alegria contida.
— Vocês ainda treinarão juntos, por enquanto, mas assim que eu conseguir encontrar a Marca em outros refugiados, os treinos serão devidamente separados e ajustados.
— Ótimo.
— Agora, está dispensada, criança. Vá para casa e descanse, amanhã lidarei com o seu castigo.
— Castigo? — Minha voz sai com um ruído amargo.
Agora que meu sangue não se presta a ferver com a adrenalina, o menor piscar de olhos ascende a dor que se espalha pelo rosto maltratado. O nariz quebrado vai me render mais restrições e sermões do que sou capaz de suportar sem explodir.
Icca apenas sorri – um sorriso malicioso que me faz querer recuar.
— Caelestis pode ser uma traidora de caráter duvidoso, mas o tempo que passou naquela prisão ainda a assombra, Fórzia. Não cabe a você puní-la por algo que ela já foi condenada.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
FantasiPLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...