Querido diário,
Tenho duas certezas...
A de que me diverti muito hoje.
E a de que meu lugar no inferno está reservado.
Porque cometi uma heresia daquelas para conseguir essa diversão.
O que haveria de fazer...? Não frequento muitos lugares. Se eu dissesse que fui passar um tempo na casa de Marianne, seria investigado depois. A fofoca corre a passos ligeiros na nossa vizinhança.
Então disse que fui à igreja ajudar na paróquia e tricotar agasalhos para os menos afortunados.
De fato às vezes posso ser encontrada lá fazendo isso. Não hoje.
Quis um argumento que me ofereceria bastante tempo para explorar a feira cigana à vontade.
Coloquei algumas moedas das minhas economias pessoais em um saquinho, me despedi de papai e mamãe e saí de casa vibrando de empolgação. Marianne já me esperava para caminharmos na direção oposta de onde dissemos que iríamos.
- Qual desculpa você usou? - perguntei.
- Ah... Igreja também.
- Amiga, assim nós vamos direto para o sétimo círculo do inferno. - retruquei.
Ela riu.
Pessoalmente, acho que Deus todo misericordioso não é tão chato quanto nossos pais e deve entender quando duas jovens procuram um momento de diversão que não machuca a ninguém.
Mesmo se eu não conhecesse a praça principal durante toda minha vida como quem nasceu e cresceu em Provença, a feira cigana seria inconfundível.
Aroma de especiarias no ar. Música, dança. Muitas conversas e risadas. Barraquinhas por todo lado. Mais ao fundo, pude ver estacionadas as caravanas coloridas dentro das quais esse povo misterioso transita pelas estradas e guarda seus pertences.
Quis salvar meu dinheiro para algo que realmente gostaria de ter ou conhecer.
Por mais que tudo ali fosse tão tentador. Os doces, as antiguidades, os instrumentos musicais, os jogos! Vi teatros de fantoche para entreter crianças. Vi malabarismos, homens engolindo espadas e cuspindo labaredas - como conseguiam?
O que mais atraía a atenção era uma moça sobre um palco improvisado de madeira.
Toda uma multidão reunida para vê-la dançar em seu vestido vermelho esvoaçante.
Suas muitas joias tiniam produzindo a própria música, além do violino ao fundo.
A impressão visual era a de não ser simplesmente uma moça - era um tipo de fada, de elemental, um ser de fogo agitando-se descalço como chamas em uma fogueira.
Após alguns minutos, cansada, ela interrompeu a apresentação com uma reverência ao som de estrondoso aplauso e sentou-se na beirada do palco para tomar água de um pequeno cantil que puxou do cinto.
Fui até ali segurando a mão de Marianne para não perdê-la no meio de todas as pessoas e selecionei três de minhas moedas para colocar dentro do chapéu surrado que coletava dinheiro.
A dançarina nos olhou e esboçou um sorriso amável em agradecimento, sem nada dizer. De perto pude ver como além de talentosa, ela era linda - pele cor de canela, cabelo ondulado mais negro do que a própria noite e olhos verdes brilhantes.
Ciganos me parecem ser quase todos assim, muito bonitos.
E nossas donzelas francesas, pálidas em seus corpetes e rendas, ainda acham que valem de muita coisa. Nisso também me incluo.
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Diário de Marie
Historical FictionMarie-Cleménce Chevalier, mimada moça de família na França do fim do século XVIII, sempre teve suas escolhas pessoais determinadas pelos outros. O que vestir. Aonde ir. Com quem andar. Com quem casar. Na infância ela ainda se revoltava. Também um...