DEIXO a xícara cair duas vezes,a água do chá ferve demais e os pães estão queimados em cima da mesa. A idéia de olhar para o meu marido é insuportável.Daniel toma o café da manhã com serenidade,enquanto tudo pela qual me ocupo quebra,queima ou desmonta.
- O que houve com você hoje, mulher?
Aperto as mãos contra a pia e sussurro uma reza de sabedoria,reza que nos é ensinada desde a infância para que a histeria não sufoque a mansidão.
"Perdoa-me pela raiva
abrande meu coração aflito
Ponha em mim um espírito puro e brando
Ó Grande Céu
uma alma desobediente
só traz desgraça a si mesma
Não me deixe sucumbir
a rebeldia das mulheres vãs."Mil vezes eu a repito em pensamento,lábios se movendo no calor constrangedor do silêncio,a raiva é uma fumaça que asfixia,os barulhos dele - comendo,mastigando, respirando - incitam os gritos mais altos no céu da garganta.
Respiro fundo,a reza não adianta,mas consigo esconder o tremor nas mãos.
- Ainda estou um pouco debilitada por ontem. - digo,engasgada.
- Hum,é bom que esteja melhor.
Daniel continua mastigando,o viço da massa e o barulho do café descendo por sua garganta,este sossego nos atos dele,o trincar dos meus dentes,a paz de uma manhã que foi maculada.
Depois de vê-lo ontem a noite,tive coragem de perguntar para onde ele tinha ido depois da festividade,e tudo o que recebi em resposta foram um dar de ombros e as palavras "não importa" seguidas da frase "estou em casa agora não estou?"
Lembro que balancei a cabeça em compreensão,voltei a dormir,fiz seu café da manhã quando despertei,preparei a marmita de comida para o trabalho,prendi os cabelos em tranças e vesti o corpete.
Encaixei os pés em todas pegadas,mas eles desviam do caminho,desajeitados e furiosos,fisgando um coração traído até finalmente me alcançar.
Xingue-o,mate-o,chore até secar o corpo. - dizem as vozes interiores,nunca pensei que seria tão difícil ignorar seus apelos.
Recomeço a reza, recomeço de novo,pois não consigo recitar as palavras, recomeço,de novo,de novo e de novo
- Daniel,aonde você foi ontem a noite?
Mas não basta repetir,estou furiosa demais para me preocupar com a brandura.
Ele finge não ouvir,mas bato com os pratos na mesa.
- Estou lhe fazendo uma pergunta! - ergo a voz novamente,ríspida,mas com o queixo apontado para o chão.
Ele para de comer e sinto que seus olhos me fuzilam.
- Pelo visto ainda está delirando de febre..aonde já se viu falar desse jeito comigo?
- Eu só preciso que me diga,uma única resposta.. - suavizo as palavras - ..para que eu possa dormir em paz.
- Vai dormir em paz se não pensar no que faço ou no que deixo de fazer. - Daniel rebate e levanta da mesa,aborrecido.
- Você me traiu! - grito,e é como ser destrancada - ontem a noite você me traiu!
Ele dá meia volta,quase deixou a cozinha mas agora vem em minha direção com passos curtos,estou com as mãos trêmulas,segurando a pia úmida.
- O que disse?
Minha boca perde a saliva,de repente tomo consciência do quanto sou pequena.
- Ana,olhe para mim.
Obedeço,sinto a garganta torcida feito um pano de malha,os olhos dele são dois círculos imponentes,Daniel parece um urso dos bosques,rosnando para mim e impondo seu tamanho. Não tenho chance.
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Ivy
RomanceDepois das montanhas e da floresta esquecida,a pacata e religiosa vila dos Prudentes atravessa um outono marcado pela guerra. Apesar do conflito territorial que acontece nas fronteiras,uma jovem mulher de reputação controversa está de mudança para...