8 ▪︎ Um Sonho de Liberdade

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A vida seguiu normalmente até que, poucos dias depois, foram encerradas as inscrições do High Note Show. Durante o dia todo, as imagens dos participantes foram exibidas nas telas de todos os estabelecimentos, inclusive na loja de eletrodomésticos do corredor em frente à sorveteria. Era uma loja mais adiante, mas as telas imensas dos aparelhos mais modernos tornavam possível que Susana assistisse tudo do balcão onde estava. Vários nomes e apresentações foram feitas. Mas seu nome não tinha aparecido até agora. "Sorte", pensou Susana,"quanto mais tempo demorarem para lembrar de mim, melhor". 

Em poucos segundos, Susana notou que comemorou cedo demais. Seu nome surgiu bem grande e em cores vibrantes no centro da imagem. Os comentaristas leram um trecho da carta que Cristiane enviara se passando por ela, enquanto seu vídeo cantando Summer Nights rodava numa tela ao fundo. A carta era algo bem infantil sobre merecer uma revanche, beirava o ridículo, mas, a julgar pelas suas dancinhas sendo expostas em rede nacional, parecia totalmente possível que aquela besteira tivesse sido escrita por ela. Notou que alguns olhares se voltavam pra sorveteria, mas, àquela altura, parecia ridículo reclamar disso. Internamente, agradeceu por dona Wanda ter tirado o dia de folga, os comentários dela seriam um saco. Talvez ela até pedisse pra fazer propaganda da sorveteria de graça. 

O vídeo atual foi substituído pelo antigo,o da final do High Note Show, de 5 anos atrás. As luzes, os flashes, os confetes... tudo ali parecia tão fantasmagórico, como almas penadas que voltaram para assombrar. O arrependimento caiu sobre Susana como um golpe direto na boca do estômago. A voz da sua antiga concorrente ressoou pelos auto-falantes da loja de eletrodomésticos e chegou aos seus ouvidos com um efeito muito maior do que pros outros. Teve medo. Lembrou-se de tudo que a impediu de continuar a cantar por tanto tempo. Respirou fundo. De novo. Contou até 10. Se apoiou no balcão. 

Uma voz familiar interrompeu seu surto. Augusto W, o menino da escola, estava ali, diante dela. As imagens e as lembranças deixaram Susana em parafuso. Ela não entendeu o que ele disse no início, mas parecia ser algo tipo "Você tá bem?". Com um movimento quase infantil, Susana sacudiu a cabeça com bastante entusiasmo, como se tentasse expulsar seus pensamentos de si. 

-Oi! Desculpe, foi apenas uma queda de pressão. O que vai querer hoje? - Susana se esforçou para soar normal, mas sua euforia em nada combinava com a primeira vez que atendeu o rapaz ali

- Susana, você tá bem mesmo? - Augusto parecia nervoso e preocupado 

- Tô sim. É normal, juro. Vai querer o mesmo da outra vez? O seu foi o sundae de morango, certo? - ela sabia que ainda soava estranha e que a resposta não tinha sido nada convincente, mas queria evitar ter que admitir que estava em pânico

- Pode ser. - ele apenas concordou e seguiu falando enquanto Susana colocava a calda no copo - Bacana você ter voltado ao show. Vi o vídeo hoje, você ainda canta super bem. Estarei torcendo por você. 

- Obrigada. - Susana entregou apressadamente o copo ao rapaz - Volte sempre, tá? - ele nem tinha saído ainda, mas entendeu que aquele não era um bom momento para ela, então se retirou sem questionar. Mentalmente, ela o agradeceu por isso.

O dia foi todo assim, muitos clientes perguntando sobre o show, dizendo que a reconheceram desde sempre, etc etc. Susana estava exausta, o movimento da sorveteria triplicou. Foi para casa aos frangalhos. 

Assim que abriu a porta, viu uma figura conhecida, mas que não era a de seu pai. Era a materialização de um velho pensamento, velho mesmo. O homem em seu sofá ainda tinha o mesmo sorrisinho da última vez que ela o viu, e a ideia de vê-lo tão próximo de sua irmã a fez arrepiar. 

- Susana Carmo! Quanto tempo! - o produtor do High Note Show estava ali na sala, agora em pé e caminhando na direção dela. Agora, tanto tempo depois, Susana já entendia a troca de olhares entre ele e Aline. Era um acordo. E Susana também sabia qual tinha sido a moeda de troca - Você está tão bonita! E permanece muito talentosa, devo dizer. 

- Antônio Dias. A que devemos a tua presença? - Susana não conseguiu disfarçar seu descontentamento, mas pouco importava 

- Nunca foi muito dada às conversas longas, não é mesmo, doçura? - as pontas dos dedos dele passaram pelo queixo de Susana num movimento que simulava um carinho - Bem, a questão é a seguinte: Você não tem autorização para participar do show porque ainda é menor de idade. Precisa fazer teu papai assinar este papel aqui e só então poderá fazer parte do evento. Sei que já te anunciaram, mas eu não posso fazer nada por você se este papelzinho não estiver na minha mesa até o fim de semana. 

- Sem problemas! O senhor poderia vir buscar? Seria melhor para nós. - Cristiane se antecipou, sabia que a resposta da irmã não seria tão positiva - Nós marcamos um dia e até  fazemos um jantar pro senhor. 

- Uma refeição tão bem acompanhado? Eu não posso recusar esta oferta. - os olhos do velho passaram pelos corpos das meninas e seu rosto fez transparecer o que passava em sua cabeça naquela hora - Nos vemos depois de amanhã, sim? 

- Por nós, está ótimo. Chegue depois das 20h, para que não passe tanto tempo esperando por Susana.  - Cristiane não aparentava saber o que o velho pensava sobre ela, mas Susana não diria nada na presença dele. 

Quando ele se foi, Susana tentou dizer à irmã o que tinha acontecido, mas foi interrompida por um simples e sério "eu já sei" de Cristiane. 

Na manhã seguinte, como era de se esperar depois da briga feia de Susana, Cristiane levou o papel consigo até a empresa do pai e o aguardou na recepção até ser chamada no escritório. 

- Pai, o senhor pode assinar esse papel pra excursão da escola pro museu de arte? 

- Claro, me dá aqui - ele pegou sua caneta e, como todo bom advogado, antes de assinar, leu todo o papel - Cristiane, nós dois sabemos que isso não é da escola...

- Eu sei, pai, - Cristiane enrubesceu - mas Susana não queria que eu falasse sobre isso. 

- Eu assino. - ele sorriu, riscando sua assinatura em todas as linhas marcadas no documento- Orgulhosa como a mãe... Diga à ela que eu desejo muita sorte. 

- Nós dois sabemos que é melhor não dizer nada - disse Cristiane ao pegar o papel, e saiu sorrindo - Mas obrigada. Acho que, mais do que nunca, ela vai precisar.

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora