20 ▪︎ O Preço de Um Resgate

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Ao chegarem ao escritório do pai, Susana arrumou o sofá cama e fez Werá carregar Cristiane até lá para que ela não tivesse que acordar de seu sono. Era estranho ver Werá tão cabisbaixo mesmo depois de Susana ter aceito a proposta de ser sua namorada de mentirinha, mas, como era de mentira mesmo, ela não tinha a menor intenção de perguntar o porquê de tamanho desânimo, isso era um problema só dele. "Se existe dança da chuva, então ele que faça uma dança da felicidade", e riu de seu próprio senso de humor questionável. Esvaziaram as gavetas cheias de processos, sindicâncias e documentos, colocou-os na mesa da secretária, para que ninguém as incomodasse pela manhã precisando de algum desses papéis. Despediram-se sem grandes firulas, até porque não havia clima para tais formalidades na madrugada pós incêndio criminoso. Werá estava realmente estranho, mas, para Susana, essa talvez fosse a reação de alguém que desafiou a morte para salvar a vida de outra pessoa, e isso duas vezes.

Quando o jovem deixou o cômodo, Susana trancou a porta do escritório do pai e sentou-se na mesa para observar a paisagem da janela, que nesse momento incluía um cansado e bisonho Werá, um estranho que não fazia piadas nem trocadilhos  ruins. Werá calado era um sonho de consumo, mas por que será que ela se sentia tão preocupada com esse desconhecido?

—Ele está estranho demais pra alguém que bancou o herói. Eu não sei, Su, mas tenho a sensação de que tem caroço nesse angu... — Cristiane declarou, mas não se deu ao trabalho de abrir os olhos — E eu sei que não foi o Augusto que ateou fogo na nossa casa. O olhar dele não era de um culpado. Eu assisto  Twin Peaks, Susana, eu não erro essas coisas.

Poucos segundos depois, a respiração pesada de Cristiane sinalizou que esta tinha novamente pego no sono. Susana sentia a exaustão no corpo, mas sabia que sua mente agitada não a deixaria dormir.  Permaneceu sentada na mesa e pensando sobre quase tudo, só tentou evitar os pensamentos sobre Augusto. Lembrou de Werá carregando-a para fora de casa, o olhar de preocupação no seu rosto e seu cabelo suado pelo calor do fogo... Por mais babaca que fosse, ele era sexy. Ficava menos sedutor quando abria a boca, mas era sexy.

O cheiro de queimado impregnado nas narinas de Susana fez com que a jovem desejasse tomar um banho. Durante seu breve diálogo consigo mesma, decidiu que era a melhor coisa a se fazer. Abriu uma das sacolas de pertences, pegou o que achava ser seu e se trancou no banheiro do escritório. Não se surpreendeu com a quantidade de produtos femininos no box, fez questão de usar todos como um ato de rebeldia contra o pai e suas simpatizantes. O cabelo comprido e repicado agora cheirava a frutas vermelhas e seu corpo banhado a óleo de cacau exalava um odor suave de chocolate. Sabia que agora a cheirava como uma sobremesa natalina, mas tudo bem, pois, em seu coração, se sentia vingada.

Voltou para a mesa e para seus pensamentos impuros sobre Werá. Talvez nem fosse tão ruim bancar a Cecília daquele Peri. Refletiu sobre os músculos aparentes quando este apareceu sem blusa na sala de casa... Deus, ela nunca se atentado pra isso, por que estava pensando assim agora? "Espera, que dia é hoje? Ah... malditos hormônios." Após concluir que seu ciclo menstrual atrapalharia suas reflexões naquele momento, resolveu tentar dormir. Falhou miseravelmente.

*********

Susana levantou-se bem mais cedo que o necessário só para não correr o risco de encontrar com o pai. Trabalhou a manhã inteira enquanto ouvia os comentários sobre o incêndio de sua própria casa. Os programas amenos da manhã mostraram fotos e vídeos dos bombeiros trabalhando e Susana se perguntou como foi possível essa gente toda ter estado lá e ela nem perceber. Mas, sem sombra de dúvidas, o mais chocante eram os comentários sobre seu possível caso com o cantor concorrente, Martín Rodriguez. Era a droga de um incêndio, mas estavam tagarelando sobre o que o rapaz fazia no local àquela hora da noite. Sério mesmo que uma idosa loira cheia de plásticas e um urubu falante achavam que estavam em condições de tratar da vida de alguém? De que importava o rapaz se tinham pessoas dentro da casa? Ela mencionou que foi um incêndio considerado criminoso e que vidas podem estar em risco? Patético.


À tarde, o ensaio foi exatamente como o padrão: comentários sobre a apresentação anterior, mostram a nova música, dividem quem vai cantar o quê e partem pro ensaio vocal. Como as apresentações também devem ter coreografia, depois de duas ou três vezes cantando, o grupo já começa a aprender os passos. Os ensaios duram cerca de 7 horas por dia, 6 dias na semana. É uma vida de cão, mas, não podia enganar a si mesma, Susana amava aquilo.

No fim da árdua segunda-feira, já dentro do carro, Werá permanecia calado.

— Tá bom, chega — Susana não aguentava mais de curiosidade — O que tá acontecendo?

— Nada, ué. Por que estaria acontecendo alguma coisa?

— Você está muito estranho. Parece até que foi você quem tacou fogo na casa.

Werá tossiu a água que estava bebendo. Depois desta pergunta, ele finalmente percebeu que sua autocomiseração o estava incriminando. Sabia que foi um acidente, fez o que pôde para salvar as meninas e ajudá-las com o que fosse preciso. Passou a noite em claro escrevendo uma carta para Apyká, seu melhor amigo, explicando a situação toda, ele saberia o que fazer e teria bons conselhos. Mas, agora, ele tinha um problema de pouco mais de 1,60 de altura, franjinha e grandes olhos esverdeados o encarando com um olhar inquisidor.

— Estou tentando me acostumar com a ideia de ter uma coisinha petulante que nem você como minha namorada. —  Werá respondeu se forçando a ter um tom zombeteiro.

— A ideia foi sua, babaca. — Susana deu um soco no ombro do rapaz — Tarde demais para desistir, eu preciso de dinheiro e você de visibilidade, teremos  tudo isso se fizermos direito. Vamos falar sobre as regras, ok? Primeira: ninguém pode saber que é mentirinha. Segunda: contato físico será restrito ao necessário para a farsa. Terceiro: para isso funcionar, teremos que andar juntos agora, o que não vai rolar se não formos amigos, mas apenas isso, não vamos envolver mais emoções do que o  exigido pelo público. Fui clara?

— Eu ia questionar sobre quem disse que você faria as regras, mas achei fofinho você passar seu tempo pensando em mim para elaborar esses limites. Beleza: Manter segredo, limites e distância segura. Acho justo.

— Mais uma coisa: se vamos mentir pra todo mundo, precisamos ser honestos pelo menos um com o outro. Eu não gosto da ideia de enganar ninguém, quero poder ser sincera pelo menos com você...

— Que meiguinha, Susana, não esperava isso da sua personalidade indomável.

— Cala a boca, pele vermelha. Eu estou falando sério! Se vamos ter um relacionamento, quero que você seja meu aliado, meu companheiro de missão. É só até a final. Temos um acordo?

— Até a final... — Werá sorriu  — Temos um acordo.



DICIONÁRIO:

 Twin Peaks: é uma série norte-americana de 1990 sobre a investigação do agente do FBI Dale Cooper a respeito do homicídio da estudante Laura Palmer, na cidade ficcional de Twin Peakks.

Cecília e Peri: são personagens da obra "O Guarani", de José de Alencar, em que um indígena e uma branca se apaixonam.

Autocomiseração: sentimento excessivo de pena de si mesmo.

Apyká: na crença tupi-guarani, é o pássaro sagrado que faz a passagem dos seres para o mundo espiritualapós a morte. Ele pesa as almas e julga quem deve ou não ser recompensado, mas, no caso, é um nome próprio.

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora