16 ▪︎ A Hora do Rush

19 5 1
                                    

O dia da estréia. Susana sentia as pernas tremerem dentro de seus jeans de cintura baixa, então apoiava seu corpo lânguido no frio balcão de mármore. No domingo, as duas irmãs trabalhavam juntas na sorveteria até que Susana tivesse que ir para o estúdio. Dona Wanda hoje estava eufórica falando sobre a apresentação, queria de todas as formas convencer Susana a usar a propaganda da loja em suas roupas durante o show, enquanto a garota argumentava que não era ela quem escolhia o figurino. Foi uma manhã corrida. Os dois ou três fregueses que apareceram antes do almoço cumprimentaram a jovem com um sorridente "boa sorte"
Essa exposição era o que fazia Susana se perguntar se realmente estava fazendo o melhor pra si. Concluiu o óbvio: não.

Ao chegar a hora de partir, Susana deu fracas batidas na porta de dona Wanda para avisá-la da sua saída.

- Também quero te lembrar que a senhora ficou de liberar a Cris pra ir à estreia hoje, - havia um tremor na voz de Susana - ela deve perto das 19h, é só um pouco mais cedo que o turno padrão então...

- NEM PENSAR!! Eu falei isso??? Que absurdo!! Eu não diria isso. - os olhos de dona Wanda estavam esbugalhados como se fossem saltar para fora das órbitas - Com esse movimento todo de hoje? Não deu 1h da tarde e já tivemos 4 clientes, Susana, espera só quando passar o almoço. Não vou ter como liberar.

- Mas, dona Wanda, falamos sobre isso a semana toda! É muito importante pr...

- Não, Susana! Indiscutível. Você pode até ser especial no teu programinha, meu bem, mas aqui não é. Já fui muito generosa aceitando que você saísse e voltasse desse jeito. Agora, com licença, "senhorita folga", mas alguém tem que trabalhar por aqui.

Susana não ia chorar na frente daquela mocréia, mas sentiu muita vontade. Cris a abraçou forte e desejou toda sorte do mundo. Deus do céu, como Susana amava aquela coisinha magricela enrolada em seu corpo. Faria tudo por ela, como de fato estava fazendo. "Joga de verdade". Hoje, daria tudo de si por ela.

- Eu vou assistir daqui pelas televisões da Casas Paraíba ali do fim do corredor. - Cris parecia tão cansada, mas nunca reclamava, Susana sabia que ela também estava fazendo seu melhor. Tinha só 15 anos, estava no ensino médio, era órfã de uma mãe drogada e um pai vivo, e agora trabalhava e estudava. - E tenta se acalmar, relaxar, mesmo que precise tomar um negocinho antes, um cachimbo da paz do Werá...

- Nada de negocinho e nem cachimbo da paz! - Susana sorriu - Independente de como for, nos vemos mais tarde. Amo você, Cris. Obrigada.

O trajeto de ônibus pareceu durar uma eternidade e Susana sentiu que, se tivesse que esperar mais 5 minutos, roeria todas as unhas, até as do pé. A aflição ficou ainda mais intensa quando entrou no estúdio e viu dezenas de funcionários trabalhando por aquela apresentação de uns 10 minutos para cada time e mais a enrolação conveniente do apresentador. Foi para seu já conhecido camarim, o mesmo da outra edição anos atrás, o que ela conjecturava se era ou não uma provocação, e se concentrou em não surtar naquele dia.

Ao entrar, surpreendeu-se com Werá flertando com a maquiadora.

- O que você está fazendo aqui?? Teu corredor é do outro lado, homem - a última palavra saiu como um xingamento.

- Susana! Que bom te ver, precisava conversar contigo antes de tua coleguinha de camarim chegar. Pode dar uma licencinha, Marlene, por favor? - Werá observou a maquiadora emburrada tomar o caminho da porta - Obrigado, querida. Até daqui a pouco! Certo, agora que ela saiu, vamos ao que interessa, o nosso acordo e... Ué, cadê Cristiane?

- Dona Wanda não deixou vir... Estarei por minha conta hoje. - Susana se jogou no sofá do canto do cômodo - Ah, Werá, estou apavorada! O que vou fazer? Eu não posso fazer isso sem ela aqui! Eu vou desmaiar de novo!

- Ah não vai mesmo! Sabe como sei que não vai? Porque, se você cair, eu vou te segurar e vou fazer questão de te pôr no colo e fazer a maior cena dramática, tipo Romeu & Julieta . Você quer um escândalo, Susangada?

- Meu Deus, não!

- Então está decidido: olhe pra mim, o ódio que você tem pela minha pessoa vai te motivar tanto que você vai ser a próxima Mariah Carey.

Conversaram mais um pouco enquanto esperavam que Marlene voltasse com o resto da equipe. Werá não tocou mais no assunto do acordo, achou melhor não colocar outros problemas na cabeça de Susana naquele momento. Quando os figurinistas chegaram, eles se despediram e foram se arrumar.

Em alguns minutos, depois da maquiagem passada, cabelo preso em coque e as roupas perfeitamente ajustadas em seu corpo (roupas modernas e apropriadas, nada mais de organza), Susana foi conduzida a um espaço cheio de cadeiras vermelhas diante do palco para esperar sua equipe ser chamada a apresentar. Assim como no ensaio, a equipe oposta iria primeiro. A jovem tentou observar ao redor para ver se tinha algum parceiro de time disposto a conversar, mas todos pareciam bem incomodados com sua presença ali. "Tudo bem", pensou ao dar de ombros e suspirar de frustração, "de uma figura lendária dessas, eu também teria medo". Desistiu de fazer amigos e focou no mais próximo de afeto que tinha ali: o indígena metido a besta pulando no palco. Ele era tão babaca. Mas, no geral, não era burro. A sugestão dele era boa, podia usar o desprezo que tinha por ele para se motivar a ser melhor. Ao vê-lo no palco, cheio de gingado, derretendo as meninas com seu charme e um leve sotaque exótico ao cantar, ela teve certeza de que ele realmente era um forte concorrente.

Ao ouvir seu nome ressoar pelo auditório, ela e os outros subiram ao palco e encararam as pessoas. Os olhos verdes de Susana oscilavam entre as luzes, os espectadores, as câmeras e tudo o mais, então sentiu a vertigem retornar para derrubá-la. Rapidamente buscou no público os olhos sedutores de Werá. Achou-os em meio ao espaço de cadeiras azuis reservado aos oponentes, fixou aquele ponto e manteve seu olhar no dele até o fim. Ele, por sua vez, a seguia, observava seus movimentos, admirava. Era claro que ele estava jogando com ela, mas tudo bem, ela gostava da sensação familiar e confortável de implicar com aquele mané. Por vezes, sentia vontade de rir, mas lembrava da apresentação, de dona Wanda e rapidamente tudo voltava ao normal. Era realmente como um flerte: eles se olhavam, sorriam um pro outro, Werá sussurrava palavras de incentivo para Susana, ao que ela retribuía com sorrisos abertos e piscadelas brincalhonas. O corpo da moça agora se movia com muita desenvoltura e, misteriosamente, não perdia o fôlego mesmo com os passos de dança tão complexos. A expressão simpática no rosto dela atraía toda a atenção para si. Ela parecia autoconfiante de tal forma que o país inteiro não foi capaz de tirar os olhos dela até o fim da apresentação.

Para surpresa dela mesma, a apresentação foi ótima. Não teve erro algum, pelo menos não da sua parte. Susana recebeu os aplausos, ouviu os gritos da plateia e acenou para todos. Estava extasiada, tinha esquecido do quanto a sensação de ser ovacionada era boa. Susana agradecia e mandava beijinhos. Com isso, as palmas aumentaram e duraram muito tempo, o apresentador mal conseguia falar. A plateia gritava o nome dela, aquilo era tão estranho e tão estimulante ao mesmo tempo.

- Que reestreia fenomenal, Susana! - O apresentador, um homem de terno elegante e sorriso escancarado, veio fazer seu trabalho - A plateia aparentemente nunca te esqueceu. Mas, pelos olhares trocados aqui, a música não é tua única inspiração, não é? Que química surreal eu percebi aqui...

- Que nada, Seu Raul Liberato, eles só não tiveram ainda o prazer de conhecer essa equipe maravilhosa com quem contraceno. - quem conhecesse Susana minimamente bem, saberia que aquela mentira demandou um exímio esforço, mas cortou os comentários de Raul e fez com que o público a festejasse ainda mais - Sem eles, essa apresentação incrível perderia todo o brilho. Obrigada, pessoal!

Depois desse falatório sem propósito, o outro grupo foi chamado ao palco. Werá correu para ela e ambos se abraçaram com bastante intimidade, apenas porque ela estava abobalhada demais para recusar. Apesar das histéricas palmas do público, eles passaram para a fase eliminatória daquela rodada. Naquele dia, um integrante da equipe de Werá deixaria o programa. Obviamente não foi ele. Era uma menina, aparentemente uns 13 anos, baixinha, encorpada e pavorosamente vestida. Cometeram com ela o mesmo erro que assombrou Susana 5 anos antes: A maldita organza.

Enfim, despedidas feitas e programa terminado, Werá seguiu Susana para a saída.

- Essa estreia merece uma noite da pizza na tua casa! Eu pago, relaxa. Vem, o "indiomóvel" tá ali no canto.

O trajeto pra casa foi rápido e alegre. Nada poderia estragar aquela noite. Nada até agora...

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora