Contrariando as vontades de dona Wanda, Cristiane não foi ao trabalho naquele dia, pois precisava se encontrar com um mestre de obras conhecido da família para tratarem da reforma/reconstrução da casa. Mesmo sendo um amigo antigo, quase um avô pras meninas, o serviço não sairia nada barato. O pouco dinheiro que guardara em sua conta poupança só comprou material suficiente para os primeiros dois dias de obras. Voltou para a empresa do pai em pleno horário expediente, mas aquela era sua casa agora, ela teria que conviver com toda aquela gente. Atravessou os corredores andando timidamente enquanto dava leves sorrisos para os funcionários. Notou com certo divertimento que o pai ocupava a mesa da secretária enquanto a moça diminuta sentava-se na cadeira do cantinho infantil da empresa. Chegou ao escritório, se trancou e foi tomar um banho demorado. Os dias caóticos de sua rotina faziam com que as poucas horas de sono na noite não fossem suficientes, então decidiu que, apesar do burburinho frenético da empresa do pai, iria dormir o resto do dia, até porque, Cristiane riu do próprio pensamento, o barulho de sua própria mente acelerada era bem mais enlouquecedor.
Saiu do box enrolada na toalha e encarou seu magro reflexo no espelho. Estava ainda mais magra desde a última vez que parara para observar. Os cabelos estavam crescendo, o que ela odiava desde a infância. Saiu do banheiro em busca de uma tesoura qualquer. Retornou ao banheiro e, como de costume, picotou mecha por mecha de seu cabelo castanho claro. Gostava de pensar em si mesma como uma fusão de Demi Moore e Ana Maria Braga, uns diziam que era mais pra Princesa Diana, mas Cristiane preferia a apresentadora excêntrica que conversava com um boneco de papagaio. Molhou-se novamente para tirar de si os fios cortados, limpou o chão, guardou a tesoura e finalmente admitiu a si mesma que estava fazendo de tudo para não dormir. Tinha medo dos pesadelos, dos pensamentos e das lembranças tenebrosas, mas agora tinha que lidar sozinha.Por mais que tentasse, desde que a mãe morrera, todo ano era a mesma coisa: as lembranças da mãe com as agulhas nos braços, a cabeça caída para dentro do vaso, o corpo ensanguentado e um sorriso sombrio nos lábios era demais. Era o terceiro ano desde a morte dela, mas, uau, aquilo era traumático demais. Se fosse antes, Susana estaria lá para abraçá-la, mas agora a irmã tinha uma vida à parte. Não queria ser egoísta, mas aquilo tudo a estava sufocando. Porém, por alguma sorte, naquela tarde a exaustão finalmente venceu e Cristiane dormiu o resto do dia inteiro. Despertou com o som do telefone do escritório.
- Cristiane? Eu sou o sargento Mota, responsável pela investigação do incêndio da tua casa, e eu tenho o resultado dos exames. Preciso que me responda algumas perguntas.
**********
Susana e Werá entraram no cômodo quase como espiões russos, mas foram surpreendidos pela luz acendendo repentinamente.
- Isso são horas, dona Susana? - Cristiane estava sentada na poltrona do pai com um ar de vilã, mas este era quebrado quando notava-se que ela alisava um porco de pelúcia - A polícia ligou, eles têm o resultado dos exames.
Werá suava frio e tinha um leve tremor nas mãos, tipo um pecador num sermão dominical.
- E o que d- disseram?
- Nada demais, na verdade. - Cristiane levantou-se e encarou firmemente o jovem na sala - Os exames deram negativo para THC, aparentemente nenhum de nós usa maconha. O Augusto também não, é negativo para todo mundo. Agora eles estão testando a ponta do bagulho encontrado, mas isso deve demorar um tempo porque as cinzas podem interferir no resultado ou algo assim. Você parece feliz, Werá...
- Estou, claro! - Werá se apressou- É ótimo saber que não estou cercado por crackudos.
Todos sorriram, mas Cristiane ainda não estava satisfeita. Sentia que tinha algo errado, mas não queria acusar ninguém injustamente, principalmente sendo o cara que a salvou do incêndio. Talvez isso tudo fosse o stress sobre a morte da mãe, a situação da irmã com o pai, a casa queimada e etc. Talvez estivesse buscando culpados porque queria responsabilizar alguém e tirar o foco da própria angústia. Era isso. Tudo que ela precisava era de uma fatia de pizza, um tonalizante de cabelo e mais umas semanas até que esse surto passasse. Se não fosse surto, tudo bem, a mentira tem pernas curtas e sempre promove tombos históricos.
Conversaram bastante, riram e se divertiram assistindo algum absurdo qualquer na TV, até que Werá resolveu ir embora. Susana foi com ele para abrir e depois trancar a porta principal do prédio.
-Su, não olhe agora, mas essa é a nossa chance de fazer nosso nome...
- Que que tá havendo? - Susana olhou em volta, mas não identificou nada.
- Atrás daquela árvore baixinha, ali do outro lado da rua, tem um fotógrafo. Acho que eles já estão sacando que tem alguma coisa. Rápido, me beija!
- EU NÃO! Por que eu faria isso???
- Você já beijou alguém, Susana?
- Isso não é da tua conta. Agora vai embora que eu quero dormir.
- Isso foi claramente um não! - Werá gargalhou - Deixa eu beijar você?
- Não quero que meu primeiro beijo seja assim, por um acordo idiota, eu queria beijar alguém de quem eu gostasse...
- Isso foi tão infantil e tão fofo que nem mesmo parecia você, Susangada. - a provocação do rapaz foi respondida com um belo soco no estômago.
- Eu não sou um monstro, tá? Eu só quero que as coisas deem certo com alguém, eu consiga amar essa pessoa e ela me amar de volta... Não parece difícil nas séries de TV.
- Se ainda não aconteceu é porque você só esteve rodeada de panacas até agora, Su, você é uma menina linda e muito talentosa. Teu único ponto negativo é esse teu gancho de direita que, PUTA MERDA, isso dói demais!
- Só não te darei outro porque os elogios foram fofos. Obrigada, Werá, isso foi bacana.
Werá segurou o queixo de Susana de lhe deu um beijo úmido em sua bochecha. Se não fosse tão tarde, o rubor na face da jovem seria muito perceptível.
- Boa noite, Susangada, até amanhã.
- Até.
Susana subiu as escadas sorrindo involuntariamente. Aquilo tinha sido o mais perto de um beijo que ela já teve, tinha sido fofo. Mas um pensamento cortou totalmente seu clima: Ele fez aquilo pelo fotógrafo. Werá não era de elogios e muito menos de carinhos. Ela amaldiçoou a si mesma, a seus hormônios e passou horas praguejando.
Se continuar assim, manter o foco vai ser mais difícil do que ela pensava.
Susana entrou no escritório/quarto com sua confusão mental expressa em seu rosto. Jogou-se pesadamente no sofá cama, assustando a caçula que jazia exausta.
- Pela cara, já é nítido que o plano começou a dar errado. - Cristiane abrira apenas um dos olhos para julgar a irmã - Eu sabia. Era só uma questão de tempo até desandar, mas eu esperava que você fosse mais forte, Su.
- Qual foi? Eu hein! Eu nem disse nada! São só os hormônios, eu tô chegando "naqueles dias", é só carência do ciclo.
- AHAM! - Cristiane não conteve a risada escandalosa - Essa foi a melhor desculpa que você pensou? Conta outra! Então como você nunca teve isso antes? Susana, tua referência de casal perfeito é de Grease, sendo que Danny e Sandy são patéticos, ele é um babaca e ela é uma trouxa sem personalidade. Era óbvio que você não teria base pra aguentar o flerte de um cara gostosão.
- Isso é ridículo! Em primeiro lugar, Sandy tem personalidade sim, afinal, ela mudou de roupas, mas se manteve meiga e amável o tempo todo. Em segundo, eles não são minha referência de casal perfeito, ok? Eu gosto muito mais da Maria com o Capitão Von Trapp de A Noviça Rebelde, eles são lindos. E, por último, eu aguento sim! Eu sei que ele não me quer, só quer reconhecimento e tal. Eu só preciso manter isso em mente e pronto, ele vai deixar de ser relevante. Eu só tenho que manter a cabeça no lugar que esse charmezinho fuleiro dele vai perder o efeito.
Pelo menos, isso era o que ela esperava.
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It's (NOT) A Love Song
RomanceAnos depois de uma derrota humilhante em nível internacional, Susana recebe a chance de se redimir. Perder não é uma opção e qualquer falha é inaceitável. De volta ao programa de TV dos seus pesadelos, ela conhece Werá, um jovem indígena que só quer...