3 ▪︎ Vida de Inseto

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Desci do ônibus na esquina da rua de casa ainda fazendo um grande esforço para não demonstrar fragilidade, muito embora estivesse com frio, fome e medo. Já passava das 21h e eu caminho sozinha. Em silêncio, agradeci a Deus porque as pessoas no ônibus e as que passeavam na rua agora não assistiram o programa, porque ninguém me olhou com pena ou compaixão. Não evitei um vislumbre de sorriso que passou por meus lábios, causado por um pensamento: "Deus... que ideia mais idiota, se Ele se importasse comigo de verdade, essa não seria minha situação atual". Mas não importava, melhor crer nisso do que não ter nenhuma esperança pra me alegrar. Continuei minhas preces em silêncio até chegar no portão da minha casa.

- Pensei que não voltaria mais. Não sei como teve coragem de aparecer aqui depois do vexame que fez. - Minha mãe nunca tinha uma palavra bondosa sobre suas filhas - Eu te avisei pra não ir, agora eu que vou ter que aparecer no trabalho amanhã e aguentar as piadinhas sobre minha filha ser uma perdedora. Você acha que as pessoas não comentam, Susana? Elas comentam demais. E agora você fez o favor de dar motivos! Sobe pro chuveiro e liga na água quente, eu vou acertar minhas contas com você.

Naquela noite, eu tomei a maior surra da minha vida enquanto ouvia as mais diversas ofensas por motivos que eu não sabia que dei, mas não derramei nem meia lágrima. E também não contei a ninguém a respeito. Sabia que ninguém acreditaria em mim. Minha mãe era uma mulher elegante, trabalhava no renomado escritório de advocacia da família. Ela não parecia o tipo de pessoa que dá surras gratuitas em criancinhas. Mas ela é exatamente esse tipo de pessoa. A água quente servia pra isso, pra não nos dar prova alguma sobre o que acontecia.

Cristiane, minha irmã mais nova, estava chorando sentada no chão do corredor, em frente ao banheiro. Ela era mais sensível que eu, mas quem poderia culpá-la? Ainda não tinha completado seus 11 anos, não tinha desenvolvido o sangue frio necessário pra se manter sã na família Carmo. Enquanto chorava, ela chamava pelo pai. Coitadinha, não sabia que nosso pai não viria nos atender porque estava em algum lugar do outro lado da cidade, com sua amante e, possivelmente, um ou dois outros filhos. Meus pais mal se suportavam, mas casaram porque as famílias eram amigas próximas e parceiras de negócios. Nessas condições, casar os herdeiros era quase algo "natural" a ser feito. Nunca estavam em casa ao mesmo tempo e usavam os turnos do escritório como desculpa, o que era uma mentira estúpida, já que eu nunca os via juntos, nem nos dias sem expediente.

Com um tapa forte na minha bochecha esquerda, dona Ana Carmo se retirou do banheiro e me permitiu tomar banho de verdade. Minha irmã entrou e sentou-se na privada para tentar conversar comigo.

— Você é muito melhor que a Aline, irmãzona. Ela nem mesmo é boa. Você ouviu ela cantar? Ela desafina muito e nem alcança as notas que você fez na apresentação. Sabe o que eu acho? Eu acho que ela deve ter feito macumba! A vó Maria vive contando essas histórias de gente que mexe com os espíritos pra ganhar coisa em troca. E ela ainda foi burra porque só pediu pra ganhar a competição e não pra ter a melhor voz, porque agora que a competição acabou, a carreira dela não vai durar nada por causa daquela voz de pato rouco. — Cristiane esperou uma resposta, mas eu não sabia o que dizer. De fato, ela não era boa cantora, mas ela ganhou. A pequena não me deu tempo de pensar em teorias que justificassem minha derrota, apenas continuou a falar — Eu fiz misto-quente pra você, mas, à essa altura, já deve ter virado misto-frio. Vou esquentar de novo enquanto você termina de tomar banho.

— Obrigada, Cris. Só tome cuidado pra não se queimar. — Tentei soar tranquila, mas tenho certeza de que minha voz falhou porque Cristiane notou que eu precisava de algo a mais.

— Vou fazer chocolate quente também, isso vai deixar você feliz. — E saiu correndo pela casa, como se me alegrar fosse um dever urgente.

Desci para comer. Notei que minha mãe tinha sumido e a TV estava desligada, possivelmente porque a vencedora estava desfilando e dando mil entrevistas. Passei pela sala vazia e fui para cozinha para ver o que minha irmã estava fazendo. Ela tinha posto a mesa pra mim e estava sentada, me esperando. Comemos juntas enquanto ela falava sobre como minha apresentação foi incrível e que nem o próprio Michael Jackson chegaria aos meus pés.

Quando terminamos de lavar a louça, subimos as escadas fazendo o mínimo de barulho possível. Não tínhamos certeza se mamãe estava dormindo, mas acordá-la significava outra surra, então era melhor prevenir. Deitamos na cama de casal que dividíamos e fizemos nossas orações de antes de dormir, como vó Maria nos ensinou. Esperei até ouvir a respiração de Cristiane ficar mais profunda para ter certeza de que ela tinha pego no sono e, só depois disso, me permiti chorar.

It's (NOT) A Love SongOnde histórias criam vida. Descubra agora