A CESTA para os mantimentos é espaçosa e tem as bordas largas,durante semanas ela passou de minhas mãos para as de Ivy Island,o fundo carregado de quilos de arroz, feijão e açúcar, além de temperos e sacos de biscoito.
Foram longas semanas que atravessaram o nosso acordo, às vezes eu lhe entregava a cesta pessoalmente,em outras o combinado era deixá-la no meio da trilha,é comum seguir um atalho,mas nada tem sido penoso - como parecem as boas ações.
Levar a cesta abastecida para Island se tornou parte da rotina,quando vou buscar a cesta vazia na trilha,a lista para a próxima compra e as moedas escondidas sempre estão no compartimento invisível,que Island gosta de chamar de “bolso secreto”.
Além disso,desenvolvi o hábito irrefletido de pendurar sua lista de compras na parede da cozinha ao lado de outros lembretes,Astra notou rápido a letra diferente e perguntou de quem era,respondi que estava ajudando uma conhecida,minha filha deu de ombros e não fez mais perguntas – mantimentos não são um assunto interessante.
Traços sobre Ivy Island se manifestam a cada virar dos dias, descobri que ela gosta de salsa e pimenta assim como eu, mas compra muitos biscoitos de frutas vermelhas,que simplesmente não aprecio. Recolho as informações dessa mulher ímpar como um jogo de memória: Island sempre pede sal a menos,bebe muitos chás diferentes,sua letra no papel é grande,inclinada e preguiçosa,ela desenha ramos desajeitados nas bordas de cada lista.
Quando a encontro na metade da trilha para repetir o mesmo processo,digo que ramos simpáticos não disfarçam uma letra feia.
Island mantém a face emburrada,mas acaba sorrindo.
– Minha letra não é feia,é só..autêntica.
Solto risada.
– São sinônimos? Ora Island,por que não me disse antes? Algumas Novas Mães merecem ouvir o quanto tem personalidades autênticas.
Ela gargalha alto,constrange as árvores maduras,assusta os animais com os barulhos de sua irreverência.
"Quem é irreverente zomba do Grande Céu,e do Grande Céu não se zomba" - é o que dizem as escrituras,mas quando Ivy Island solta estes risos enormes,a irreverência é doce,me agrada e confunde.
– Não esperava que fosse dizer tal coisa – ela ajeita os cabelos que caem para frente – não mesmo senhora Fraser.
– Acho que é um baixo-pecado a que posso recorrer de vez em quando. – sorrio de lado.
– A senhora tem as garras mas elas ficam escondidas – sou atingida por um olhar cúmplice – respeito isso.
– Garras? Céus..olhe para mim,que exagero.
– Estou olhando – suas íris me intoxicam – não,não é exagero.
– Mas é claro que é.
Island une as sobrancelhas,sorrindo de lábios fechados.
– Não esconda seu temperamento como esconde suas covinhas,senhora Fraser.
Levo uma das mãos a bochecha,tocada por uma súbita vergonha.
– Eu não tenho essas marcas..pelo menos nunca reparei que as tinha.
Então Ivy Island as vê,elas existem além das fronteiras do meu espelho.
Perguntei a Daniel uma vez se eu tinha marcas no sorriso,ele deu de ombros e disse que não fazia diferença.
Ele estava certo,mas Island enxergou esta indiferença,é como se ela tivesse descoberto uma fonte de água em uma floresta densa.
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Ivy
RomanceDepois das montanhas e da floresta esquecida,a pacata e religiosa vila dos Prudentes atravessa um outono marcado pela guerra. Apesar do conflito territorial que acontece nas fronteiras,uma jovem mulher de reputação controversa está de mudança para...