FAZ sete dias que minha cama não tem o mesmo peso,faz sete dias que apenas eu e Astra ocupamos a mesa de jantar.A essa altura,Daniel está arrastando as botas nos pedregulhos da Trilha Árida, onde não há árvores e folhagens para se apreciar, nada para se esconder dos próprios pensamentos.
Pensar não deve atormenta-lo,sua mente é ponderada e a sua fala é contida,eu soube desde o primeiro momento em que nos conhecemos: ele é um homem feito de ações.Meu hálito tem gosto de manhã,mas não demoro a me levantar, já lavei os lençóis,mudei a posição dos travesseiros,mas a lembrança continua estridente dentro de mim,um homem que é meu marido,me forjando um bebê sufocado,eu sufocada debaixo do peso dele,rezando pelo livramento de um sumiço.
Costumo trabalhar na casa até tarde da noite, levo-me a exaustão, é o jeito que encontro para atenuar a visão da cama, não há cama, já que meus olhos estão pesados demais para ver, não há lembrança, já que o cansaço estapeou a capacidade de formar vozes,cheiros e momentos.Faço uma trança rápida no ninho que está meu cabelo, não me preocupo em deixá-lo asseado e arrumado demais, não há ninguém para vê-lo além de Ast - que acredita veemente que sou bonita. Boba.
Abro mão do corpete também,passarei o dia em casa, não há necessidade,visto um traje simples e cinza,solto nas mangas e aberto do pescoço até os ombros.
Quando chego na cozinha,Astra está roubando biscoitos de leite.
- Desfulfa. - tenta dizer,com a boca cheia de farelos.
Apoio as mãos na cintura.
- Se você comer agora, não terá nada para a ceia.
- Eu não resisti mamãe, são tão bons!
- Sei disso,fui eu mesma que preparei. - sorrio, pondo a água para esquentar na lenha.
- Um dia quero cozinhar exatamente como você mamãe.
- Ah isso você terá que aprender de qualquer jeito.. - suspiro - vai se casar e cuidar da comida para seus filhos e marido.
- E para mim mamãe.
- O que?
- Assim,imagina que meu marido e filhos saíram pra passear e eu tive vontade de comer uma torta de morango, vou cozinhar uma para mim,entendeu?
- E vai comer a torta inteira sozinha?
- É óbvio!
Solto risada,o calor do metal atravessa o pano de cozinha,inclino a panela rapidamente no coador,pronto, chego mais perto para sentir o cheiro,é delicioso.
O riso me escapa de novo, Daniel acha estranho quando sinto o aroma das coisas, diz que eu pareço maluca.- O café está pronto.
Misturo a metade dele com leite e açúcar para Ast,que segura a caneca pelando com a devoção de uma fiel.
Comemos bolo de cenoura e pão de milho com presunto, bebo meu café puro e quase sem açúcar,gosto de sentir o sabor de verdade.Apoio as costas na cadeira,percebo que uma das minhas pernas está cruzada e a outra balança no tapete,meu corpo parece mole e lavado de posturas,é como arrebentar miçangas no chão e não se importar em recolhê-las.
- Mamãe?
- Sim?
- Você está mais bonita hoje.
Pisco para ela e mordo um pedaço de bolo,a calda de chocolate derretendo sob os lábios.
- São seus olhos querida.
- O provérbio diz que os olhos não podem mentir. - ela revida,erguendo as sobrancelhas.
Por um instante,os olhos de Ivy Island me atingem o pensamento,olhos tão sinceros que assustam.
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Ivy
RomanceDepois das montanhas e da floresta esquecida,a pacata e religiosa vila dos Prudentes atravessa um outono marcado pela guerra. Apesar do conflito territorial que acontece nas fronteiras,uma jovem mulher de reputação controversa está de mudança para...