Epílogo

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A mulher de quase sessenta anos batia o sapato alto preto, inquietamente, sobre o piso do palco. Mesmo estando atrás das espessas cortinas vermelhas, ainda podia sentir todo o olhar da plateia do outro lado. Um olhar repleto de expectativas para sanar todas as suas dúvidas. Ela mordeu nervosamente o lábio inferior, tingido por um batom vermelho que contrastava com a sombra clara em seus olhos junto com um sutil delineado. O seu vestido de seda vermelho descia como uma cascata, arrastando-se pelo chão de forma majestosa. A fenda até metade de sua coxa deixava exposto a pele morena. O longo cabelo negro preso em um coque profissional com algumas pedrinhas brilhantes entre as mechas.

Um homem de idade semelhante colocava-se ao seu lado. Ele era alto e o cabelo jogado para trás com gel, mas uma mecha teimosa escorregava por sua face. O olhar castanho focado no horizonte antes desviar para a mulher, arqueando a sobrancelha.

— Nervosa, amor? Nós sabemos que você se sairá bem.

Ela hesita. O seu olhar foca na equipe técnica arrumando o jogo da luzes que, logo, seria usado em sua entrada.

— E se eles possuírem críticas negativas?

— Faça como o seu pai, mande todos se foderem. — ele comenta com uma breve risada, aliviando o clima pois a sua esposa não contém o riso. — Não é assim que ele faria?

— Sim. O meu pai vivia dizendo que o nervosismo é para os fracos, mas eu e a minha mãe sabíamos que era apenas uma desculpa para si mesmo.

— E funcionava?

A mulher dava nos ombros.

— No final das contas, o que realmente importava era a sua coragem de enfrentar tudo por sua família.

— E essa foi a sua inspiração para o livro.

Ela abaixou o olhar para o exemplar em suas mãos e, involuntariamente, um sorriso surgia em seus lábios.

— Sim. Ele me apoiou em meu sonho e me financiou em todos aqueles romances fracassados até esse ter dado certo.

O seu marido pensou em comentar sobre a força de vontade dela, mas um membro da equipe técnica anuncia a entrada de ambos. Os dois se entreolham antes de assentirem à espera da convocação oficial. O apresentador do outro lado gesticulava para a plateia e aponta em direção a um canto pouco iluminado do palco.

— Agora, teremos a honra de uma entrevista exclusiva com Lucy Yamir, filha de um dos grandes empresários do mundo e, também, dono do maior restaurante do Japão. Ela é autora do livro "O filho perfeito", contando a história do seu pai até alcançar o renome na culinária.

O som dos aplausos era ensurdecedor mas, por sorte, a mulher conseguia ouvir os próprios pensamentos. Ela entrou no palco segurando a mão do seu marido e acenando com um sorriso. As pessoas, a maioria fãs de sua obra recente, gritavam animadas. Lucy sorria um pouco sem jeito, sentando-se em uma cadeira no centro do enorme palco enquanto o seu marido se posicionava na outra ponta, deixando que o destaque fosse inteiramente para a escritora.

O olhar de Lucy busca conhecidos e, instantaneamente, relaxa ao encontrar a sua mãe na primeira fileira. O sorriso de orgulho dela resplandecia diante da iluminação do teatro. A filha corresponde com um aceno tímido antes de focar no apresentador que lançava algumas perguntas básicas antes de dar inicia à comitiva. Diferente do que a sua ansiedade a alertara, a entrevista correu perfeitamente bem e os seus fãs faziam perguntas que teve o prazer de responder.

— Por que esse título? — pergunta alguém da plateia.

Lucy abria um sorriso terno com brilho no olhar.

— Porque tudo o que o protagonista fez foi visando a perfeição, mesmo em seus momentos mais desesperadores. E eu o considero o filho perfeito por ter renunciado mais do qualquer um presente aqui poderia ter feito. Eu acho que a perfeição não está na falta de erros, e sim na forma como erramos. O meu pai sempre dizia que não há certo ou errado, apenas o necessário. Nós fazemos o necessário por aquele que amamos, certo? Para mim, esse é o conceito mais próximo da perfeição.

Ele assentia com a cabeça, satisfeito com a resposta antes de se sentar. O apresentador voltava-se para Lucy, questionando:

— E qual a mensagem desse livro, senhora Yamir?

Ela passou suavemente a ponta dos dedos pela capa dura do livro, fechando brevemente os olhos e permitindo que a nostalgia a invadisse por completo. Lucy recordou do abraço caloroso do seu pai, a forma como a barba dele fazia cócegas em sua face, a sua risada escandalosa e o brilho determinado nos olhos negros. Quando focou na plateia, disse com ternura:

— Falhar é aceitável. Às vezes, os erros são inevitáveis mas isso não pode te definir. Não podemos permitir que as pessoas nos digam que somos bons ou ruins; que meçam o peso dos nossos erros. Isso não os cabe. No final, o que importa são as nossas intenções, o que carregamos em nossos corações quando tomamos nossas decisões.

Outra chuva de aplauso ecoava pelo teatro e a mulher secava o canto do olho de forma breve, preparando-se para as próximas perguntas.

(...)

O seu marido a esperou pacientemente no carro. Lucy arrastava o longo vestido vermelho pela grama verde, passando entre os túmulos como se fizesse pouco caso do horário inapropriado para estar no cemitério. Em seus braços, havia um buquê de rosas vermelhas que foi carinhosamente depositado sobre uma das lápides ao parar diante da pedra fria. O seu semblante, até então terno, mudou para algo profundo. Os olhos já se encontravam marejados mas, ainda assim, havia um sorriso de felicidade em seus lábios.

— Nós conseguimos, pai. A entrevista foi um sucesso e todos amaram o enredo. — comenta depositando o buquê sobre o túmulo. — Eu ganhei essas flores da editora mas o senhor a merece bem mais. Afinal, a história é sua.

Lucy ajoelhava na grama macia, apoiando as mãos nas coxas e respirando profundamente.

— Eu sinto a sua falta desde que partiu, mas sei que continua cuidando de mim. Obrigada por ter sido o melhor pai do mundo e ter me apoiado em meus sonhos.

Ela apoiou a mão sobre a lápide onde estava escrito:

"A vida não é uma pergunta a ser respondida.

É um mistério a ser vivido.

Amado filho, pai e marido, Dinesh Yamir."

Lucy secou as lágrimas com as costas da mão, abrindo o seu melhor sorriso para tranquilizar o espírito do pai antes de se erguer. Então, ela deu as costas seguindo o seu caminho para fora do cemitério enquanto uma das pétalas caía sobre o túmulo. Uma brisa morna beijou sua face e, por um momento, sentiu o abraço caloroso do seu pai. Um sorriso involuntário se desenhou em seus lábios enquanto seguia em frente.

Lentamente, o seu corpo sumia no horizonte mas deixando na lápide os seus sentimentos junto com as flores. O orgulho e o amor combinavam bem com o vermelho das rosas.

O filho perfeitoOnde histórias criam vida. Descubra agora