Susana acordou já ao entardecer, com o som de palmas no portão, mas mão quis levantar. Esperou sua irmã ir fazer as honras e atender quem quer que fosse. Ouviu a porta da sala abrir e a voz da sua irmã ser acompanhada por uma voz familiar numa conversa informal, mas nada tão convidativo que a fizesse querer sair da cama. Apenas esperaria ele ir embora como de costume. Susana não sabia dizer ao certo quanto tempo passou, mas notou que já era muito mais que a sua permanência normal. Esperou mais, mas ele realmente não ia embora. Talvez essa conversa fosse mesmo importante. Saiu do meio dos lençóis e desceu as escadas já olhando em direção ao indigesto visitante.
— Oi, pai.
O homem parado à sua frente parecia estranhamente mais velho desde a última vez que o viu. Tinha o rosto meio cansado, uma expressão torta. Pra ser honesta, Susana não se importava, mas sabia que essa careta horrenda é o que motivava aquela conversa longa.
— Susana, como está?
— Bem, como sempre. Já você tá péssimo. O que houve? — ela não se sentia na obrigação de tratá-lo bem, justamente por ele nunca fazer o mesmo.
— Eu estou preocupado com umas coisas e é por isso que estou aqui. Eu espero que você me entenda que o que estou para te dizer não é nada pessoal.
— Manda.
- A empresa está mal das pernas, Susana. Vocês sabem que eu nunca me importei em sustentar vocês, até porque ambas são menores de idade, mas agora o governo resolveu sacanear. Eu não sei se vocês entendem de política... Enfim, eu não vou conseguir repassar a mesma quantia pra vocês todo mês. Susana. Você é a mais velha e já terminou a escola. Nós dois sabíamos que esse dia teria que chegar. Você vai ter que começar a trabalhar.
Susana suspirou. Realmente, ela sabia que esse dia chegaria. Tinha visto nos jornais algo sobre uma crise, mas achava que a fase ruim daquele confisco da poupança em 1990 tinha passado. "Maldito Collor", era o que todo mundo dizia. Mas isso fazia tempo, ele já tinha sofrido o impeachment desde dezembro de 1992. Ela não sabia o que motivava a crise da vez, mas sabia pela tensão no ar que seu pai deveria estar com graves problemas. Sempre pensou que queria esperar resolverem essa questão da maioridade (tinha um debate rolando sobre reduzirem a maioridade para 18, mas, por enquanto ainda era aos 21) e depois começaria a correr atrás de um emprego.
- Suas tias têm um mercadinho no fim da rua de baixo. Elas ficariam felizes em ter você atendendo lá. - O pai sugeriu, com um sorriso amarelo. Ele sabia que ela odiara a proposta, mas era o que tinha de mais imediato, sem falar que o currículo da filha não era lá dos melhores.
- Tanto faz, acho que pode ser. Todo mundo começa por algum lugar, não é? Mas, pai, por quê não posso trabalhar na empresa com você? Eu sei que eu não sou advogada e tal, mas posso ser recepcionista ou algo assim...
- Essa vaga foi ocupada... a Rute está lá agora, você entende, não é?
Susana respirou fundo e se controlou para não dar uma bofetada na cara do homem, que mais parecia ser um rato, que se encolhia no sofá.
- É o seguinte: eu não dou a mínima pra quem você pega ou deixa de pegar, mas eu acho bom você deixar um documento muito explicadinho da sua herança, porque se qualquer vagabunda vier tentar pegar nossa herança, eu juro, eu taco fogo na casa dela.
- Isso não tem nada a ver, Susan...
-Está avisado! Passei a vida inteira apanhando da minha mãe e você era um merda omisso. Agora que ela morreu você está dando a herança dela pra qualquer uma! Eu não aguentei isso tudo pra nada! Demite a piranha!
- Susana, eu entendo você estar nervosa, mas eu não posso criar uma confusão na minha casa porque minha filha mimada não quer trabalhar pesado.
- Mimada??? Por quem?? Você é realmente um merda! Some da minha casa! Se você não vai mais nos dar nada, então não é mais bem vindo aqui. Minha mãe tinha razão quanto a você: não passa de um frouxo, patético, que não tem a menor responsabilidade ou afeto por nós. NÓS SOMOS A TUA FAMÍLIA, não essas biscates que você cata em qualquer lugar. SOME! E ENFIA O MERCADINHO NO TEU...
Antes que Susana terminasse a frase, Cristiane se levantou, pálida, e passou à frente da irmã. Tomou o pai pelo ombro e foi conduzindo-o pelo cômodo
- Acho que o senhor já disse o que queria, certo, papai? Vou te levar à porta. Muito obrigada pela visita. Pensaremos na proposta, ok? Boa sorte com a empresa.
Quando a porta bateu, Susana se jogou no sofá. Cristiane olhava pra irmã como se visse um monstro, estava apavorada.
- O que foi isso, Susana Carmo?
- Ele precisava ouvir! Honestamente, Cristiane, você acha isso justo?
- Você expulsou nosso pai da casa que ele mesmo construiu.
O silêncio que se iniciou ali deixou o clima pesado, ambas perdidas em seus próprios pensamentos. Foi Cristiane quem encerrou a atmosfera de velório
- Agora que estamos falidas, é um bom momento pra você pensar na possibilidade de ir mesmo pro High Note Show...
- Ah, vá à merda, Cristiane!
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It's (NOT) A Love Song
RomanceAnos depois de uma derrota humilhante em nível internacional, Susana recebe a chance de se redimir. Perder não é uma opção e qualquer falha é inaceitável. De volta ao programa de TV dos seus pesadelos, ela conhece Werá, um jovem indígena que só quer...