Cerca de uma hora depois, os bombeiros permitiram que as meninas pegassem alguns pertences que não foram totalmente danificados. Eram apenas algumas roupas que estavam no varal, roupas de cama, toalhas e poucos itens mais sortudos. Ambas entraram na casa como se fosse num cemitério, em silêncio sepulcral e uma expressão de derrota expressa no semblante caído. As fotos de família estavam completamente chamuscadas. As fitas, os discos, tudo agora era pó. Cada passo dado deixava marcas nas cinzas jogadas no chão. Os bombeiros cederam sacolas de lixo para que pudessem transportar suas coisas.
Enquanto elas separavam suas tralhas, Werá era interrogado. O suor de nervoso escorria pelas têmporas e ele escondia as mãos trêmulas atrás das costas. Todas as respostas eram mentiras, até mesmo seu nome, mas essa ele já estava acostumado a contar. Martín Rodriguez, ou apenas Martín, era "um nome artístico" que combinava bem com a narrativa de cantor hispanohablante que ele tentava apresentar. Sabia que não teria valor nenhum na sociedade se usasse seu nome indígena, nunca chegaria a lugar algum. Se hoje tinha conta no banco, emprego, um apartamento alugado, um carro e até documentos com seu pseudônimo, era graças a fama de gringo, afinal, todos ficavam mais prestativos ao pensar que era alguém de fora. Agora mesmo, se ele usasse seu nome indígena, seria preso ali mesmo. Seria justo, bem verdade, mas seu sotaque exótico e sua aparência diferenciada eram melhores que os álibis que ele podia fornecer, era um gringo cantor da televisão, era suficiente. O povo brasileiro realmente não dá valor ao que é seu.
- Você vai levar a gente na empresa? - Susana surpreendeu Werá ao sair da casa repentinamente - Ou a gente pede um táxi, tanto faz.
- Eu levo, tudo bem.
Antes que pudessem entrar no carro, um bombeiro trouxe novidades:
- Meninos, encontramos uma pequena ponta de cigarro bem queimada embaixo da estrutura do sofá. Ao que nos parece, ela entrou pela janela, começou o incêndio e rolou pelo chão até ali. Isso foi uma tremenda sorte, pois agora temos mais chances de achar o culpado. Pela forma do cigarro, acreditamos ser de maconha.- o homem anunciou calmamente -Susana, Cristiane, Martín, vocês e o tal do Augusto precisarão fazer um exame toxicológico.
Werá tremeu dos pés à cabeça, mas sabia que se negar a fazer os procedimentos já seria um forte indício contra si. Além do mais, pensou, o exame era para identificar THC, mas ele não fumava maconha, então tinha uma chance de se livrar dessa.
O bombeiro os conduziu até a viatura e, de lá, foram escoltados até uma clínica, onde vários repórteres aguardavam na porta.
- Susana, você acha que foi incêndio criminoso? - gritou uma.
- O rapaz que passou aqui é realmente o culpado? - disse um outro.
"Augusto está aqui", o coração de Susana saltou no peito ao pensar nele ali. Internamente, sabia que não tinha sido ele, mas, parando para pensar nos fatos, era difícil inocentá-lo. Entraram na clínica ainda acompanhados pela polícia. Tiraram sangue, saliva, fios de cabelo e, preencheram questionários e também forneceram impressões digitais dos pés e das mãos. O processo durou horas, tempo que passaram separados, sem nem poder ver uns aos outros. Ao terminar esse processo, todos foram liberados, porém Augusto ainda estava com os policiais.
- Por que ele não foi liberado? - Susana perguntou ao grupo de policiais do lado de fora do laboratório.
- Susana, ele é o principal suspeito de um incêndio e...
- Vocês mesmos disseram que vão aguardar o resultado pra começar a investigar, além disso, eu não quero prestar queixa. Eu não quero acusar ninguém.
- Mas trata-se de um flagrante, ent...
- Vocês o viram jogar o cigarro? Não, não viram. Então como seria um flagrante? Não dá pra ser flagrante e suspeito ao mesmo tempo. Ele tem o direito de esperar em liberdade assim como nós!
A imprensa se amontoava na porta para gravar cada segundo da discussão. Temendo a pressão popular e as manchetes, os policiais liberaram o jovem, mas alertaram que, se tentasse sair do estado, seria preso automaticamente. Ao contrário do que esperava, Susana foi completamente ignorada por Augusto. O rapaz passou por ela sem nem um olhar de gratidão ou um aceno com a cabeça. Apenas desprezo.
- Ei, você saiu! Que bom! - Susana buscou uma forma de fazê-lo conversar
- Eu achei que meu pequeno escândalo não serviria de nad...- O que você espera de mim, Susana? - Augusto não tinha nenhuma gentileza expressa no tom de voz - Que eu te abrace, beije e agradeça por me tirar da situação que você me colocou? Eu não taquei fogo na tua casa, você sabe disso, fez até escandalozinho, mas, no fim das contas, foi você e tua boca grande que me meteram nessa enrascada. Se você confia em mim, por que me entregou?
- Mas foi sem querer! Eu estava nervosa, eu juro. Não queria falar nada...
- Susana, em nome dos nossos 10 anos de amizade, se afasta de mim. Ou melhor, eu me afasto de você. Desde que voltei pra tua vida, só me meti em furada. Eu não quero mais ficar me ferindo por você, ainda mais porque, no fim das contas, você escolheu o gringo. Só te digo uma coisa: ele não é o que você pensa. Eu poderia contar tudo, mas vou deixar você descobrir sozinha. Eu não tenho certeza ainda, mas já falei minhas suposições pra polícia e, se eu estiver certo, o exame vai mostrar tudo. Boa sorte, Susana. - Augusto saiu andando a passos largos e deixou Susana boquiaberta.
Internamente, ela sabia que ele estava parcialmente certo, ela tinha falado mais do que deveria e acabou prejudicando quem ela acreditava não ter nada a ver. Além do mais, se a situação fosse ao contrário, ela também estaria arrasada e de coração partido, mas era apenas uma suposição, afinal, ela nunca se apaixonou por ninguém. Mas ela tinha se redimido ao mandar soltá-lo, né? Ele já tinha sido pego de todo jeito. Os policiais iriam investigá-lo ainda que ela não falasse nada, afinal, ele estava rondando a casa no momento do crime. Na mente de Susana, ele teve muita sorte por ela ser tão misericordiosa.
Procurou Cristiane para contar tudo pra ela, mas notou que a caçula já cochilava num banco. Pegaram um táxi pra casa e de lá foram pra empresa no carro de Werá. Cristiane estava exausta, dormindo como uma pedra, deitada na banco traseiro. O silêncio foi rompido por Werá:
- Me responde uma coisa: qual é o lance com teu pai?
- Não que isso seja da tua conta, mas o lance é que ele é um merda. Desde que éramos crianças, ele nunca estava em casa, traía minha mãe com qualquer coisa que parecesse ter uma vagina. Isso deixava minha mãe com um ódio profundo dele, que ela descontava dando surras em nós, mas ele nunca estava lá pra ver ou nos proteger. Ele sabia, mas nunca se importou. Desde que ela morreu, ele nunca mais voltou pra casa e passa seu tempo torrando dinheiro com prostitutas e jogos de azar. - Susana não expressava nada, mas seu olhar perdido deixava claro o que passava em sua mente: uma decepção profunda já solidificada pelo passar dos anos.
Mais tempo em silêncio. Susana pensava no pai omisso, na mãe insana e em Augusto, aquele ingrato. De quanto precisaria pra fazer essa gentinha rastejar aos seus pés implorando seu perdão?
- Eu topo.
- O quê?- àquela hora da madrugada, a mente de Werá estava exausta demais para ver sentido em frases soltas.
- A partir de agora, pode me chamar de srta. Rodriguez. Vou ser tua pseudo-namorada.
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Dicionário:
- Hispanohablante: característica de lugares ou pessoas que têm como língua materna o espanhol
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It's (NOT) A Love Song
RomanceAnos depois de uma derrota humilhante em nível internacional, Susana recebe a chance de se redimir. Perder não é uma opção e qualquer falha é inaceitável. De volta ao programa de TV dos seus pesadelos, ela conhece Werá, um jovem indígena que só quer...