Ivy

17 🍁 Primavera

QUANDO a cara-de-noite e seu bando partem,sinto que envelheci uma vida inteira. 

Volto até a casa onde Gabriela Hondara está gritando de dor e agonia,os Reverendos e Madas me recebem com a mesma expressão moderada,mas há um alívio evidente em suas tensões.

– Nós os vimos atravessando.. – reverendo Pedro diz – são altivos demais para meros seres primitivos.

– Acham que são mais do que selvagens senhor – Mada Célia bufa – nossa benção é que sabemos exatamente dessas artimanhas.

Abaixo a cabeça,fitando as minhas botas sujas,não consigo olhar apenas para elas – é para os meus traços e pele que o reflexo da janela se vicia.

Tal repulsa da Mada atinge-me feito uma ofensa pessoal ao mesmo tempo que sou uma cúmplice,porque apesar da aparência,nunca vivi como os caras-de-noite ou junto deles,sou uma Crente por nascimento e criação,fatos tão arraigados quanto uma pele e feições que divergem do resto.

Ainda assim a culpa reúne sementes, nascendo e tomando as minhas ações e pensamentos.

"Uma filha-metade ainda é uma filha inteira para nós" as palavras da cara-de-noite marcam o íntimo outra vez.

– Cumpriu muito bem seu desígnio senhora Fraser,às vezes o Criador nos dá fardos que nos ajudam em certas horas. – Mada Victia abre um sorriso e sorrio de volta por costume. 

Gostam quando é útil,penso,mas logo espanto tanta blasfêmia da mente.

Mas tal permissão não é gostar – o pensamento persiste – é usar de modo conveniente.

Então,quem de fato gostaria do que eu sou?  
Sinto um embrulho no estômago,ao pé do coração um suspiro trancado.

Ivy Island. 

Acabei com a nossa amizade prematura e espinhosa – a chance de encarar seus olhos de novo –  o que eu sinto agora? O que eu preciso sentir? 

– Senhora Fraser?

Não sentir seria uma boa alternativa..

– Senhora Fraser! 

Pisco os cílios e retorno ao mundo concreto,a voz grave do Reverendo me encolhe os ombros. 

– S-sim? perdão..

– Mada Victia se ofereceu para ajudar no trabalho de parto da senhora Hondara. Pensamos que poderia se juntar a ela. 

– Mas..

– Deve pensar que já fez tudo o que pode senhora Fraser – Mada Célia abre um sorriso meigo e irritadiço – mas devido ao seu histórico recente..seria bom aplicar l generosidade em suas ações. 

Engulo a seco,lembrando que ainda estou expulsa do grupo de Novas Mães e Esposas,ainda sou uma ovelha diferente de um rebanho branco. 

– Sim,sim,é claro que ficarei.

Quero perguntar se Mada Vera vai embora ou continuará supervisionando Astra,se o parto durará até o nascer do sol e se terei que passar a noite acordada e...é em vão, permaneço em silêncio.

– Ótimo senhora Fraser! – Mada Victia dá dois tapinhas em meu ombro – quem sabe na próxima lua minguante você não volta para o grupo de mulheres?  

– Quem sabe.. – engulo a seco,mal conseguindo falar.

Eu deveria estar feliz com essa ligeira previsão,mas não estou,meu corpo pesa e o frio cortante incomoda os ossos.

O Reverendo Pedro faz um meneio de cabeça e a Mada o segue até descerem as escadas da padaria,ajeito os ombros ao observá-los indo embora para suas camas confortáveis e velas quentes.