Querido... não sei se chamo de diário.
Querido prisioneiro, tão infeliz quanto eu, que terá a curiosidade de ler isso depois que eu estiver morta,
Sou uma mulher grávida condenada à pior das penas por um crime que não cometi. Pouco azar, não? Meu nome é Marie, Marie-Cleménce.
Escrever com um pedaço de carvão na parede de madeira de uma carroça cheia de feno e alguns ratos, que só abre do lado de fora, me tranquiliza. Faz com que eu me sinta um pouco mais próxima de casa.
Escrevo enquanto a luz através da janela alta e gradeada permite. De noite é um breu absoluto, assustador.
Sou só eu, os ratos que enxoto a safanões e me impedem de dormir direito e os meus santos e fantasmas que parecem ter esquecido de mim.
Eu poderia ser mais uma mártir para sofrer excruciantes dores em nome do Reino dos Céus? Não, acho que não, nunca ouvi falar de fornicadora virando santa.
Sou azarada mesmo.
Só não menos azarada do que a pobre criança que escolheu meu ventre para morar. Minha menininha.
Não tenho razão para escolher um nome. Seria falsa esperança. Vou morrer e você vai junto, antes de conhecer esse mundo. Não perde muita coisa.
Ainda ontem, eu era feliz, cercada de muitas pessoas que me queriam bem e de um ótimo marido.
Talvez tanta felicidade tenha me feito baixar a guarda. Não adianta remoer, o fato é que nos encontraram, enfim.
Como bons covardes, atacaram na calada da noite.
Eu e Ignus ouvimos um barulho alto e gritos que nos arrancaram da cama.
– Tem... – comecei.
– Tem algo acontecendo. – concordou ele, fazendo sinal para que eu mantesse silêncio.
Ponderou bastante antes de abrir a porta, bem de mansinho, usando seu corpo como escudo para mim.
Tudo estava quieto no lado de fora após o barulho inicial. Um silêncio tétrico, aterrorizado. Pessoas encolhidas. Vislumbrei Amarílis, vestindo camisola, que encarava alguém fora do meu campo de visão com ar determinado e estava pronta para tirar a adaga da bainha. Uma voz masculina a repreendeu:
- Nem pense nisso, senhora. Onde está Marie-Cleménce Chevalier?
Pude ver como negaria dar a resposta, não importavam as ameaças, e precisei intervir. Empurrei Ignus para fora do meu caminho, surpreso demais para ter reação.
- Estou aqui! - anunciei com uma coragem impressionante. - Algo a tratar comigo?
- Marie, não. - chamou meu marido baixinho, em aflição aguda.
Tive tempo de olhar para ele com todo o meu afeto, entrelaçar nossos dedos pela última vez e esboçar: "eu te amo" sem som. Então segui inabalável, me entregando porque sabia ser melhor assim. Me importava demais com os ciganos e era a mim que queriam.
Andei até onde estava Amarílis e pude ver os dois homens enormes, fardados, com ar agressivo que invadiram nossas caravanas. Me interpus também entre ela e eles, queixo erguido.
- Corajosa, não? - comentaram entre eles de forma repugnante. O que parecia ser o chefe me cedeu um olhar, já puxando uma corda:
- Você está detida por assassinar seu antigo marido, com viés de bruxaria. Sua pena é a morte.
Respirei fundo e me virei de costas para que amarrassem meus pulsos. Amarílis continuava ali, paralisada e de olhos arregalados. Sem dizer nada.
Eu sabia como em locais mais civilizados, eu teria direito a um julgamento e um tribunal. Duvidava que fosse o caso agora. Minha condenação tinha sido muito bem paga.
Me dispus a virar a cabeça e dizer:
- Não sei se os interessa saber, mas sou inocente e estou grávida. Vocês podem decapitar uma grávida?
Alguém soltou uma exclamação dolorosa ao fundo quando eu disse a última frase.
- Talvez se esse filho fosse do marido que você matou. - respondeu o homem que me apertava as amarras até prender a circulação. - Como correu para engravidar informalmente de algum cigano, achando que assim seria poupada, não, não vamos nos comover. O filho de uma assassina e de um marginal não fará falta. Será um favor ao mundo.
Ouvi o som de passos furiosos de aproximando pelo meu lado e mal precisei olhar para saber quem era. Ignus sabia precisar se conter. Não deve ter suportado a ofensa. Antes que eu pudesse gritar um aviso, um terceiro guarda que eu ainda não tinha visto ergueu a espingarda e não atirou... Ao menos não isso.
Apenas bateu nele, uma pancada tão forte na cabeça a ponto de o derrubar inconsciente.
Amarílis foi correndo acudi-lo. Os guardas continuavam impassíveis enquanto eu me encolhia, gemendo como se o golpe tivesse sido em mim e começando a chorar.
Apesar do momento de fraqueza, a coragem em me entregar tinha sido redobrada.
- Apenas me levem sem machucar mais ninguém. Eles não têm culpa. - implorei.
- Bem, têm sim. Podemos deixar passar. Uma vagabunda tão corajosa merece a cortesia. - aquiesceu o homem, liberando meus pulsos depois de mais um apertão. Um elogio e uma ofensa ao mesmo tempo. - Então é ele o pai do seu filho?
Indicou com a cabeça o homem desacordado no chão de madeira, sendo acolhido pela mãe em uma cena tão triste quanto Pietà. Eu não queria olhar. E não eram dignos da resposta. Fiz que sim sem perceber.
- Patético mesmo. - declarou. - Agora vamos.
Então, com certo alívio, vi todos os guardas deixarem o local para me guiarem pela porta arrombada das articulações.
Ouvi quando o guarda secundário sussurrou ao líder:
- Ela está realmente grávida?
- Sim, a barriga já aparece um pouco. - retrucou impaciente. - Algum problema?
Temeroso, claro que ficou quieto. Eu sentia o desespero ameaçando transbordar dentro de mim. Não quis demonstrar mais fragilidade além daquela que já tinham me arrancado minutos antes.
Teria todo o tempo para chorar depois de ter sido atirada sem a menor delicadeza na parte de carga de uma prisão móvel. Praticamente me empurraram. Já tinham desamarrado minhas mãos e pude me apoiar na parede, ou cairia.
Talvez me bateriam também se não fosse minha condição, ou poderiam ser meus fantasmas me protegendo?
Amélie, Antoine?
Estou completamente só?
Rezo muito. Não quero morrer.
Mais pelas pessoas que me amam e pela minha filha do que por mim mesma.
Cordialmente,
Marie.
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Diário de Marie
Historical FictionMarie-Cleménce Chevalier, mimada moça de família na França do fim do século XVIII, sempre teve suas escolhas pessoais determinadas pelos outros. O que vestir. Aonde ir. Com quem andar. Com quem casar. Na infância ela ainda se revoltava. Também um...