18 ▪︎ O Silêncio dos Inocentes

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Por alguns instantes, Werá ficou paralisado diante do portão enquanto o líquido das caixas queimava e o fogo consumia os restos de lixo e papelão. Não sabia se as meninas estavam no térreo ou se haviam subido, mas tinha certeza de que estavam em perigo e a culpa era dele. Maldito momento, maldita janela aberta, maldita faísca, maldita força, maldita vida!

Antes de medir as consequências, o jovem pulou o portão e jogou todo o peso de seu corpo contra a porta, arrebentando-a. Correu pelos cômodos, tentando se esquivar da fumaça que só aumentava, chamou pelas meninas no andar inferior. Sem ter resposta, subiu as escadas para encontrá -las no quarto. Cristiane dormia profundamente enquanto Susana ouvia música em seu discman. Ignorando os protestos de Susana, ele a carregou até o lado de fora da casa e, sem perder tempo dando explicações, entrou para buscar Cristiane.

O fogo crescia rapidamente e a fumaça intensa faziam com que sua mente ficasse turva e lhe dava vertigem, mas Werá sabia que a culpa seria dele caso o pior viesse a acontecer. Cristiane acordou com o susto e até tentou se desvencilhar do colo de Werá, mas o corpo ainda menor e mais franzino que o da irmã não era nada difícil de conter. Ao chegarem ao lado exterior, notaram os bombeiros se aproximando e uma intensa comoção de vizinhos curiosos reunidos no portão. Susana chorava copiosamente, estava ajoelhada no chão, chamando pela irmã e gritando de desespero. Ao entender o ocorrido, Cristiane correu para o abraço da mais velha e permaneceram juntas no chão. Werá pensou em voltar e tentar salvar mais coisas, mas as chamas chegaram ao andar superior e pedaços do teto e das estruturas da casa começaram a cair.

Os bombeiros chegaram, ampararam os jovens e começaram os esforços para apagar o incêndio. Em seguida, a polícia apareceu e começou a estudar os fatos. Susana não falava mais, nem gritava, apenas permitia que lágrimas caíssem silenciosamente enquanto via sua casa virando cinzas. Cristiane conversava com as autoridades que lá estavam e procurava entender como e o porquê disso tudo estar acontecendo. Em alguns minutos, o fogo cessou, mas o estrago era considerável. Um policial e um bombeiro se aproximaram de Susana para iniciar as investigações e dar os informes:

-Senhorita Susana Carmo, certo? o bombeiro começou - Fizemos uma análise prévia e, diante dos fatos, concluímos que tem toda a característica de um incêndio criminoso. Tinham latas de querosene, aguarrás, anticongelante e diversos inflamáveis no chão...

- Na verdade, isso é nosso... - Cristiane interrompeu - Era do meu pai, na verdade, mas eu tentei limpar a casa e acabou espalhando tudo.

- E vocês sabem de onde saiu a faísca inicial? - O policial tinha uma carranca fechada e um olhar bem sério.

- Não temos ideia. Estávamos indo dormir quando isso tudo começou. - Cristiane passou a responder a tudo, pois o olhar de Susana já demonstrava que ela não poderia dar informações grandiosas.

-Além de vocês, havia mais alguém na casa?

- Eu... - Cristiane tentou responder, mas foi interrompida pelo policial.

- Susana, eu sei que isso não é fácil, mas precisamos que você nos responda com franqueza porque a tua vida pode estar em risco. Alguém poderia ter feito isso contra vocês intencionalmente? O mais tolo dos sinais ainda é uma pista. Nos conte tudo.

As imagens de Augusto gritando voltaram à mente da jovem. Como foram mesmo as palavras? Susana lembrou. "Queimar de remorso". Não poderia ser. Ou poderia?

- Eu não s...

- CAPITÃO NASCIMENTO, OLHA O QUE ACHAMOS ATRÁS DA CASA. - um policial troncudo e baixinho trazia um jovem imobilizado. Ele se debatia e tentava olhar para a casa, até ouvir...

- Augusto?

-Susana! Vocês estão bem?? Eu...

-Por quê que você está aqui? - Cristiane perguntou com grosseria.

- Eu precisava saber se vocês estavam vivas. Eu vi as chamas e a fumaça, não queria que nada as acontecesse.

- Mas você disse que queria que eu queimasse, queimasse de remorso... - a voz de Susana falhava.

- Eu sei o que eu disse, mas você sabe que eu não faria isso, não é? Você me conhece há mais de 10 anos. - Augusto agora estava em choque. Seus olhos cor de mel demonstravam um desespero singular. - Susana, eu jamais te colocaria em risco.

- Você admite ter falado isso, jovem? - O policial, capitão Nascimento, impaciente, questionou.

- Sim, senhor, mas foi apenas uma expressão.

-Bem vívida essa tua expressão, ganhou vida muito rápido. E, além do mais, você sabe o que dizem, não é? Um criminoso sempre volta ao local do crime. Você foi encontrado nos fundos da casa, no térreo, onde tudo começou. Não tem álibi, mas tem um forte argumento contra ti. Sargento Garcia, conduza esse jovem à viatura, por favor. Ele vai responder umas perguntas.

- Susana...

- Augusto...

O rapaz foi arrastado pelos homens fardados até a viatura, mas não tirou os olhos de Susana. Cristiane mantinha os braços em volta da irmã, que chorava baixinho. A mais velha estava em choque, quieta, assustada. Seu olhar para Augusto demonstrava toda a confusão que estava em sua mente agora. Aquela era uma traição pela qual ela verdadeiramente não esperava.

Werá observava tudo calado, sentindo o dilema moral o consumir mais do que o fogo. Mesmo sabendo de tudo, nada falou. Tentou não pensar, mas seu egoísmo levou sua mente a uma conclusão fria; "Esse foi um jeito bem radical, porém muito eficaz e oportuno, de tirar esse cara da jogada. Isso facilita muito."

Poucos minutos depois, o pai das meninas chegou.

- Vocês estão bem? A vizinha me ligou, tomei um susto ao ouvir sobre o incêndio. Vim o mais rápido que pude. Nossa, mas queimou muito mesmo... Vocês vão precisar de um lugar pra ficar. Eu conversei com a Rute e ela deixou que vocês ficassem conosco por enquanto.

Cristiane fez uma careta ao prever a reação da irmã. Mesmo sem conhecê-la tanto assim, o próprio Werá sabia o que esperar de Susana agora.

- Como assim "deixou por enquanto"? Nós somos tuas filhas legítimas, herdeiras de tudo que você tem, e agora temos que contar com a tolerância momentânea de uma das tuas putas? Eu não quero tua ajuda, não quero tua "boa vontade", eu quero o que é meu por direito. Dá a chave da empresa, nós vamos ficar lá.

- Nem pensar, Susana! E não fale assim comigo, eu sou teu pai. E Rute não é uma put...

- Se você fosse meu pai, esse incêndio não teria ocorrido porque você estaria aqui para limpar as merdas que deixou na casa. Em vez disso, a Cristiane que teve que desfazer tua bagunça. Você é tão imprestável que faz tudo errado até de longe! Estamos sozinhas há anos, sem nem ver tua sombra mais. Isso tudo é culpa tua! Anda! Passa a chave da empresa, ou vamos contar aos policiais que fomos abandonadas pelo nosso pai irresponsável e você vai responder criminalmente.

Com os dentes rangendo, o homem entregou um molho de chaves, virou as costas e entrou no carro. Ao fazer a manobra para sair, parou perto da primogênita e lhe falou:

- Você é maquiavélica igual a tua mãe.

- Antes maquiavélica do que brocha, papai. Nos vemos amanhã. - Susana tinha um sorrisinho irônico no rosto - Ah, como nós vamos ficar no teu escritório, pegue logo tudo que vai precisar antes que a gente entre. Não quero ser incomodada quando estiver descansando, ok?

- Esse teu coração duro não vai te levar a nada de bom, Susana.

- E você chegou em algum lugar maravilhoso tendo coração mole? Se continuar abrindo mão do controle de tudo por causa de mulher, em breve você estará tão ferrado quanto nós. - o sorriso de Susana se desfez - Eu achei que estávamos bem, mas você sempre estraga tudo. Por favor, não volte mais. Você não nos ama e nós não queremos um pai assim.

- Mas eu am...

- Se amasse, estaria conosco desde que a morte da mãe, mas você escolheu ir. Se você quer ir, então não volte.

E ele foi.

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora