5 ▪︎ Ela É Demais

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Semanas se passaram sem que o High Note Show fosse mencionado pelas irmãs Carmo. A casa estava na mais perfeita paz, o que era estranho  considerando o caos anterior. Nada de anormal aconteceu nesses tempos, exceto uma ou outra ida de Cristiane à caixa de correio. Susana achou que a irmã estivesse esperando uma dessas revistas de adolescente, cheia de fofocas de famosos e um poster do Johnny Depp, então ignorou totalmente o fato.  Se fosse um pouco mais esperta, não teria deixado isso passar. 

Em um dia comum, como qualquer outro, Cristiane surge com um sorriso escancarado em casa. Não era propriamente feio, mas era estranho por ser totalmente inesperado. 

-DEU CERTO, SU!!! DEU CERTO, ELES ACEITARAM. - Cristiane dava pulinhos frenéticos pela sala de estar - VOCÊ FOI CHAMADA!! 

-Chamada pro quê, pelo amor de Deus? - Susana ficou em silêncio por uns segundos antes de entender - Oh não, não, 1000 vezes não!! Você não pode ter feito o que eu penso que fez. Se fez, como fez? 

-Fiz, eu fiz!! Inscrevi você no High Note, E VOCÊ PASSOU!! Não é maravilhoso? 

-Eu vou te matar, Cristiane!!- cada pulinho dado pela irmã deixava Susana ainda mais irritada e em choque. Tudo nesse momento parecia um grande absurdo - Como você fez isso? Eu não fiquei na fila, no sol, esperando ser chamada,  não passei pelos jurados, não me puseram num time! Eu não fui na emissora, eu jamais faria isso novamente! 

- Eu sei que não, oras, você é chata paca! Eu enviei uma fita. Eu escrevi uma carta fingindo que era você, disse que fui uma finalista da melhor edição do programa e que estava pronta para uma revanche daquelas, mas não poderia fazer o teste da forma convencional porque tinha desenvolvido pressão baixa e ficar de pé no sol me faria desmaiar. Eles amaram a ideia de uma vingança!! A carta tá aqui, leia, se quiser. - Cristiane empurrou um envelope branco com as bordas listradas que Susana nem se atreveu a tocar - Se estiver curiosa sobre qual fita eu mandei, vou dizer: Gravei você cantando Summer Nights aqui na sala naquele dia que você surtou e foi ver Grease. Além de hilário, foi um verdadeiro show de talento. Parecia total que você tava cantando pra câmera. Agora vou almoçar, essa pulação toda me deu a maior fome.

Susana subiu as escadas grunhindo daquele jeito gutural novamente. Será que a irmã não era capaz de entender que não era pelo dinheiro ou pela fama? Todo o problema era se expor de novo ao caos que sua vida virou. Seus anos na escola foram péssimos depois da derrota, afinal,  mesmo sendo finalista e não a vencedora, a mídia ainda procurava por ela às vezes, e todo mundo queria um pouco disso. Nunca teve uma vida social antes do concurso, sempre fora tímida e estudiosa, mas, depois, tudo virou caos. As meninas ricas e populares que antes tiravam seu sono por causa do bullying, magicamente passaram a ser sua companhia mais frequente fora da escola. Só fora. Porque dentro do colégio não tinham fotógrafos esperando qualquer aparição sua para publicar. Certo dia, Cláudia, a filha do prefeito convidou todo seu grupinho para uma festa na piscina, mas Susana chegou atrasada e acabou ouvindo as outras falando sobre ela. Nada que ela já não soubesse, mas foi doloroso ouvir: "Eu sei que ela é realmente um porre e que perdeu o tal concurso, mas é só até algum produtor notar a gente ou as pessoas esquecerem quem essa perdedora é. Depois ela volta pro cantinho de fracassada dela". Passou a evitar as tais meninas a todo custo, é claro, mas elas realmente estavam decididas a sugar tudo o que podiam da popularidade da "perdedora" em questão. Tinha um menino de outra turma, Augusto W., Susana sempre tivera uma queda enorme por ele, mas depois de ver que todo mundo só se aproximava para pegar carona nas fotos de revista, decidiu que não valia a pena nem tentar. Passou o resto do ensino médio tentando voltar a estar sozinha. Na rua, na escola, no mercado, em todos os lugares, as pessoas cochichavam sobre ela, apontavam o dedo, riam ou olhavam com pena. Às vezes, ela nem sabia se era de fato sobre ela, mas já estava acostumada a fugir. Na sua formatura, na sua vez de receber o diploma, tocaram Eternal Flame, a maldita música da final, só porque queriam vê-la reagir às provocações. Não sabia de quem foi a ideia, se dos outros alunos ou de algum jornalista engraçadinho, mas o fato é que ela não chorou, apenas fez o que deveria fazer e voltou à sua cadeira, ainda ouvindo os burburinhos. Seus pais saíram da cerimônia nesse momento e ela voltou pra casa a pé. 

Seus pais... Sua mãe não parecia ter criado muitas expectativas quando assinou a autorização para a participação de Susana no programa. Isso não a fez mudar sua personalidade desprezível, apenas fez com que as surras diminuíssem para que os hematomas não surgissem no meio das aparições na TV. Depois de perder, os espancamentos passaram a ser cada vez mais frequentes. Agora Susana já sabia que tinham a ver com sua mãe fazer uso de cocaína e outras substâncias parecidas, mas ainda lutava internamente com a culpa de fazer sua progenitora entrar e morrer nas drogas. Não tinha como aquilo não ser por sua causa. E seu pai, ela nem sabia o que dizer sobre ele. Lembrava de ser um bom homem, só era infeliz e imaturo. Assim como a maioria das pessoas, ele estava buscando sua felicidade, mas era fraco demais para fazer isso direito. Não se divorciava ou discordava da esposa porque daria muita dor de cabeça, então só fazia o que ela queria por uns dias e depois sumia para ir ver a mulher que realmente amava. Susana entendia, mas não podia dizer que o respeitava ou gostava dele. Era culpa sua também? Talvez. Sua mãe sempre disse que sim. Sempre disse, até morrer de overdose de entorpecentes dentro do banheiro da própria casa, com uma seringa presa no braço, as narinas brancas e a cabeça pendendo pra dentro do vaso sanitário. Foi Susana quem viu o corpo e chamou a emergência. Ninguém da família chorou no enterro. Foi um alívio geral, na verdade. Desde então, Susana via o pai às vezes, que era quando ele vinha buscar as contas para pagar e deixar dinheiro para que as duas sobrevivessem. Isso quando ele não optava por pegar as contas na caixa de correio e passar o envelope com dinheiro por baixo da porta. Sustentar as meninas não era um peso. Ele herdou tudo que Ana Carmo, sua esposa no papel, deixara. Agora Susana criava a irmã, era dona de casa e já fazia quase tudo que uma adulta deveria fazer. Não tinha mais tempo para sonhar com fama e fortuna porque, na verdade, não tinha mais forças para sonhar com nada. Estar viva já era decepção o suficiente.

Será que se dissesse isso pra Cris, ela entenderia? 

Não, ela sabia que não. Então se escondeu debaixo dos lençóis de sua cama e se propôs a dormir até que tudo aquilo sumisse do mundo real. 

"Eu não vou voltar a descer ao inferno"


Dicionário: 

Paca: gíria antiga para "pra caramba", ou outra coisa semelhante, que vocês conhecem, mas vamos manter o respeito porque isso é uma história de família (vix kk)

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora