1991. Final do concurso de calouros mais famoso do Brasil, o High Note Show, uma parceria entre as mais famosas redes de telecomunicações do Brasil e dos Estados Unidos. A vitória agora significa nunca mais precisar ir pra escola ou fazer nada que eu não goste. Minha família teria orgulho de mim e eu teria a carreira dos sonhos pra sempre. Eu nunca quis tanto uma coisa na vida. Ninguém da minha família veio, mas sei que minha irmã mais nova está assistindo em casa e torcendo por mim.
Estou no palco com minha concorrente, uma moça alta, corpo bem desenvolvido, cabelos loiros e pele clara. Ela é mais velha que eu uns 3 ou 4 anos, é bem bonita e talentosa também. Só espero que não tanto quanto eu. As luzes estão muito fortes, quase não vejo o rosto do apresentador que segura com muita pompa o envelope com o nome da vencedora. O público está muito animado. Ouço os pés batendo no chão, vejo as mãos sacudindo como se desejassem boas energias. As expressões dos jurados não me permitem ter certeza se venci ou não e os gritos do auditório são tão confusos quanto meus sentimentos agora. Quase não respiro, e isso não tem a ver com a saia cheia de organza que me puseram (disseram que eu ficaria uma graça com essa roupinha, mas ela é muito infantil, me deixa ridícula e faz meu corpo coçar, eu queria usar um vestido de alcinhas e tecido fino igual ao que a moça ao meu lado está usando). Tento sorrir como minha concorrente, mas o nervosismo causa uma dor estranha no meu rosto. Devo estar fazendo uma careta medonha agora. Notei que ela não sorri para o público, mas, sim, para um homem parado na coxia. Ele está quase escondido, não vejo seu rosto, mas imagino que deva ser seu pai, embora pareça meio velho demais pra isso. Eles têm um sorriso estranho um pro outro...
O momento dura mais do que eu esperava, parece eterno. Tenho tempo de olhar para tudo antes de ouvir o apresentador começar a pronunciar um discurso motivacional para depois anunciar o nome da vencedora. Mesmo tentando me distrair, ainda penso no modo que a concorrente olha pro seu pai, é um jeito estranho, quase como se eles tivessem uma espécie de relação presa × predador. Parando para pensar, ela realmente é meio estranha, se comportou de forma estranha o programa inteiro. Talvez seja implicância minha, afinal, eu não a conheço tão bem assim. Nem mesmo lembro seu nome. Como é mesmo o nome dela?
- ALINE!!!! - ouço a voz do apresentador ecoar pelos auto-falantes.
Ela ganhou.
Honestamente, como eu poderia pensar em ganhar dela? Tenho 14 anos, um corpo disforme, uma pele esquisita e não sou atraente. Ela é perfeita. Eu nunca poderia ser famosa, nunca teria fãs... Ela merece, de verdade. Eu não sei como cheguei até aqui. Mas não posso continuar pensando assim ou vou começar a chorar. Não posso chorar em rede nacional ou então não vou nem poder entrar em casa sem que minha mãe me dê uma surra. Ela sempre me diz isso, que sou chorona e estúpida, além de uma fracassada. Se eu chorar aqui, ela vai me bater por ter feito minha família passar vergonha. Sorrio. Pelo menos não estou mais sob o peso da competição, acabou. Recebo os cumprimentos das pessoas enquanto os créditos sobem na tela. Aguardo pela aparição do símbolo da emissora e sigo rapidamente para o camarim. Troco as roupas oferecidas pela empresa, ponho as minhas e saio em disparada em direção ao ponto de ônibus, implorando para que Deus não tenha me abandonado de vez e o ônibus não tenha passado. Chego na hora certa, entro de supetão e me sento no primeiro lugar disponível. Observo pela janela a emissora ficando cada vez mais longe e me pego pensando no inferno que viverei daqui pra frente: primeiro a surra da minha mãe, depois os pivetes da escola com suas brincadeiras idiotas e também os discursos de condolências dos professores. Mas o que mais me assombra é pensar na decepção da minha irmã... Ela vai estar chorando quando eu chegar, e eu não posso demonstrar fraqueza.
"Minhas previsões foram péssimas, mas não tão ruins quanto a realidade que se seguiu pelos próximos 5 anos."
Dicionário:
Pompa - Elegância, presunção
Organza - Tecido com brilho, semelhante ao tule
VOCÊ ESTÁ LENDO
It's (NOT) A Love Song
RomanceAnos depois de uma derrota humilhante em nível internacional, Susana recebe a chance de se redimir. Perder não é uma opção e qualquer falha é inaceitável. De volta ao programa de TV dos seus pesadelos, ela conhece Werá, um jovem indígena que só quer...