Sinto falta de acordar com uma abelha passeando pela minha cara, ao ser tirada da cama pela ventania que invade meu quarto com a permissão de Eden.
— Você pintou a moldura da janela. — Não é uma pergunta, mas ele parece esperar por uma resposta conforme passa os dedos sardentos pelas vinhas vermelhas que criei por cima da tinta esverdeada.
Ao meu lado, Edmond estremece com o frio que ondula pelo cômodo, e pressiono minhas costas contra seu peito. Em resposta, seus braços me apertam um pouco mais.
— Eu pintei o teto. — Minha voz não passa de um grunhido preguiçoso. — E você ainda se surpreende com uma moldura.
Sem me dar ao trabalho de manter os olhos abertos, me limito a mergulhar a cabeça sob as camadas de cobertores quentes e agradáveis, acompanhando os passos ruidosos de Eden com os ouvidos.
Com uma risada esganiçada, ele pula na cama como uma criança agitada, me puxando para fora dela – para longe do calor de Edmond e das cobertas macias. Agradeço em silêncio por não estar completamente nua, quando Eden me derruba no chão gelado e lhe dou um soco nas costelas antes de cair com o braço sob o peso de meu próprio corpo.
Edmond estica a mão para fora da cama, tentando me alcançar com os olhos ainda fechados. Ao perceber que não vai conseguir me puxar de volta para debaixo das cobertas, ele apenas atira um travesseiro contra Eden, que desvia do objeto segurando uma risada.
— Por que você é assim? — indago, cambaleando até a janela para fechá-la. O florista engancha o braço no meu, a manga da camisa roçando contra a minha pele.
— Incrível? — responde ele. — Único? Inteligente?
Desta vez, Edmond não erra, acertando um travesseiro rechonchudo no rosto sardento, com tanta força que a cabeça de Eden se inclina um pouco para trás.
— Um idiota — declaro, me soltando.
— Escolha interessante de palavras, mas creio que só você pode responder isso, não?
Agora, sou eu quem lhe derruba com um chute, e agradeço mentalmente pelos treinamentos pesados. Se o Povo da Floresta decidir não nos atacar por pena ou gentileza, ao menos terei alguma utilidade para os golpes que possuo guardados.
— O que você quer?
— Você não contou a ela? — O florista cerra os olhos, encarando Edmond com um desgosto ensaiado, uma expressão tão fingida que me faz lembrar da peça de teatro que me custou um bom tempo de castigo quando criança.
— Eu estive ocupado.
— Não me diga.
Eden se levanta com um gemido de dor, esfregando os quadris magrelos com as mãos sardentas.
— Ainda estou aqui, caso tenham se esquecido — reclamo, me apoiando nas constelações pintadas na parede. Sequer me incomodo com o vento frio que domina o quarto aos poucos. — Vocês vão me contar o que está acontecendo, ou precisarei descobrir sozinha?
— É o solstício de inverno, idiota.
Meu cérebro ainda trabalha para absorver a informação. Olho para a nevasca branda, porém impiedosa que faz o ar cantar além da janela, tecendo camadas de gelo no topo das árvores e roubando a cor do refúgio. Sem as flores vislumbrantes e a paleta de cores primaveril, Rosetrum se torna uma terra estranha aos meus olhos, quase desconhecida.
O último aviso se manifestou uma semana atrás. Parecia mais um dia comum, até perceberem que a água se transformava em cinzas quando retirada do lago, ou simplesmente cuspida por uma torneira. Tentaram de todos os jeitos, mas o líquido se transformava assim que era ingerido ou tocado, retornando ao estado normal apenas ao ser devolvido ao lago ou jogado ralo abaixo. Tivemos de esperar até o alvorecer para tomar um simples banho.
As nevascas começaram logo depois, e contei cada dia gélido como um prego a menos em meu caixão. Em algumas horas, vou estar livre, pulando de alegria com um acordo revogado, ou descansando em um casulo de flores prestes a ser queimado.
No Folieci, quando hesitei com a pérola na boca, tinha certeza de que eu não sobreviveria mais um mês sequer. Agora, estou a poucas horas de alcançar uma resposta para o meu futuro.
Sinto como se eu estivesse diante de uma porta trancada, girando a chave dourada nos dedos manchados, sem permissão para abri-la. Posso apenas espiar pelo buraco da fechadura, mas enxergar o que existe do outro lado é quase impossível, pois a imagem muda conforme as possibilidades aumentam. Então espero, agarrada à chave, ansiando pelo momento em que poderei girá-la na fechadura.
— Todos estão ocupados demais para te manter em uma gaiola, Ophelia.
O apelido me trás memórias de uma vida antiga. É estranho pensar que, apenas alguns meses atrás, eu sequer conhecia Edmond ou todas as pessoas que se tornaram minha família. É ainda mais estranho, saber que eu me tornei uma órfã fugitiva da noite para o dia, e tenho fugido desde então. Mesmo em Rosetrum, mesmo com Clément longe e minha liberdade cada vez mais perto, perceber que nunca deixei de correr faz minha garganta formar um laço.
— Tenho certeza de que vocês ainda podem manter os olhos em mim enquanto penduram ramos de visco nas janelas.
— Podemos, sim — concorda Edmond, a voz rouca e ainda sonolenta. — Mas eu os fiz prometer que não vão.
— Como? Por quê?
Ele descansa a cabeça sobre os braços cruzados na cama, o cabelo bagunçado caindo sobre seus olhos como uma cortina arenosa disforme.
— Você não tem pesadelos há semanas, meses. Ninguém te vê zanzando por aí desacordada durante a noite.
— Dessa parte, pelo menos, você parece ter cuidado pessoalmente — comenta Eden, limpando a garganta.
— Sério? — Eu o encaro, tentando não rir de como as sardas parecem se mesclar com a vermelhidão de seu rosto.
A risada preguiçosa de Edmond arranca de Eden a que ele estava tentando segurar, mas me limito a sorrir enquanto atiro um travesseiro no rosto de cada.
— Também concordamos que estaríamos arriscando nossas próprias vidas, caso não te deixássemos ter um tempo sozinha — diz, o cabelo vermelho oscilando com o vento cruel. — Fora que não suporto mais te ver emburrada pelos cantos.
Não preciso explicar os vários motivos pelos quais eu estaria certa em me revoltar com essa situação, mas, de certa forma, entendo o que fazem. Se um deles estivesse em um acordo com uma alma perturbada, eu faria de tudo para garantir que não precisaria perdê-los.
De canto de olho, percebo Edmond abaixando a cabeça. Ele sabe o quanto me machuca ser vigiada o dia todo, como se não confiassem mais em mim – e, se eu ousar admitir, não confiam mesmo.
— Um dia inteiro. — Testo o sabor das palavras em minha boca; doces e esperançosas. — Sem olhares tortos ou restrições?
Eles assentem ao mesmo tempo, e o eco de movimentos me faz rir, com uma felicidade sútil que supera o frio ao meu redor.
— Seu primeiro dia de liberdade, considerando que amanhã você talvez já esteja livre — murmura Edmond.
— Porém — interrompe Eden —, se você não se sentir bem, ou algo acontecer durante o dia...
— Não posso esconder nada de vocês — bufo. — Eu sei.
Manter uma informação importante pode acabar machucando alguém, compreendo isso mais do que gostaria. Aconteceu antes, com meus pais. Com Ivanka. Não posso me dar ao luxo de cometer os mesmo erros, mesmo que pareça a coisa certa a se fazer, quando a chance se manifesta. É inevitável, sempre pensarei que posso mudar o resultado final, mesmo tendo visto as consequências tantas vezes.
Oscilo entre os dois rostos diante de mim, procurando por uma confirmação. Quando ambos balançam a cabeça de leve, exibindo sorrisos fracos, porém carregados de ternura, já estou calçando as botas corredor afora.
Edmond me joga um casaco às pressas, que vem deslizando pelo piso até meus pés. Mal termino de vestir a peça de inverno antes de chegar à cozinha aos tropeços. O frio ainda bate em minhas pernas conforme avanço na direção da porta, mas sequer me importo com a temperatura congelante que mergulha o refúgio em um inverno impiedoso. Sempre odiei o calor, talvez seja hora de abraçar os flocos de neve e ignorar meus dentes se batendo uns contra os outros, afinal, pelo menos não estou derretendo sob um sol escaldante.
— Acordou cedo — nota Veuria, acendendo as velas de um candelabro sobre a mesa.
A cozinha está um caos muito interessante. As janelas foram decoradas logo pela manhã com ramos de azevinho e velas acesas, cujas chamas dançam em resposta à nevasca que cai lá fora. A mesa é um palco de madeira para as inúmeras receitas sendo preparadas, assim como galhos de pinheiro e pinhas ainda cobertas por camadas finas de gelo.
Pluvia e Macaire vão de um lado para o outro, deslizando com os pés descalços – exceto pelas meias coloridas – pelo chão da cozinha. O forno se abre e fecha com a mesma rapidez que Falena descasca as batatas no canto da mesa, ao lado de Fierce, que come uma maçã sem se preocupar em ajudar, usando a velha adaga para desenhar na casca rubra.
Murnia ainda deve de estar na cama, mas não me dou ao trabalho de perguntar, conforme abro a porta esverdeada, permitindo que o vento faça seu trabalho.
— É meu último dia — respondo, simplesmente. Eles sabem o que quero dizer.
Hoje é meu último dia, de todas as maneiras possíveis. O último dia antes da ressurreição da deusa. O último dia antes de eu possuir uma resposta para o meu futuro. Antes de tudo mudar. E pretendo gastá-lo até o último segundo.
Não sei se vou estar aqui para o próximo alvorecer, pois tudo pode acontecer hoje. Nenhuma possibilidade é descartada. É por isso que pretendo fazer tudo o que tiver vontade.
Ainda descascando as batatas, Falena parece fazer um imenso esforço para manter os olhos longe de mim, conforme afunda a lâmina da faca cada vez mais fundo nas bolotas desbotadas. Fierce tenta ser indiferente, mas percebo seu pé sob a mesa ocupada, apertando o dela contra o chão com um esforço que faz seu joelho tremer sob a calça escura. Imagino que os dedos da caçadora devem estar sendo praticamente esmagados, mas ela não reclama, descontando toda a dor nas batatas que corta como se fossem suas piores inimigas.
Quando termino de abotoar o casaco de couro com forro de lã, Fierce me joga uma maçã escarlate, que atravessa a cozinha até minhas mãos em um trajeto quase reto. Ele me lança uma piscadela amigável, forçando um sorriso mais penoso que animado antes de eu desaparecer nos galhos congelados do carvalho e deslizar até o chão.
Meus pés afundam na neve fofa, e sequer me importo com o frio. Apenas abraço o vento gélido que perfura minha pele, mostrando a língua ao olhar para trás. Não por raiva ou ressentimento, mas pelo puro prazer de fazer algo sem ninguém por perto para me censurar. E, sem olhares inquisidores para me acompanhar, enfrento o solstício de inverno com um sorriso infantil no rosto, correndo como uma raposa pela floresta congelada.
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Crimson Hauntings and Oath Shadows - CHAOS (Concluído)
خيال (فانتازيا)PLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e denuncie! Portas secretas não levam a becos se...