AS JANELAS da capela estão incrustadas de poeira,é o dia designado para limpá-la,mas aparentemente sou a única a chegar na hora e realizo as demais tarefas.
Um xingamento corre pela mente antes que eu possa contê-lo,imploro perdão de imediato,mas a raiva continua borbulhando na boca do estômago.Eu deveria acostumar-me, pois essa negligência existe desde que sou esposa de Daniel,as mulheres marcam o dia da limpeza e depois alteram os horários para que eu limpe tudo sozinha,nunca adiantou recorrer às Madas,que também me encaravam com maus olhos pelo nascimento de Astra,o tempo passou e a resignação tomou espaço para encerar o chão,tirar a poeira dos bancos e janelas,polir os objetos de prata e abrir o Manuscrito exatamente na página do próximo sermão.
Enquanto o sol da manhã se reparte para dentro da capela escura,solto a respiração cansada, ingênua por acreditar que minha ajuda com os caras-de-noite e a sutil aprovação das Madas me garantiriam inclusão e mérito.
Ilapouá,a desajustada mulher que limpa sozinha as janelas de uma capela,é doloroso saber que faço parte de algo apenas quando sou útil.
O rosto de Ivy Island procura espaço entre as lamúrias,os olhos atentos a cada palavra que digo,as mãos que gesticulam ideias empolgadas,certa vez,quando nos despedimos no limite da trilha,virei para trás até perceber que Ivy também reproduzia o mesmo gesto.
Embora eu a ajude com as compras domésticas,sinto que minha companhia não lhe representa uma obrigação,Ivy não conta os minutos para que eu vá embora,ela engana o tempo e me hipnotiza para suas conversas com sagacidade e um cheiro inebriante de lavanda.
– Ana,por favor,ainda temos alguns minutos. – Island disse ontem a tarde – você adoraria ouvir essa história!
Ouvi-la entoar Ana despretensiosamente invoca sensações das quais não consigo nomear,como se não houvesse palavras o bastante para a vibração em sua voz.
– Assim como todas as outras histórias – retruquei na metade de um riso – eu gostaria mesmo de ficar,mas preciso estar em casa e preparar a torta de cereja para a reunião das Madas.
Island deixou escapar um bufo indignado,usava um vestido rosa tão sereno que divergia do gesto.
– Não entendo como elas podem dispensá-la e ainda mandam que faça comida para as reuniões...
– Ivy.
– Eu sei – ela levantou as mãos em rendição – são obrigações e você as segue,me desculpe.
– Não deve se preocupar com isso – respondi,lutando contra a coceira para segurar sua mão – mas essa raiva por mim é adorável.
Ivy franziu o cenho e abriu os lábios,era uma expressão engraçada,desejei ter papel e lápis naquele exato minuto.
– Pare,eu não tenho nada de adorável – retrucou – sou ameaçadora e infame.
Refleti sobre as palavras dela por um instante,de fato,Island é sarcástica,astuta e tempestuosa quando necessário,mas não há nada em sua natureza que seja ameaçador,a reputação lhe condena é claro,mas não para mim,que conheço sua gentileza melhor do que as pessoas de Prudente.
Balancei a cabeça,perseguida por um sorriso.
– Você é adorável Ivy,dizer o contrário seria a maior das mentiras.
Ivy exalou um riso breve,os fios ruivos sendo agitados pelo vento,que ainda serpenteava o caminho indeciso entre a delicadeza e a veemência.
– Obrigada Ana.
Que tamanha insanidade,permitir que Ivy diga o meu nome é como ser engolida pela deriva,ao ponto de não me reconhecer.
Island jamais viria até a capela para uma tarde de sermões,mas é impossível reprimir o sentimento de ausência quando não a vejo em qualquer lugar ou espaço.
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Ivy
RomanceDepois das montanhas e da floresta esquecida,a pacata e religiosa vila dos Prudentes atravessa um outono marcado pela guerra. Apesar do conflito territorial que acontece nas fronteiras,uma jovem mulher de reputação controversa está de mudança para...