OS DIAS passam rápido até a véspera da partida,ela move os homens a recolher pertences,fazer juramentos para suas famílias e compartilhar da mórbida reflexão de ir embora com outros convocados. Uma certeza de retorno preenche seus olhos duros,mas o risco,o lapso imprudente do destino também os espreita por cima dos ombros.As nuvens pesam diante do céu cinzento,e as cores fortes do outono ganham certa palidez, gosto de pensar que a natureza está sendo generosa em demonstrar respeito, honrando nossas preces de tristeza e saudade.
Observo minha família da janela enquanto preparo o café da manhã, Daniel corre no quintal lameado enquanto Astra tenta pegá-lo, posso escutar as risadas,a estranha moldura que a janela exerce sobre a visão.
Daniel nunca brincou com Ast desse jeito,frequentemente está resmungando pelos cantos a respeito da menina,ou ela fala demais, é agitada demais ou faz perguntas demais.
Hoje,no entanto, talvez sensibilizado pela partida iminente,seu coração tenha permitido leves demonstrações de afeto: a compra do doce favorito de Ast,ouvir suas intermináveis histórias e agora,correr junto dela debaixo do céu.Sorrio,mas meu coração se parte ao meio,como seria maravilhoso ver Astra e o pai assim todos os dias,uma parte considerável deles que seja.
Mas ao lembrar das reclamações infinitas de Daniel, sinto o gosto amargo da verdade: o filho do vizinho tem basicamente as mesmas características que Astra e meu marido demonstra muito mais carinho pela criança.
Ast está limitada a sentimentos de proteção e raso afeto,já que nasceu menina.
A raiva quase mancha a beleza do momento, mas consigo espantá-la para longe.
Encaro o quintal de relance várias vezes enquanto lavo a louça,depois de alguns minutos,Daniel e Ast correm até a porta da frente, sujos, suados e famintos.
- Limpe os pés querida! - digo para a pequena, flagrando sua tentativa de entrar com lama nas solas.
Astra bufa,é engraçado o barulho de seus pés ao esfregá-los no pano de chão.
- Por que o papai pode entrar sem limpar?
- Porque eu sou o homem da casa - responde ele, bem humorado - e esposas não dão ordens aos maridos.
- Então você não dá ordens a mamãe também?
Daniel solta uma risada curta,que me causa um estranho incômodo.
- É diferente pequena.
Escuto calada a conversa dos dois, concentrada em despejar o mel nos biscoitos, dedico tanto tempo a tarefa que consigo enevoar a raiva latente vindo da garganta,ela nunca me abandona, é um maldito cachorro fiel.
Pelo menos Ast limpou os sapatos, reduzindo bastante meu trabalho para ajeitar a entrada da casa.Como a tradição ensina,todas as refeições do dia devem ser as favoritas do Abençoado,para que ele tenha um pequeno banquete de paz e alegria antes do nascer do sol seguinte.
Daniel parece contente, embora tenha reclamado das panelas rangendo às cinco da manhã - tive que acordar duas horas antes a fim de preparar tudo: biscoitos com mel, torta de laranja, lascas de frango grelhado em cima de pães recheados com gergelim, ovos mexidos e bolinhos de chocolate, além de outros pratos amados por meu marido.
Ast coloca poucas coisas em sua tigela, obedecendo às minhas ordens de ontem: "amanhã o banquete será especialmente para o papai, como dizem os mandamentos".
Comemos em silêncio, meu marido devora o café da manhã como se estivesse atrasado, faço uma careta para Astra o imitando, ela ri baixinho em resposta.
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Ivy
RomanceDepois das montanhas e da floresta esquecida,a pacata e religiosa vila dos Prudentes atravessa um outono marcado pela guerra. Apesar do conflito territorial que acontece nas fronteiras,uma jovem mulher de reputação controversa está de mudança para...